Julgados de Paz e Justiça

AutorJaime Octávio Cardona Ferreira
CargoEx-presidente do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal
Páginas13-32

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Excertos

"Paz é muito mais do que ausência de guerra. Paz no sentido de segurança mas, também, no de bem-estar, tranquilidade... felicidade. Paz no sentido da convicção de que a Ética, a distinção entre o que é correto e o que o não é, será respeitada voluntariamente ou através de mecanismos tendentes à realização da Justiça"

"O século XX marca uma quebra na afirmação e na capacidade dos juízes de paz, posto que foram sendo despojados da sua identidade, atribuídas as suas funções a funcionários do Estado e transformados em mera longa manus dos juízes de direito. Daqui decorreu a morte da instituição por meados do século XX, numa época em que os ventos da história não lhe eram favoráveis"

"Do ponto de vista subjetivo é assumido que os cidadãos utentes dos Julgados de Paz são, como é natural, a sua razão de ser e devem ser considerados e assumir-se como participantes na procura e obtenção de soluções dos diferendos, naturalmente tanto quanto possível"

"Os objetivos dos Julgados de Paz são conseguidos através do exercício dos princípios de simplicidade, adequação, informalidade, oralidade e economia processual, o que deve ser atuado em termos de se conseguir justa decisão das causas em prazo razoável"

"Tratando-se de uma jurisdição pessoalizada, por princípio, as próprias partes devem comparecer pessoalmente nos atos processuais, justamente para se procurar acordo pessoal restaurativo de paz. Podem, sempre, fazerse acompanhar por advogado, advogado estagiário ou solicitador, mas tal assistência só é obrigatória, neste momento, ‘quando a parte seja cega, surda, muda, analfabeta, desconhecedora da língua portuguesa ou se, por qualquer outro motivo, se encontrar numa posição de manifesta inferioridade’"

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Mote

... se a Justiça, em termos absolutos, é um mito, pediria a Fernando Pessoa que repetisse que o mito é o nada que é tudo

1 Comecei este texto com um mote que relete a importância da Justiça, porque é de Justiça que se trata. Cito Fernando Pessoa porque Fernando Pessoa é ...Fernando Pessoa, o Tudo que vale a pena em matéria de pensamento; e, por outro lado, trata-se da condensação daquilo que eu próprio tenho reletido1, mantendo as ideias que busco há mais de meio século de dedicação à Justiça e, deste modo, à procura de respostas para a profundidade das ansiedades humanas.

Tenho para mim, como seguro, que não pode entender-se a instituição Julgados de Paz sem se ter clareza de pensamento e sensibilidade para a ideia de Justiça.

Aliás, para se perspectivar, corretamente, o sentido de Justiça, devo considerar que os conceitos não são estanques mas sim ideias em movimento, ora mais, ora menos, conforme os tempos e os espaços.

E o conceito de Justiça é, verdadeiramente, paradigmático neste sentido. Com efeito, a história e as perspetivas comparadas demonstram que, sempre e por toda a parte, houve e há uma noção de Justiça, mas as concepções concretas de Justiça - diria, a densiicação desse conceito - variam de época para época e de espaço para espaço2, conforme as idiossincrasias, as necessidades, as culturas, as tradições, as eventuais ruturas ou manutenção de situações etc., etc.

2. Simultaneamente, se é verdade que a percepção do Justo só se bebe, em rigor, face às soluções dos casos concretos em termos de boa ou má solução substancial, é certo que o modo de alcançar essas soluções é, igualmente, objeto de uma leitura de justa ou injusta conforme viabiliza, ou não, a solução substancial tida como correta pela sensibilidade e pela percepção prevalecente da generalidade das pessoas comuns num certo tempo e num certo espaço.

Isto signiica que, neste plano - ainal no plano do que é humano - tudo é relativo. No fundo, esta relatividade decorre, a meu ver, de que o Homem é a medida de todas as coisas3 e o Homem, sendo único e absoluto enquanto cada um4, é - como todos os seres - um ente relativo ao seu tempo e ao seu espaço. É isto que explica a evolução das regras e a existência de regras divergentes em espaços diferentes de um mesmo tempo.

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Penso que a chamada pena de Talião, retaliação, indiciada pela expressão latina talio - olho por olho, dente por dente, etc. - já constitui, por estranho que, hoje e aqui, pareça, uma evolução positiva tendencialmente ultrapassadora da absoluta discricionariedade e arbitrariedade da simples e casuística vingança privada. Para o pensamento comum dos nossos tempos e dos nossos espaços, todavia, é algo hoje ultrapassadíssimo, em termos de dever ser. Isto é tanto mais certo, para mim, quanto é verdade que me orgulho de Portugal ter sido um dos primeiros países na Europa a abolir a pena de morte5- aliás, anos depois de a jurisprudência ter, praticamente, deixado de a aplicar - e de a vida humana ser um valor "inviolável"6; mas tenho de reconhecer que, no nosso tempo e até no nosso espaço cultural, ainda há pena de morte, apesar de, designadamente, nos Estados Unidos da América, desde o texto original de 1776 da respectiva constituição (Declaração de Independência), o direito à vida ser um dos três direitos explicitados como finalienáveis (Vida, Liberdade e - muito signiicativamente - Felicidade, "he Pursuit of Happiness")7.

Neste bosquejo de ideias, que não pode ter um alcance exaustivo, deve dizer-se que também o modo de alcançar a Justiça tem variado conforme os tempos e os espaços, também aqui não necessariamente em termos evolutivos e, às vezes, entrecruzando opções e fazendo-as ora substituir-se, ora convergir, ora coincidir, ora conviver.

Para ilustrar a ideia com circunstâncias já, algumas, remotas de centúrias, lembremo-nos de que, num país como Portugal, nascido na primeira metade do século XII, no princípio o Rei era o verdadeiro juiz, quem tinha a palavra sentenciadora de conlitos, no âmbito da amálgama dos seus absolutos poderes próprios do "ancien régime".

Claro que, ocupado - quando ocupado - com o exercício dos seus outros poderes ou as suas guerras, o Rei não podia incomodar-se com a generalidade dos conlitos entre os seus súditos. Estes tinham de descobrir instituições próprias, ao nível de concelhos, que resolvessem os seus problemas. Está aqui uma nebulosa histórica que, em Portugal, veio a dar origem aos juízes ordinários, aos juízes de paz, aos juízes árbitros. Só no século XIV começaram a haver os chamados juízes de fora ou de fora-parte, nomeados pelos reis, aliás muitas vezes mal recebidos nos concelhos que preferiam os seus próprios juízes, embora com funções complexas, as mais das vezes também administrativas ou de simples e natural inluência local.

Dando um salto no tempo e nos acontecimentos8, nas Cortes de Elvas de 1481, foi pedido ao Rei D. Manuel I um Regimento que se aplicasse aos juízes de paz, como concertadores de demandas ou de desavindos9. Este

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regimento, extremamente importante em termos históricos e de conteúdo, acabou por ser outorgado pelo Rei D. Manuel I em 151910.

3. Entretanto, o tempo foi correndo, até que chegamos ao século XIX, e à aurora das ideias liberais, também em Portugal, com a Independência do Brasil, a ação de D. Pedro IV de Portugal e I do Brasil, as guerras civis, o triunfo do liberalismo e uma verdadeira e profunda reforma judiciária em Portugal, em sintonia com o advento do constitucionalismo.

A primeira constituição política portuguesa é de 1822, ainda se reportando ao reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves (art. 20º)11.

O triunfo do liberalismo político trouxe, com ele, a Portugal, entre muitas outras modiicações, desde logo, a democracia e, por isso, a existência de constituição e o im do "ancien régime", especialmente com duas consequências (entre muitas outras) a que devo fazer referência neste texto. Por um lado, iniciouse uma fase de verdadeiro direito processual, que, para a evolução que vimos referindo, tem um marco signiicativo, designadamente, no Código de Processo Civil de 1876. Naturalmente, não foi o CPC que, hoje, desejaríamos porque reletia uma época de excessivo poder das partes e de escassa intervenção do juiz. Foi um tempo que veio a ser combatido, mas paulatinamente, porque criou hábitos e interesses. Mas tem de compreender-se a sua génese porque sucedeu a séculos do "ancien régime", com o predomínio e domínio da autoridade do Estado identiicado com o Rei. O que se pretendia era passar o poder para os cidadãos, para as partes, sem se compreender que, assim, se trataria, demasiadas vezes, do poder do mais forte. Esta época da visão do julgamento como que um duelo judiciário regulamentado não deixou de ser um progresso mas insatisfatório em termos de essência. Pouco a pouco, nasceram ou renasceram ou assumiram maior signiicado pessoal e social, por força de razões de novas perspectivas da Justiça, um maior intervencionismo jurisdicional, a cooperação e não o duelo, a paciicação e não a vitória, a Justiça restaurativa de paz.

Justiça é, sem dúvida, um valor, um objetivo, não um caminho para esse valor ou objetivo

Contudo, para os efeitos que, aqui e agora, nos interessam, o liberalismo e o constitucionalismo marcam, não o nascimento, mas a consagração constitucional dos juízes de paz e das suas funções especialmente conciliatórias, embora não só. Isto icou expresso logo na Constituição de 1822, embora chamando, aos juízes de paz, ‘Juízes de Fato (artigos 177º,

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180º, 181º), porque se tratava do exercício de jurisdição conciliadora e de pequena gravidade, por pessoas comuns eleitas para isso, ao contrário dos juízes letrados.

De todo o modo, logo na Carta Constitucional de 1826, o juiz de paz retoma a sua designação tradicional. Não vou, agora, entrar em pormenores, que desenvolvi em outro local12. Direi, apenas, que os juízes de paz continuavam a ser eletivos e vieram a adquirir funções muito signiicativas, mormente conciliatórias, de necessária intervenção antes da ação, se necessária, nos meios comuns ou contenciosos, inclusive de ações executivas13.

4. Toda esta temática é absorvente, face à sua relevância...

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