Os juizados especiais federais em perspectiva estrutural e hermenêutica

AutorPablo Castro Miozzo
CargoMestrando em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Páginas429-459

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Introdução

Em ensaio escrito no ano de 2008, intitulado "Da funç o à estrutura", Ovídio A. Baptista da Silva traça, em linhas gerais, uma radiografia da chamada crise do Poder Judiciário. O texto é inaugurado com a afirmação de que a referida crise possui como pano de fundo uma "[...] mais ampla e profunda crise institucional, que envolve a modernidade e seus paradigmas" (SILVA, 2009, p. 89), sendo, portanto, uma crise no próprio sistema jurídico como um todo.

O móvel do ensaio acima aludido é a pergunta pela causa desta crise. Questiona-se o autor se o problema que subjaz ao descompasso entre o direito processual e o direito material - uma das decorrências do fenómeno -, tendo em conta a necessidade de uma prestação célere e efetiva - exigência premente da sociedade contemporânea -, decorre de um mau funcionamento da jurisdição ou é um problema estrutural, no que diz respeito aos alicerces que fundamentam o sistema processual.

Desde o início o autor não deixa dúvidas acerca de sua conclus o: "O Poder Judiciário funciona satisfatoriamente bem, em nosso país. Os problemas da Justiça

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são estruturais. Não funcionais. Ele atende rigorosamente ao modelo que o concebeu" (SILVA, 2009, p. 91).

Este modelo do qual fala Ovídio é o Racionalismo1 e sua tentativa de tornar o direito uma ciência segundo os padrões epistemológicos das matemáticas. Tal paradigma fez com que processo civil fosse visto como "[...] uma ciência rigorosamente formal; uma ciência abstraía, de fórmulas puras e normas vazias, preparadas para uma jurisdiç o cuja tarefa estaria reduzida a verbalizar a 'vontade' do legislador, ou a vontade do Poder" (SILVA, 2009, p. 93)2.

Duas consequências daí exsurgem. Primeiramente, esta abstração permite uma separação artificial entre o direito processual e o direito material. Ainda como decorrência da adoção deste modelo de compreender o Direito tem-se o primeiro fator estrutural da crise, ou seja, a "[...] inabalável premissa redutora do conceito de jurisdição como simples declaração do direito, que é, por sua vez, o alicerce do procedimento ordinário e da interminável cadeia recursal" (SILVA, 2009, p. 93)3. Por

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conseguinte, há uma resistência à possibilidade de se prestar jurisdição valendo-se de juízos de verossimilhança (SILVA, 2009-b, p. 1).

Por outro lado, e este é o ponto que moverá o presente trabalho, o paradigma racionalista, além de influenciar na construção do pensamento e, consequentemente, do sistema processual, oferece um modelo hermenêutico. Este tema também foi objeto de estudo por parte do brilhante processualista gaúcho, cujas ideias, claramente influenciadas pela hermenêutica gadameriana, se encontram expressas no ensaio já citado "Verdade e Significado"4.

Ovídio refere que o racionalismo iluminista legou uma compreensão acerca do papel do intérprete do Direito no sentido de lhe ser possível a descoberta da "vontade da lei" (SILVA, 2009-b, p. 1)5. Nesta busca - outra característica típica do paradigma citado -, os instrumentos metódicos ocupam um lugar de destaque.

Esta forma de compreender o processo e a própria tarefa interpretativa demanda um Juiz neutro e passivo, cuja missão seria apenas declarar a vontade expressa na legislação. A justiça da decisão estaria assim, contida no acesso correto a esta vontade. Tem-se, por conseguinte, um intérprete (Juiz) irresponsável por suas decisões (SILVA, 2009-b, p. 1).

Conforme magistério de Lenio Streck (2001, p. 61),

[...] na sustentação desse imaginário jurídico prevalecente, encontra-se disseminado ainda o paradigma epistemológico da filosofia da consciência -calcada na lógica do sujeito cognoscente, onde as formas de vida e relacionamento são reificadas e funcionalizadas, ficando tudo comprimido nas relações sujeito-objeto. Ou seja, no interior do sentido comum teórico dos juristas, consciente ou inconscientemente, o horizonte a partir de onde se pode e deve pensar a linguagem ainda é o do sujeito isolado (ou da consciência do indivíduo) - que tem diante de si o mundo dos objetos e dos outros sujeitos -, característica principal e ponto de referência de toda filosofia moderna da subjetividade. Admite-se uma espécie de autocompreensão objetivista da ciência e da técnica, conforme alerta Habermas. Essa separação entre sujeito e objeto busca proporcionar a que o sujeito, de forma objetiva, possa 'contemplar o objeto'.

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Em resumo, o anacronismo do sistema processual, como resultado da influência do paradigma do Racionalismo na compreensão do Direito (processual) é desencadeado principalmente por dois fatores, que se relacionam reciprocamente. Um deles de ordem estrutural, haja vista que a jurisdição, segundo referido por Ovídio, funciona (bem) de acordo com os padrões que a conceberam.

O processo caminha em busca de certezas. Outro de ordem hermenêutica, que parte do pressuposto de que é possível (cientificamente/metodologicamente) descobrir e, portanto, declarar a "vontade" contida na lei, o que permite ao Juiz agir solipsisticamente nesta busca e, por vezes, atribuir unilateralmente sentido aos fatos e aos textos normativos, sob a aparência de cientificidade emprestada pela epistemologia própria das matemáticas às ciências humanas.

No ensaio "Da funç o a estrutura", Ovídio advoga por mudanças na forma de conceder o processo civil e a jurisdição em termos estruturais, ou seja, apregoa a necessidade de se reconstruir o sistema processual sem influência das amarras cientificistas do racionalismo iluminista, no intuito de reintegrar o Direito ao "mundo da vida".

Tendo em conta este ponto específico do pensamento do ilustre processualista, que de longe representa a totalidade e a magnitude de suas reflexões, a linha condutora do presente trabalho é composta pelas seguintes questões: poderia os Juizados Especiais Federais ser considerados uma mudança nos termos propostos por Ovídio? Ou seja, esta espécie de procedimento, mais consentâneo com a celeridade e a efetividade, com certo desapego a formalismos excessivos6, numa tentativa de aproximar o direito material do direito processual,

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pode ser uma resposta satisfatória às exigências contemporâneas em termos de concretização de direitos? Em caso positivo, seria esta mudança estrutural, que representa certa ruptura com o Racionalismo, suficiente para se superar a crise do Poder Judiciário, no sentido de proporcionar uma prestação jurisdicional mais eficiente? Em que medida se torna necessária - caso o seja -, uma guinada também em relação à concepção hermenêutica que alimenta o imaginário dos operadores do Direito?

Os questionamentos supra, ganham importância na medida em que se analisa outro fenómeno objeto de preocupação de Ovídio, relacionado à crise do Judiciário, ou seja, o papel crescente que vem assumindo a jurisprudência na criação normativa, muitas vezes em substituição ao Estado-legislador ou ao Estado-administração (jurisprudencialismo).

1. A busca pela vontade da lei e o seu paradigma hermenêutico subjacente - uma análise acerca do papel do intérpetre na aplicação do direito

Segundo Ovídio, uma das características legadas pelo Racionalismo em relação ao Processo Civil é a crença na possibilidade do intérprete-Juiz ao prestar jurisdição, agir no sentido de encontrar a vontade da lei e declará-la (reproduzindo-a) no caso concreto.

Como dito acima, há neste modo de pensar a crença na mítica completude e no consequente fechamento do sistema jurídico, no sentido de não haver necessidade - ou possibilidade - de intervenções valorativas do intérprete/aplicador, que deve se limitar a um processo lógico-subsuntivo da norma - leia-se texto normativo - ao fato social por ela qualificado como jurídico. O sentido da norma já vem ao aplicador previamente instituído, o que lhe demanda uma postura neutra ("científica"), isto é, o processo de interpretaç o é uma mera reproduç o do sentido "contido" desde sempre na norma.

Embasada na ideia de que os textos normativos vêm sempre originariamente dotados de significado pelo "legislador racional", a atividade interpretativa deve se limitar a uma busca pela "interpretaç o correta", pelo "sentido

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primeiro da norma" ou por seu "sentido real" (STRECK, 2001, p. 90). Esta hermenêutica possui como raiz um paradigma filosófico7 que pensa a linguagem como algo que se interpõe como uma terceira coisa entre o sujeito (intérprete) e o objeto (realidade). Isto é, que na palavra estaria contido essencialmente o significado do objeto nomeado (CORETH, 1973, p. 27)8. O processo de apreensão de sentido se daria ao se atingir a essência do objeto, "significado" na palavra.

Na busca por esta mítica objetividade do mundo jurídico que é marcada pela separação entre sujeito e objeto, cresce a necessidade da adoção de procedimentos lógico-formais, que conduzam o sujeito cognoscente ao sentido buscado9. Acredita-se na possibilidade de se chegar à compreensão correta acerca das coisas através dos "métodos de interpretaç o", tendo em vista que o sentido já está dado, esperando apenas que seja descoberto.

No plano jurídico a separação entre sujeito e objeto pode ser vista como a dissociação entre o ordenamento jurídico (objeto) e o intérprete (aplicador), de modo que este possa ter acesso a aquele objetivamente. Este ideal sustenta, dentre outras, a noção de que texto e norma são sinónimos, isto é, que o texto legal já tem um sentido intrínseco, independente da realidade. O processo civil, nesta esteira, através de seus procedimentos, não deixa de ser concebido como um método de descoberta da...

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