O judiciário e os casos difíceis

AutorClèmerson Merlin Clève/Bruno Meneses Lorenzetto
CargoProfessor/Professor
Páginas146-156

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A indagação que procura determinar quem ou, alternativamente, qual instituição possui melhores condições para tomar decisões sobre casos difíceis não é uma novidade teórica. A disputa sobre qual o papel adequado para cada um dos poderes e os limites e capacidades que lhes devem ser atribuídos já havia sido elencada no rol de aspectos determinantes do Estado moderno. Não obstante, diferentes respostas normativas foram fornecidas no bojo do paradigma contemporâneo no que tange ao arranjo institucional adequado entre os poderes e, como consequência, quem teria melhores condições para a realização de interpretações constitucionais.

Procura-se, com isso, definir qual a maneira mais adequada de ler, compreender e aplicar os textos de uma constituição. Um dos motivos pelos quais tal atividade passou a ser reconhecida como fundamental no plano das tensões entre os poderes repousa na ampliação das funções outorgadas ao Judiciário nas últimas décadas em países democráticos1. No cenário brasileiro, essas discussões possuem relevância na consolidação e no desembaraçar das diferentes perspectivas teóricas que são utilizadas para justificar a prática da jurisdição constitucional.

Por isso, o artigo relaciona duas teorias interpretativas normativas: a que propõe a leitura do direito como integridade, de Ronald Dworkin, e a teoria interpretativa dinâmica, de William N. Eskridge. Justifica-se a escolha dos referidos autores, pois, de uma parte, tem-se um teórico cuja obra se encontra disseminada na academia e nas cortes nacionais e, da outra parte, realiza-se um diálogo com uma teoria ainda pouco conhecida e investigada no Brasil. A última apresenta potencial para contribuir para a formula-ção de um conjunto de instrumentais conceituais, os quais podem incrementar a “caixa de ferramentas” da hermenêutica constitucional.

O artigo versa, assim, sobre formulações teóricas que procuram apontar quais critérios deveriam guiar a busca por uma interpretação constitucional adequada. Para tanto, argumenta sobre conceitos referentes às mudanças nas formas de interpretação, expressas na teoria de Ludwig Wittgenstein, e também a repercussão do “giro linguístico” na determinação do sentido da constituição. Na sequência, a dicotomia entre interpretativistas e não interpretativistas é recordada e utilizada como aporte inicial para a exposição das duas teorias supramencionadas. Nas considerações finais são estabelecidos pontos de conexão entre as propostas de Eskridge e Dworkin.

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1. Jogos de linguagem

Superada a noção de que o sentido dos textos emana apenas de um lugar específico ou de que há uma relação necessária entre os objetos designados e seus respectivos “nomes próprios”, passou-se a refletir sobre como textos normativos conformadores de sistemas jurídicos são dependentes da produção de sentido por seus intérpretes. Dessa maneira, os diferentes modos pelos quais se faz possível realizar a construção semântica encontram, no âmbito jurídico, respaldo na orientação que determina a fundamentação das sentenças, a apresentação de razões por seus intérpretes com a finalidade de comunicar suas decisões para que estas possam ser compreendidas por seus destinatários2.

Não existe norma que esteja distanciada da operação hermenêutica. A produção de normas e a destilação de seus sentidos são atividades que precisam da interpretação, ou seja, para que possam ter força normativa, força de lei, elas demandam alguém com autoridade para dizer qual é a lei para a situação em disputa. Disso se depreende que os dispositivos que serão interpretados, em princípio, terão como resultado uma norma.

Contudo, não há uma necessária correspondência entre a norma e seus dispositivos3. Essa análise permite afastar a falsa imagem que determina uma relação simultânea entre texto e norma, pois nem sempre a norma é derivada de um “texto” específico, assim como nem sempre é possível, a partir de um texto, necessariamente, chegar a uma norma4.

Destarte, entende-se que a elaboração de sentidos por meio da interpretação não corresponde à defesa da inexistência de sentidos estabelecidos antes do processo hermenêutico. Tal inferência é realizada em face da distinção entre os diversos usos da linguagem, mas também dos limites existentes no que tange à orientação do emprego adequado dos meios comunicativos.

Wittgenstein ao tratar dos jogos de linguagem procurou romper com o entendimento de que cada palavra corresponderia a um dado objeto específico. Logo, propôs uma diferenciação entre o “portador do nome” e o “significado do nome”, pois o significado não dependeria da existência de seu portador5. Além disso, enfatizou o papel do uso, do aspecto pragmático da linguagem6, o qual se realiza diante de uma correção, perante um conjunto de regras mínimas para a utilização apropriada de expressões linguísticas7.

Na formulação dos jogos de linguagem8, Wittgenstein argumenta que os atos intencionais que outorgam significado não são essenciais para a compreensão da linguagem. Por isso, a busca deveria ser voltada para a variedade de circunstâncias em que os signos linguísticos são submetidos9. O fato de que eles são parte de uma atividade orientada não leva necessariamente a uma definição de um sistema de regras para cada jogo de linguagem específico, mas indica o caráter convencional dessa atividade humana.

Ao invés de propor uma forma geral de proposições comunicativas e para a própria linguagem, ou identificar algo comum àquilo tudo que pode ser designado como linguagem, Wittgenstein demonstrou que tais fenômenos são relacionados entre si de modos díspares e que não há uma definição da “essência” do jogo10.

O que pode ser objeto de análise é o resultado de uma trama complexa de semelhanças sobrepostas e cruzadas em certos casos, sejam estas semelhanças genéricas ou referentes a detalhes11. Se as similaridades de família reafirmam a falta de fronteiras para a linguagem, ao mesmo tempo demandam a criação de certos limites12. Logo, as regras gramaticais não conformam apenas instruções para o uso correto da língua, expressando, também, as normas de uma linguagem que produz sentido, de uma linguagem significativa.

A gramática, para Wittgenstein, não se situa no plano abstrato, substanciando, antes, uma atividade humana regular em que jogos de linguagem são inter-calados, os quais sinalizam o fato de que a linguagem é uma atividade, faz parte de uma forma de vida13.

Nesse sentido, a tarefa hermenêutica não conforma uma produção unilateral de sentidos; antes reafirma uma semântica que já se encontra em operação em uma comunidade discursiva, apresentando-se como fruto de convenções sociais14.

O conjunto de reformulações engendradas pelo “giro linguístico” reverberou no plano jurídico. Deriva daí a compreensão de que as teorias da interpretação formam parte determinante da produção constitucional15. Afastadas as antigas visões idealizadas do papel dos intérpretes do texto como agentes isentos

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de vontade – os quais poderiam apenas aplicar o conjunto de decisões formadas no âmbito político, do qual eles não seriam participantes ativos –, passou-se a projetar formas distintas de enunciar maneiras adequadas de formulação das decisões.

2. Interpretação constitucional

A interpretação constitucional, em tais circunstâncias, ganhou relevo diante de um plexo de fatores políticos e históricos que dispuseram a constituição como norma suprema. A elevação da carta magna à condição de teto e fundamento do ordenamento jurídico foi acompanhada pela maior atenção às atividades daqueles que tinham como dever “guardar” ou “proteger” a constituição16.

Diante da importância conferida a tal atividade, colige-se a especificidade do papel que a constituição passou a ocupar, compreendida como fonte normativa em sua integralidade, diante da existência de um conjunto de normas que não são autoevidentes ou autoexecutáveis e que não podem ser submetidas a uma simples subsunção. Como analisa Wojciech Sadurski, foi o exemplo da constituição dos Estados Unidos que convenceu os europeus de que a constituição não podia ser deixada apenas para ser aplicada no âmbito político, já que demandava a criação de instrumentos legais para confirmar, no plano da aplicação, sua supremacia. A ideia de que uma instituição jurídica deveria ter autoridade para garantir a supremacia constitucional foi, por muito tempo, um anátema no continente europeu17.

No Brasil, após a Constituição de 1988, a doutrina da efetividade procurou afirmar a normatividade constitucional em oposição às leituras que consideravam a constituição como um texto político desprovido de força normativa. A proposta da “dogmática da efetividade” voltou-se para preencher uma lacuna teórica no país e potencializar os efeitos que poderiam ser derivados da carta magna, apostando, na época, em certo protagonismo do Judiciário18.

Ademais, as constituições escritas não apresentam, de maneira completa em seu texto, o conjunto de orientações sobre como elas devem ser interpretadas19. Aquilo que pode ser dito, por outro lado, é que as constituições são carregadas, desde o seu início, com uma narrativa densa, que não é capaz de se auto-definir sem fatores exógenos, narrativa que segue por distintos momentos históricos, demandando que as sucessivas gerações produzam sentidos a partir dela, seja com base na história, na estrutura ou no texto constitucional20.

Com isso, as cortes constitucionais também foram alçadas a uma posição privilegiada no debate e os entendimentos que procuram reforçar ou mitigar a função da jurisdição constitucional passaram a disputar o cenário teórico. Isso pode ser constatado, por exemplo, no embate entre as correntes “interpretativistas” e “não interpretativistas” nos Estados Unidos21.

A perspectiva “interpretativista” distingue os...

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