O judiciário autoritário na democracia: a memória e o regime autoritário

AutorVanessa Dorneles Schinke
CargoProfessora-Adjunta de Direito Penal e Processo Penal na Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), Santana do Livramento, Rio Grande do Sul, Brasil
Páginas113-131
Rev. direitos fundam. democ., v. 22, n. 2, p. 113-131, mai./ago. 2017.
DOI: 10.25192/issn.1982-0496.rdfd.v22i2860
ISSN 1982-0496
Licenciado sob uma Licença Creative Commons
O JUDICIÁRIO AUTORITÁRIO NA DEMOCRACIA: A MEMÓRIA E O REGIME
AUTORITÁRIO
THE AUTHORITARIAN JUDICIARY IN DEMOCRACY : THE MEMORY AND THE
AUTHORITARIAN REGIME
Vanessa Dorneles Schinke
Professora-Adjunta de Direito Penal e Processo Penal na Universidade Federal do Pampa
(UNIPAMPA), Santana do Livramento, Rio Grande do Sul, Brasil. Doutora em Ciências
Criminais (PUCRS). Mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Pesquisadora
Associada da Rede de Pesquisa Empírica em Direito (REED). Integrante do IDEJUST e do
Grupo de Pesquisa Direito à Verdade e à Memória e Justiça de Transição (CNPq).
Resumo
O texto analisa as construções de sentido produzidas pelo Poder
Judiciário brasileiro sobre sua atuação durante a ditadura civil-militar.
Realiza uma pesquisa empírica, utilizando fontes primárias, coletadas
nos memoriais da justiça comum. A análise dos fragmentos constata
que a narrativa oficial não tece considerações sobre o contexto
sociopolítico da época, nem sobre o uso da forma do direito. A análise
indica que a narrativa da instituição se limita a tecer considerações de
cunho personalíssimo sobre a vida privada dos magistrados e a relatar
as mudanças de sedes dos tribunais ou eventuais elementos sobre a
estrutura burocrática da instituição. Sugere, por fim, que a memória
institucional nos informa mais sobre a imagem que o judiciário deseja
ter no atual contexto democrático, do que sobre seu real
comportamento durante o regime autoritário, indicando ser uma
instituição opaca, colonizada por interesses privados, pouco dialógica e
alienada das suas atribuições constitucionais, em um contexto
democrático.
Palavras-chave: Autoritarismo. Democracia. Memória. Poder
Judiciário.
Abstract
The paper analyzes the constructions of meaning produced by the
Brazilian Judiciary on its performance during the civil-military
dictatorship. It performs an empirical research, using primary sources,
collected in the memorials of the common justice. The analysis of the
fragments shows that the official narrative does not consider the socio-
political context of the time, nor about the use of the form of law. The
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analysis indicates that the official narrative is limited to making very
personal considerations about the private life of the magistrates and to
report the changes of the courts' headquarters or possible elements
about the bureaucratic structure of the institution. It suggests, finally,
that institutional memory informs us more about the image that the
judiciary wishes to have in the current democratic context, than on its
real behavior during the authoritarian regime, indicating that it is an
opaque institution, colonized by private interests, Alienated from its
constitutional powers, in a democratic context.
Key-words: Authoritarian Regime. Democracy. Judiciary. Memory.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Embora a integração do judiciário com espaços especialmente destinados a
difundir a doutrina da segurança nacional seja um indicativo da existência de relações
de solidariedade com o regime, é necessário aprofundar os canais pelos quais o
projeto autoritário foi acolhido e de que forma as funções jurisdicionais foram
diretamente afetadas. Esses movimentos de solidariedade, não raro, transitam por
diversas dimensões da estrutura institucional e, frequentemente, geram complexas
interfaces que contabilizam ganhos e perdas para as instituições envolvidas, conforme
os interesses comuns e específicos.
Dessa forma, ao passo em que a doutrina da segurança nacional, como
elemento rarefeito e sustentáculo teórico do regime, foi decodificada para ser utilizada
como substrato à aplicação do direito, os membros do judiciário puderam criar
expectativas de ganhos pessoais, como moeda de troca. Essas relações de oposição e
solidariedade, além de historicamente condicionadas, manifestaram-se no âmbito
institucional da justiça comum, ou seja, nos espaços originalmente destinados para o
exercício, imparcial, da prestação jurisdicional e supostamente voltada para a defesa
do regime democrático. Partindo-se da consideração elementar de que não se tratava
de um regime democrático, as estratégias adotadas pela justiça comum para manter
sua máquina administrativa em funcionamento e, paralelamente, para atender às
demandas do projeto autoritário revelam um arsenal complexo e paradoxal de
movimentos adotados pelos magistrados, a fim de atender a todos os interesses
envolvidos. Assim, os mais elementares requisitos constitucionais que fundamentam e
legitimam a prestação jurisdicional foram mimetizados para a fórmula do discurso
autoritário, no intuito de viabilizar uma fantasiosa ideia de independência do poder
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judiciário, de normalidade democrática e, sobretudo, do escorreito exercício das
funções jurisdicionais.
Paralelamente às progressões na carreira e nomeações para cargos nos
tribunais superiores, do ponto de vista das violações às liberdades individuais, o regime
autoritário mantido no Brasil entre 1964 e 1985 não fugiu à regra dos demais regimes
mantidos na América Latina: as graves violações de direitos humanos foram realizadas
de forma generalizada e sistemática, especialmente contra grupos identificados como
opositores. As instituições, por sua vez, tiveram papel central na condução de políticas
econômicas e sociais, destinadas a manter o projeto autoritário (fundado em uma
concepção econômica dependente, baseada na ideologia da segurança nacional). O
Poder Executivo, por exemplo, confeccionou a legalidade autoritária (PEREIRA, 2010),
meio que seria responsável por tentar confundir o regime de fato da época com um
regime de direito, ao passo em que construiu discursos que tentavam dotar de
continuidade democrática a fratura ditatorial implantada a partir de 1964.
Ainda que alguns de seus membros tenham sido afastados compulsoriamente,
a justiça comum manteve o ritmo das suas atividades. Do ponto de vista da legalidade
autoritária, o regime deu especial atenção do judiciário. Dessa forma, o Ato
Institucional nº 2 deu continuidade ao direcionamento do exercício das atribuições
judiciárias pelo Executivo criado pela cláusula de exclusão da apreciação judicial. A
partir de 1965, a justiça federal foi reinstalada e teve seus juízes nomeados pelo
Presidente da República.
O regime não apenas manteve o judiciário durante o período, como
incrementou consideravelmente sua estrutura, principalmente no que tange à criação
de novas sedes. A este espaço coube a aplicação da legalidade autoritária (incluindo a
aplicação da paradoxal cláusula de afastamento da apreciação judicial, prevista desde
o AI-1), e a análise de casos de graves violações de direitos humanos. A atuação da
justiça comum durante o período não foi irrelevante. Esse espaço detinha inúmeros
filtros que possibilitavam a mimetização da ruptura institucional, decorrente de um
golpe civil-militar, com um fictício Estado de Direito.
Considerando esse contexto sócio-político, este trabalho realiza um cotejo
entre a expansão burocrática da instituição, o azeitamento das progressões
carreirísticas e narrativa institucional construída pelo poder judiciário sobre sua
atuação, durante o regime autoritário de 1964-1985. A partir de fontes primárias e
através de estratégias empíricas de pesquisa, apresenta as construções de sentido

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