Judicialização do procedimento

AutorJosé Wellington Bezerra da Costa Neto
Páginas311-391

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27. Introdução

Como dito alhures, a judicialização do procedimento é apresentada na teoria da função jurisdicional proposta como uma das consequências processuais do protagonismo judicial, movimento que, como já visto, se vale do processo como instrumento de sua viabilização e realização, porém sobre ele também atua, como objeto.

O pano de fundo utilizado nesta porção do trabalho é a entrada em vigor no sistema jurídico pátrio de novo Código de Processo Civil708, buscando empenhar-se na avaliação de tema que se mostra na ordem do dia da ciência processual de nosso tempo, com pontos de contato relevantíssimos para a praxe forense quotidiana.

A utilização do novo Código de Processo Civil como parâmetro para as pesquisas aqui empreendidas tem por escopo em especial demonstrar a atualidade da tese, dar-lhe repercussão prática de relevo e, ainda, contribuir para este novo momento do processo civil brasileiro que, como sempre ocorre em fases de transição como esta, é cheio de vacilações e dúvidas.

As primeiras palavras que poderiam ser ditas são, infelizmente, de crítica ferina, sem desejar com isto inspirar rançoso pessimismo. É que ao menos no tema sob estudo não se compreende a timidez legislativa.

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Cumpre observar que o projeto original era alvissareiramente avançado em tema de judicialização do procedimento. O texto original, em seu art. 107, inciso V, veiculava: "O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: ... V – adequar as fases e os atos processuais às especificações do conflito, de modo a conferir maior efetividade à tutela do bem jurídico, respeitado o contraditório e a ampla defesa". Na mesma toada vinha o § 1º do art. 151: "Quando o procedimento ou os atos a serem realizados se revelarem inadequados às peculiaridades da causa, deverá o juiz, ouvidas as partes e observados o contraditório e a ampla defesa, promover o necessário ajuste".

Como se nota, conferia-se ao juiz amplos poderes na adaptação do procedimento às características do objeto posto em debate, observando as necessidades do caso concreto. Havia mesmo um princípio geral da adaptabilidade procedimental positivado, à semelhança do sistema português709.

O projeto neste ponto foi na tendência de ordenamentos contemporâneos que merecem consideração. Como dito no anterior parágrafo, certamente a mais recente disposição neste sentido é a portuguesa, em Código de Processo Civil recém vigente. Vale transcrever o art. 265-A, que previu o que chamou de princípio da adequação formal: "Quando a tramitação processual prevista na lei não se adequar às especificidades da causa, deve o juiz, oficiosamente, ouvidas as partes, determinar a prática dos atos que melhor se ajustem ao fim do processo, bem como as necessárias adaptações"710.

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As Civil Procedure Rules do sistema inglês previram de modo expresso o dever da Corte de exercer case management powers para atingir o overriding objective de permitir ao juízo lidar de modo justo com as causas que se lhe submetem. O item 1.4 contém extenso rol de poderes atribuídos à Corte para o exercício da gestão procedimental que lhe incumbe711. O item 3.1 da CPR reforça e adiciona poderes gerais de gestão processual cometidos à Corte, e detalha ainda outros instrumentais procedimentais utilizáveis712.

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Em matéria de provimentos de urgência, também o Código de Processo Civil italiano prevê a possibilidade de que o juiz, ouvidas as partes e sem omitir formalidade essencial ao contraditório, proceda à instrução da causa do modo que lhe parecer mais oportuno para chegar ao provimento reclamado713.

As críticas, contudo, não tardaram.

A proposta de emenda nº 15, de Sua Excelência o Senador Francisco Dornelles previa a supressão do referido inciso V do art. 107, com o argumento de que se tratava de regra de duvidosa constitucionalidade, lembrando que as partes têm direito a um procedimento previamente distwo or more claims on the same occasion; (i)direct a separate trial of any issue; (j) decide the order in which issues are to be tried; (k)exclude an issue from consideration; (l)dismiss or give judgment on a claim after a decision on a preliminary issue;.

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ciplinado em lei, o que inclusive integraria a noção de devido processo legal, considerando arbitrária a possibilidade de que o juiz estabelecesse mudança conforme as especificações do caso reclamassem.

Igualmente a proposta de emenda nº 16, de autoria do Exmo. Senador Adelmir Santana, também alvitrando a supressão do inciso V do art. 107, lembrando que o permissivo poderia resultar em práticas arbitrárias que comprometeriam a imparcialidade judicial, a certeza e a estabilidade do processo, com afronta ao devido processo legal.

As críticas foram fundadas, segundo se aponta, em três alicerces. Primeiramente, o desconhecimento dos críticos acerca do alcance da regra e dos condicionamentos para sua aplicação; em segundo lugar, a má compreensão do espírito do projeto de extinguir modelos procedimentais porque permitida a calibração do rito pelo juiz de acordo com o caso concreto; e por fim, em terceiro lugar, a precária redação dos dispositivos originais, ensejando a flexibilização mediante cláusulas extremamente abertas714.

Daí a redação consideravelmente acanhada que se tem no art. 139, VI, do projeto aprovado, a seguir abordado novamente.

O substitutivo apresentado pelo Deputado Paulo Teixeira previu, na esteira do contrát de procédure francês, a possibilidade de convenção processual entre as partes e o juiz versando o procedimento, conforme se vê do art. 191, "caput" e § 1°, respectivamente, o que representa significativo avanço: "Versando a causa sobre direitos que admitam auto-composição, é lícito às partes plenamente capazes convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo". E ajunta o § 1°: "De comum acordo, o juiz e as partes podem estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa, fixando calendário para a prática dos atos processuais, quando for o caso".

Na mesma esteira do citado art. 118, V, do projeto original, o substitutivo previu no art. 139, VI, que entre as incumbências do juiz na direção

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do processo está: "dilatar os prazos processuais e alterar a ordem de produção dos meios de prova, adequando-os às necessidades do conflito de modo a conferir maior efetividade à tutela do direito".

Por agora, calha responder às objeções. Como se viu, as críticas são todas direcionadas à possibilidade do despotismo715, da arbitrariedade com ofensa ao direito fundamental das partes ao devido processo legal. É óbvio que a principiologização do Direito e a preferência pela adoção de cláusulas gerais incrementam o poder judicial e a importância do processo716. Porém, nunca foi de boa lógica reprimir avanços argumentando-se com os possíveis desvios que possam ocasionar.

Com a devida vênia aos críticos à redação original do projeto, a supressão da norma originária é lamentado retrocesso. Normas concernentes à autorização geral à adaptabilidade figuram nos mais modernos sistemas processuais717.

A adoção de conceitos indeterminados e cláusulas abertas contraria a tradição de "civil law" do Estado Liberal clássico que desenha o juiz como a "boca da lei". Esta tendência de fortalecimento do poder judicial mediante a adoção de cláusulas abertas se revela inclusive no que toca à técnica processual.

De fato, o surgimento de novas situações de direito material e de realidade concreta tem levado à utilização de normas processuais abertas, permitindo ao juiz e às próprias partes atenderem ao direito à tutela jurisdicional efetiva mediante a construção do modelo processual adequado à natureza da tutela específica almejada. Cuida-se da possibilidade de individualizar a partir das circunstâncias do caso, o instrumento processual,

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forjar a técnica processual capaz de permitir a efetiva tutela do direito material718.

Aqui se entrelaçam as ideias de discricionariedade judicial, protagonismo e judicialização do procedimento.

A voz de lamento é ainda maior quando se percebe que aqueles que tenham vocação para o despotismo, ou que sejam useiros em vilipendiar direitos fundamentais das partes ao devido processo legal, não necessitariam da norma do referido inciso V do art. 107 ou do § 1° do art. 151 em questão para fazê-lo, até porque já o fazem sob o pálio das normas processuais em vigor, que não contêm dispositivo semelhante.

Ora, se esta realidade já vemos hoje (sem a norma em questão), não pare-ce que seja sua inserção no sistema que ensejará maiores temores.

De mais a mais, parece que a solução adequada seria a previsão de forma adequada de repressão e correção dos desvios ou excessos. Impedir os avanços com medo das patologias (que, como dito, e se repete, já existem) é inverter a ordem de valores na evolução de qualquer mecanismo pretensamente voltado à melhora da tessitura social.

O que se nota na injustificada restrição imposta é um sentimento geral que parece se difundir, não tanto no seio social como principalmente nas entranhas dos demais Poderes da República, de temor pelo incremento dos poderes judiciais. A raiz deste medo é ainda desconhecida, isto é, não se sabe se o que se pretende é evitar a formação de um Poder Judiciário forte, independente, efetivo e atuante, porque poderia representar ameaça para interesses escusos, ou se o receio é apenas de que a Magistratura fortalecida se...

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