A judicializacao da saude e a gestao biopolitica da vida: O Poder Judiciario e as estrategias de controle do sistema de saude/The judicialization of health and the biopolitical management of life: The judiciary and the strategies of control of the health system.

AutorMattos, Delmo

Introducao (1)

De uma forma bem geral, tal como expressa Foucault (2008c) (1), o termo biopolitica deve ser considerado sob dois aspectos intrinsecamente relacionados: (1) primeiramente, em sentido geral, como um "poder sobre a vida e a morte". (2) Por outro lado, em sentido especifico, considera-se como, nas proprias palavras de Foucault: "estatizacao da vida biologica", ou seja, como "o conjunto de mecanismos pelos quais aquilo que, na especie humana, constitui suas caracteristicas biologicas fundamentais vai poder entrar na politica, numa estrategia geral de poder" (Foucault, 2008c, p.3). Diante disso, fica evidente, portanto, uma relacao intrinseca entre "poder-politica-vida" correlacionado a uma estrategia explicita de administracao dos corpos e, por sua vez, de uma "gestao calculista sobre a vida" (2).

Na perspectiva de Revel (2005), levando em consideracao a praticidade do termo biopolitica, o seu significado corresponde a uma especificidade de exercicio de poder caracteristico do modo de funcionamento da politica na modernidade. Trata-se, portanto, de um deslocamento ou uma reconfiguracao do poder soberano, na medida em que assume determinadas funcoes de governo, ou seja, de um governo da vida. Nesse sentido, conforme evidencia Lemke (2001, p. 190), tal tipologia de insercao de novos instrumentos de poder e proporcionalmente aplicada aos diversos saberes que se produzem sobre a economia, a sexualidade, a saude pressupondo sempre a compreensao do ser humano, em sua condicao de ser vivo e pertencente a uma determinada populacao.

De uma forma geral, os termos da biopolitica propoem-se a ocupar, portanto, com os processos biologicos relacionados ao homem-especie, estabelecendo sobre os mesmos uma "especie de regulamentacao". E, conforme expoe Lemke (2001, p. 200), "para compreender e conhecer melhor esse corpo e preciso nao apenas descreve-lo e quantifica-lo--por exemplo, em termos de nascimento e de mortes, de fecundidade, de morbidade, de longevidade, de migracao, de criminalidade, etc.--(...)", mas e preciso tambem jogar com tais descricoes e quantidades, combinando-as, comparando-as e, sempre que possivel, prevendo seu futuro por meio do passado. Para tanto, a estrategia meticulosa do biopoder consiste em estabelecer uma linha divisoria entre o que deve "permanecer vivo" e o que deve morrer, fragmenta o campo biologico em termos de racas. Nesse ambito, demonstra Sellenart (2007), torna-se necessario uma progressiva eliminacao do anormal, das especies inferiores, dos degenerados, com o proposito de fortalecer a especie sadia, que podera proliferar.

Conforme essa pratica, o biopoder pode efetivamente expandir seus dominios, como menciona Lemke (2011, p. 23), "sob o "slogan da saude"--tornar as pessoas saudaveis--da protecao, da securitizacao da vida (a arte de calcular, prever os riscos e os acidentes)". Desse modo, tal pratica direciona-se para a construcao de um aparato para cuidar da higiene publica, para tanto, constroem-se uma relacao de saber e poder no qual sao solicitados o trabalho dos medicos, informacao estatistica, normalizacao do saber, aprendizado de medidas de higiene, constituindo uma rede de medicalizacao da populacao. De acordo com Golder (2007, p. 170), torna-se preciso atender as ocorrencias aleatorias, corrigi-las "a fim de perceber as series, os delineamentos mais gerais dos fenomenos populacionais, pois sao funcoes do Estado a previsao, as estimativas estatisticas, as medicoes globais que levam a decisoes politicas de elevar ou baixar as taxas de natalidade" (3).

Ao mesmo tempo, determinadas praticas sao estimuladas e reguladas com o intuito de prever as medias ideais e, consequentemente, criar mecanismos previdenciarios, assim "cosmopoliticas publicas", as questoes sanitarias e a medicalizacao social. Segundo Augusto (2009) esse processo pode ser verificado na pratica, em varios contextos, tais como se verificam na existencia do fenomeno da judicializacao dos conflitos politicos no judiciario brasileiro, as questoes como o direito a saude e o acesso a acoes de saude passam a ser decididas junto aos tribunais, produzindo diversos impactos sociais em relacao as politicas publicas de saude. Assim, conforme Augusto (2009, p. 10), "nao e por acaso que a partir da Constituicao Federal de 1988, o direito a saude passou a ter, alem de sua abordagem politica e tecnica, uma abordagem essencialmente juridica".

Diante do investimento politico da saude pelo biopoder, se forma efetivamente um determinado discurso sobre a saude, a saber, a saude como direito humano, como direito de todos e dever do Estado. Com efeito, forma-se uma pratica que expressa a judicializacao da saude. Tal pratica que pode ser compreendida, nao exatamente como um principio etico ou uma exigencia democratica que pressionam, de fora, o poder, mas como uma "tecnica de poder". Isto e, trata-se de um dispositivo de seguranca, na medida em que gerencia um elemento especifico em funcao de um acontecimento provavel visando prevenir um risco, ainda nao concretizado a violacao a direitos fundamentais.

Sob um determinado espectro, a judicializacao da saude pode ser compreendida como um fenomeno normal oriundo da porosidade do texto constitucional ou, ainda, da ineficiencia dos Poderes publicos em garantir direitos sociais, mas sim uma tecnica de poder de que se serve o Poder Judiciario para assumir o controle sobre o corpo dos individuos. Nessa medida, alem de obter o controle sobre a liberdade, sobre a producao, sobre a relacao afetiva, o Poder Judiciario detem o poder sobre o corpo e, dessa maneira, podera, como diz Foucault, "fazendo viver e deixando morrer" conforme o livre-arbitrio institucional ou, ainda, "o livre convencimento do julgador".

Sendo assim, o processo de judicializacao da vida e, consequentemente, da saude compreende um movimento no qual o Poder Judiciario se torna a instituicao mediadora do viver. Essa ampliacao do dominio juridico tem se estendido por espacos antes habitados por outros saberes e praticas, capilarizando a funcao do tribunal as diversas esferas do cotidiano. Assim, compreendida como um efeito de "gerenciamento da vida", uma vez que ha a apropriacao da regulacao normativa da vida pelo sujeito de direito ante a funcao judicante.

O que se propoe a examinar nesse artigo e a relacao entre os fenomenos da judicializacao da saude e as praticas de biopolitica sobre a vida. Nesse contexto, evidencia-se a pratica da biopolitica e exercida atraves do controle das populacoes, a partir de uma serie de estrategias de controle dos processos vitais da populacao. Ainda que haja diversas releituras da biopolitica na contemporaneidade, o projeto foucaultiano torna-se emblematico para os fins perseguidos nesse artigo. Sendo assim, no ambito da perspectiva de Foucault, demonstra-se, portanto, que o objetivo da biopolitica e o controle racional das populacoes, a partir desses saberes e, ao mesmo tempo, prever riscos futuros atraves de prognosticos, que sao feitos com a utilizacao de tais saberes. Seguindo essa linha de raciocinio, as discussoes propostas procuram demonstrar que a judicializacao da vida e um instrumento de intervencao da biopolitica, uma vez que os dispositivos juridicos de maneira cada vez mais expandida e capilarizada atualizando as estrategias de controle sobre os processos da vida. Segue-se a hipotese de que essa intervencao assume um carater de controle estatal, revelando ser um mecanismo pelo qual o poder judiciario utiliza-se de seus dispositivos juridicos, de maneira cada vez mais expandida e capilarizada atualizando as estrategias de controle sobre a vida.

Nessa logica, de acordo com Hirschl (2008), a judicializacao aparece nos discursos como parte de um contexto em que o Estado nao garantiu o direito devido, e o mecanismo legal funciona como meio de efetivar o direito afirmado por lei, atraves das reivindicacoes via justica. Para auxiliar essas discussoes, em um primeiro momento, analisam-se as principais formas pelas quais o problema biologico ingressa no registro da politica, ou seja, os mecanismos pelo qual a vida e entra no espaco do controle de saber e da intervencao do poder. Como consequencia, o sujeito, na qualidade de "sujeito de direitos", ocupa um segundo plano em relacao a preocupacao politica por maximizar o vigor e a saude das populacoes. Trata-se, portanto, de um aparato intervencionista do Estado que, nos termos da biopolitica se constitui em um entrecruzamento entre disciplina e regulamentacao da vida.

Em um segundo momento, as discussoes serao dirigidas para os efeitos da judicializacao da vida caracterizada pela inclusao na competencia dos tribunais nas questoes do viver regulamentadas em lei. De certa forma, esse mecanismo apresenta-se como um elemento intervencionista pelo qual o poder judiciario configurando-se como praticas sociais que visam a garantia de direitos vistos como obtidos, naturais e individuais. Diante desse contexto, o discurso juridico e condicionado a efetivar-se essencialmente como norma, isto e, a lei passa a ser inserida dentro de tecnicas de poder que aproximam cada vez mais o direito de outras modalidades do saber que tem o seu modo de funcionamento determinado a partir da 'norma'. Em outros termos, em uma sociedade biopolitica existe uma 'regressao do juridico' em proveito do normativo, na medida em que o ambito social, local em que emerge o saber de tipo normativo, adquire uma importancia cada vez maior, integrando o proprio discurso juridico.

A vida na politica: Mecanismos de controle e administracao populacional

De acordo com as analises de Foucault, desde o sec. XVII ate a contemporaneidade, observa-se claramente uma preocupacao governamental em gerir a vida, pelo qual ha uma maior insercao dessa na preocupacao dos dispositivos de poder do Estado Moderno. Diante disso, a vida como corpo biologico torna-se objeto da "mecanica do poder" em um Estado-governo preocupado com a administracao da vida individual e populacional, cuja...

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