A judicialização da política pública assistencial sob uma análise tridimensional - social, jurídica e de gestão

AutorJulia Maurmann Ximenes
Páginas224-259
A judicialização da política pública
assistencial sob uma análise tridimensional
– social, jurídica e de gestão
The Judicialization of Welfare Public Policies Under a
Tridimensional Analysis – Social, Legal and Management
Julia Maurmann Ximenes*
Escola Nacional de Administração Publica – Enap, Brasília, Brasil
1. Introdução
O presente artigo problematiza a judicialização das políticas públicas a par-
tir do conhecimento dos atores do campo jurídico sobre a política pública.
A premissa é a judicialização da política e das políticas públicas como um
fenômeno, uma realidade sociojurídica e política que acarreta a atuação
de diferentes atores na luta pelo reconhecimento e autoridade de “dizer o
direito”1 no caso, de definir os parâmetros da política pública.
O problema de pesquisa é: em que medida a tensão entre as dimensões
social, jurídica e de gestão se apresenta no fenômeno da judicialização
* Advogada. Mestrado em Direito, Doutorado em Sociologia Política pela Universidade de Brasília, Pós-
-doutorado em Direito pela Universidade da Califórnia. Bolsista da Cátedra de Inovação Jurídica da Escola
Nacional de Administração Publica – Enap. Professora e pesquisadora.
1 Campo para Bourdieu (1989) é o espaço onde as posições dos agentes se encontram a priori fixadas, mas
onde se trava uma luta concorrencial entre os atores em torno de interesses específicos, caracterizados pelas
manifestações de relações de poder. “O campo jurídico é o lugar de concorrência pelo monopólio do direito
de dizer o direito, quer dizer, a boa distribuição (nomos) ou a boa ordem, na qual se defrontam agentes
investidos de competência ao mesmo tempo social e técnica que consiste essencialmente na capacidade
reconhecida de interpretar (de maneira mais ou menos livre ou autorizada) um corpus de textos que consa-
gram a visão legítima, justa, do mundo social.” (1989, p. 212) O presente trabalho destacará as lutas sim-
bólicas entre os diferentes atores envolvidos e quem será responsável pela definição dos sujeitos de direitos
a política pública assistencial em questão: o campo da assistência social, o campo jurídico (doutrinadores e
magistrados/desembargadores) e os gestores.
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das políticas públicas? A proposta é demonstrar por intermédio da análise
de conteúdo de jurisprudência sobre um direito assistencial específico as
tensões entre as diferentes dimensões, que eventualmente são encontradas
em outros casos de controle judicial de políticas públicas.
Começaremos com a apresentação de cada uma das dimensões. A pri-
meira dimensão, social, apresenta a construção do direito social à assistên-
cia social em uma perspectiva de direito de cidadania, recusando a antiga
prática assistencialista, de mando e apadrinhamento. Ao unir a lógica de
direitos à política não contributiva da seguridade social, exploraremos a
percepção de sujeitos de direitos e não de “benesse” 2.
Ao invés do ‘pobre’ atado pelo destino ao mundo das privações, o cidadão que
reivindica e luta por seus direitos: duas figurações opostas e excludentes da
questão social. A indiferenciação do pobre remete a uma esfera homogênea
das necessidades nas quais o indivíduo desaparece como identidade, vontade
e ação, pois é plenamente dominado pelas circunstâncias que o determinam
na sua impotência.3
A concepção da “questão social” que é a desigualdade brasileira é trata-
da aqui sob um viés que ultrapassa a problemática da pobreza, discutindo
também “a integração e interação entre os diversos segmentos e setores da
sociedade brasileira”, igualdade política e civil dos cidadãos.4
Esta dimensão social do direito social à assistência social inclusive
como um direito reclamável pela população, nos conecta a dimensão ju-
rídica, que avança para o exemplo que utilizaremos de política pública,
o Benefício de Prestação Continuada – BPC e sua judicialização. Aqui a
apresentação da influência comunitarista na atual compreensão do papel
do Judiciário na efetivação dos direitos sociais.
Em seguida, a dimensão da gestão com a apresentação do BPC: a re-
lação entre Direito e política pública reside na necessidade de traduzir,
do ponto de vista do direito, quais são as escolhas políticas, econômicas,
influência sociológicas e outras, na efetivação de direitos previstos de for-
2 COUTO, 2015
3 TELLES, 2001, p. 51-2.
4 JACCOUD, 2009, p. 21.
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ma genérica no texto constitucional.5 Por isso os critérios de elegibilidade
serão apresentados na dimensão da gestão.
Por fim a análise jurisprudencial e as conclusões. O levantamento de
dados foi feito pela autora no âmbito de consultoria individual6 e o recorte
jurisprudencial considerou apenas a jurisprudência da Turma Nacional de
Uniformização – TNU da Justiça Federal.
Neste sentido, nossa hipótese é de que as controvérsias sobre as dife-
rentes possibilidades de efetivação de direitos sociais devem ser objeto de
decisão da Administração no âmbito de políticas públicas, sem desconsi-
derar eventual papel da sociedade e do Poder Judiciário diante de novos
cenários, possibilitando novos arranjos democrático deliberativos. Contu-
do, a atuação do Poder Judiciário deve ser a exceção e não a regra diante da
existência de política pública específica, o que demanda uma aproximação
do campo jurídico do detalhamento normativo infraconstitucional.
2. Dimensão Social
No contexto da desigualdade social brasileira7, a Constituição Federal de
1988 trouxe importante inovação ao incluir a assistência social no campo da
proteção social ao lado de outros dois pilares, a saúde e a previdência social.
O conceito de seguridade social8 como conjunto de políticas públicas
que asseguram a proteção social e o bem-estar é caracterizado como parte
5 “A juridicização do conceito de políticas públicas se constitui, portanto, de um lado, tradução de vetores
constitucionais do agir vinculado do poder (planejamento, eficiência, proteção a direitos fundamentais); de
outro lado, em vetor a viabilizar, por via de consequência, o controle desse mesmo agir do poder – controle
esse que há de se revelar possível e eficaz, seja nas instâncias internas à própria Administração, seja na via
jurisdicional, seja por intermédio das estruturas de controle social.”(VALLE, 2009, p. 84)
6 PROJETO BRA/12/006 – EDITAL n° 06/2017 no âmbito do Ministério do Desenvolvimento Social e
Agrário/MDSA.
7 TELLES (2001) define a questão social brasileira a partir da tensão entre “pobre” e “cidadão”: “No hori-
zonte da cidadania, a questão social se redefine e o ‘pobre’, a rigor, deixa de existir. Sob o risco do exagero,
diria que pobreza e cidadania são categorias antinômicas. Radicalizando o argumento, diria que, na ótica da
cidadania, pobre e pobreza não existem. O que existe, isso sim, são indivíduos e grupos sociais em situações
particulares envolvidas em situações diversas e nem sempre equivalentes. São situações diversas de dene-
gação e privação de direitos, que se processam em campos diferentes, com responsabilidades e causalidade
identificáveis e que armam, ao menos virtualmente, arenas distintas de representação e reivindicação, de
interlocução pública e negociação entre atores sociais e e entre sociedade e Estado.” (p. 51)
8 O modelo de seguridade social foi originalmente proposto pelo inglês W. Beveridge em 1942, cujo pla-
no foi publicado no Brasil em 1943 e marcado pela universalização da cobertura a todos os cidadãos.
(BOSCHETTI, 2003; FLEURY, 2007)
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