O controle judicial das políticas públicas no Brasil: possibilidade e limitações

AutorFernando Roggia Gomes
CargoAnalista jurídico do Tribunal de Justiça de Santa Catarina Especialista em Direito Constitucional
Páginas18-25

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1. Introdução

Com a evolução do ente estatal nos últimos séculos, sobretudo após a primeira grande guerra, superou-se a doutrina puramente liberal (marcada pelo absenteísmo do Estado), sobrevindo o modelo social. Em verdade, o poder público passou a intervir ativamente no domínio das relações socioeconômicas e atraiu para si inúmeros encargos, com o escopo de fornecer as tantas prestações exigidas pela sociedade.

Todavia, é de conhecimento geral que, no Brasil, por variadas razões, comumente o Estado deixa de suprir as demandas sociais a que se obrigou, agindo em total afronta aos direitos fundamentais do indivíduo e colocando-o em situação de completo desamparo.

Surge, pois, o questionamento acerca da possibilidade, ou não, de o Poder Judiciário, quando instado, exercer controle sobre as políticas públicas (atinentes a questões como saúde, educação, segurança pública, entre outras), as quais, em prin-cípio, deveriam ficar a cargo dos poderes Executivo e Legislativo. Ademais, caso se admita tal interferência, há discussão sobre quais os limites a serem observados.

O tema se mostra controverso e revestido de muitas complexidades, motivo pelo qual requer amplo debate e profunda reflexão, de sorte a proporcionar, independentemente do entendimento que se adote, uma conscientização a respeito dos deveres do Estado hodiernamente.

2. Contextualização histórica: a transição do Estado Liberal para o Estado Social

Ao longo do século XVIII, o Estado era visto, em razão da predominante doutrina liberal, como uma entidade destinada à proteção das liberdades individuais e, justamente por isso, marcada por um dever de abstenção no campo das relações socioeconômicas. Daí dizer que se tratava de Estado mínimo, absenteísta, com poderes e funções limitadas (Cunha Júnior, 2008, p. 59-60).

Contudo, a ideia de uma economia desenvolvida sem interferências por parte do ente estatal revelou-se franco sistema de exploração humana para os milhares de operários das novas fábricas (notese que o período corresponde ao início da Revolução Industrial), na medida em que a liberdade contratual conferida aos empresários redundava, invariavelmente, em condições indignas de trabalho (Freire Júnior, 2005, p. 24).

Estavam criadas, nesse cenário de injustiças e desigualdade, as circunstâncias necessárias para o gradual surgimento do Estado de bemestar social (ou welfare state), porquanto “necessidades sociais nunca antes sentidas passaram a reclamar ações do poder público, muitas de natureza prestacional, atingindo áreas da vida social que estavam

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fora do âmbito da política” (Souza Júnior, 2002, p. 64).

Assim, e especialmente após a primeira grande guerra, o poder público se tornou progressivamente intervencionista, conjuntura em que surgiu a noção de Estado Social.

Tal ideologia se faz presente no Brasil desde a Constituição de 1934. Na vigente carta constitucional de 1988, a propósito, os direitos sociais básicos foram privilegiados com substantividade inédita e formam a espinha dorsal do Estado brasileiro contemporâneo (Bonavides, 2012,
p. 386).

Desenhado o atual panorama, passa-se ao estudo da separação dos poderes, tema cuja compreensão se demonstra relevante para a problematização desta pesquisa.

3. A separação dos poderes

O princípio em questão se encontra positivado no art. 2º da Constituição da República, segundo o qual “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário” (BRASIL, 1988).

Inquestionavelmente, a separação dos poderes constitui uma das mais notáveis garantias do Estado de Direito, uma vez que possui a virtude de “limitar e controlar poderes, refreando assim a concentração de sua titularidade num único órgão ativo da soberania” (Bonavides, 2012, p. 573).

Nos dias atuais, tal postulado não deve refletir a mesma rigidez de outrora, já que a ampliação das atribuições do Estado contemporâneo exigiu novas formas de relacionamento entre os órgãos estatais, tanto que se fala em colaboração de poderes (Silva, 2012, p. 109).

Efetivamente, “a separação dos Poderes (...) não veda o exercício, a título ocasional, de uma determinada função por órgão não especia-lizado, desde que compatível com sua atividade-fim” (Appio, 2005,
p. 149).
É possível, então, a interferência de um órgão sobre outro, com base no mecanismo de freios e contrapesos, para garantir as liberdades públicas, afastando o arbítrio e o autoritarismo (Bulos, 2008, p.
90).

Porém, a mitigação do princípio sub examine deve se operar de maneira contida, visto que sobredita ingerência é apenas admissível com o desiderato de garantir direitos fundamentais, obstando atentados contra a própria constituição (Bulos, 2008, p. 90), a qual, como se demonstrará adiante, figura no ápice do ordenamento jurídico.

4. Supremacia da Constituição

Como cediço, todas as normas jurídicas são caracterizadas pela imperatividade, por determinarem condutas positivas ou omissões, obrigando todos os indivíduos e órgãos aos quais se dirigem. Todavia, em se tratando de disposições constitucionais, a imperatividade adquire particular feição, ante sua supremacia em relação às demais normas do ordenamento jurídico (Cunha Júnior, 2008, p. 52).

Quer isso significar que “a Constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, a que confere validade, e todos os poderes estatais são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos” (Silva, 2012, p. 45).

Referido diploma é destacado como lei suprema não só por ser fonte da produção normativa (norma normarum), mas porque lhe é atribuído valor hierarquicamente superior, tornando-o parâmetro obrigatório de todos os atos da vida humana (Canotilho, 1997 apud Cunha Júnior, 2008,
p. 53).

5. A proteção dos direitos e garantias fundamentais no texto magno de 1988

Como leciona Uadi Lammêgo Bulos (2008, p. 106), os direitos e garantias fundamentais na Constituição de 1988 abrangem os direitos individuais e coletivos (art. 5º), os direitos sociais (arts. 6º a 11), os direitos à nacionalidade (arts. 12 e 13) e os direitos políticos (arts. 14 a 17).

A lei maior, como se vê, reconheceu extenso rol, contemplando direitos fundamentais das três gerações (ou dimensões).

Além disso, nada obstante o amplo catálogo acima descrito, o constituinte adotou cláusula de abertura material ou de não tipicidade dos direitos fundamentais (Cunha Júnior, 2008, p. 241), como se depreende do § 2º do art. 5º, de acordo com o qual “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” (BRASIL, 1988).

Merece destaque, outrossim, a inovação trazida no art. 5º, § 1º, do diploma constitucional, no sentido de que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata” (BRASIL, 1988).

Embora haja divergência no tocante ao significado e alcance da disposição epigrafada (discussão cujo aprofundamento não encontra espaço nos estreitos limites do presente artigo), mostra-se forçoso concluir que a intenção do constituinte era evitar que a aplicação dos direitos fundamentais ficasse à mercê do legislador infraconstitucional.

6. Políticas públicas: tentativa conceitual e dificuldades de implementação

Árdua é a tarefa de explicitar um conceito acerca das políticas públicas. A variedade de formas pelas

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quais elas são implementadas torna inviável, ao menos neste artigo, uma catalogação, havendo políticas públicas, por exemplo, em relação à saúde, educação, moradia, lazer, segurança pública, entre outras searas (Freire Júnior, 2005, p. 48).

Com efeito, “a exteriorização da política pública está muito distante de um padrão jurídico uniforme e claramente apreensível pelo sistema jurídico” (Bucci, 2002, p. 252).

De qualquer sorte, pode-se afirmar, ainda que de maneira ampla, que “a expressão políticas públicas designa todas as atuações do Estado, cobrindo todas as formas de intervenção do poder público na vida social” (Grau, 2000, p. 21).

Para Américo Bedê Freire Júnior, a expressão quer significar “um conjunto ou medida isolada praticada pelo...

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