Jovens universitários e o trabalho precário

AutorKatiuci Pavei
Páginas264-276

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Introdução

A pesar* da disputa entre os que valorizam e os que renegam a centralidade do trabalho, é incontestável que o exercício ou não da atividade laboral repercute profundamente na vida de cada pessoa e na sociedade. O trabalho ultrapassa a idéia de emprego (CASTEL, 1998), sendo assim, a condição de não-trabalho simboliza a negação de todo o significado formador e transformador (individual e social) que o trabalho tem.

A própria autonomia, entendida como a faculdade do indivíduo de autogovernar-se, constituindo-se como sujeito histórico, condição que “opõe-se à dependência, no sentido de submissão, de avassalamento” (CATTANI, 1996, p.147), pode ser conquistada pelo trabalho.

De modo mais profundo, o trabalho em muitas culturas apresenta-se como rito de passagem da condição infanto-juvenil dependente à condição adulta autônoma. Tal transição marca fases de vida diferentes, podendo se dar da infância diretamente para a vida adulta, como é, por exemplo, nas culturas indígenas, ou ainda passando por uma fase intermediária, nomeada como adolescência e juventude, como acontece nas culturas ocidentais. Assim, as nomeações de fases de vida, como infância, adolescência, juventude, vida adulta, velhice, que fazem parte da cultura, são categorias com visibilidade social criadas pelos grupos e que têm suas definições, tempos de duração e significados variáveis no tempo e no espaço (ABRAMO, 1994; ROSENMAYR, 1968).

Na sociedade, de modo geral, espera-se que no período da juventude as pessoas façam seus projetos de vida e, para que eles possam se realizar, que os jovens utilizem essa fase para desenvolver algumas aptidões e fazer suas escolhas profissionais. No entanto, os jovens não constituem segmento homogêneo, delimitado pelo fator etário e com características universais. Ao contrário, não há juventude e sim juventudes, entendidas como “agregados sociais com características continuamente flutuantes” (CARRANO, 2000, p.12). Assim, é equivocado afirmar que os jovens brasileiros são de tal forma ou pensam e agem de tal maneira (esse pensamento guia muitas iniciativas políticas), ou seja, forjar uma identidade única que englobe todas as diferenças culturais, sociais e econômicas que compõem a variabilidade de modos de vida no Brasil.

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Então, se não há um modelo padrão de jovem, conseqüentemente, quanto à questão do trabalho, há variações das imagens e dos significados do trabalho e do trabalhador, bem como atitudes diferenciadas frente à condição de estar ou não trabalhando. Apesar dessa variabilidade de olhares juvenis sobre o trabalho, em contextos culturais diversos, o trabalho é um dos âmbitos mais importantes, no qual se desenvolvem as relações entre gerações. É por meio dele que se acentuam os mecanismos de socialização para a vida adulta, além de se desenvolverem processos de reprodução econômica e social (CHIESI e MARTINELLI, 1997).

Transformações no mundo do trabalho e o segmento juvenil

A partir da segunda metade do século XX, com a introdução de inovações tecnológicas e organizacionais, a implantação da doutrina neoliberal e o processo de globalização dos mercados financeiros e de capitais, o mundo do trabalho passou a sofrer profundas, rápidas e sistemáticas transformações.

Para Ianni (1996), a principal característica do mundo do trabalho hoje é o fato de ele ter se tornado global. Globalizam-se novos e antigos problemas: o desemprego (DEDECCA, 1996; MATTOSO, 1999), o desassalariamento (POCHMANN, 1998), a terceiromundização de cidades do Primeiro Mundo, a generalização do preconceito (cor, sexo, idade, dentre outros), a formação da subclasse (IANNI, 1996), a nova pobreza (CATTANI, 1996), a exclusão. Na esfera produtiva, ampliam-se os postos temporários, os terceirizados, os flexibilizados, concomitantemente com sistemas de trabalho mais antigos como o infantil, o escravo, o servil, o doméstico, o artesanal, o familiar, o patriarcal, o paternalista, o clientelista, além do aparecimento e da disseminação do trabalho precário.

O trabalho precário representa uma degradação do próprio trabalho e do trabalhador, principalmente do trabalho na forma de emprego, que é historicamente cunhado por direitos sociais. Esse tipo de atividade precária apresenta características relacionadas à ampliação da desregulamentação, sobretudo quanto à perda de direitos adquiridos pelos trabalhadores, presentes na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT de 1946), e às condições pioradas de trabalho. Para ilustrar isso, serão apresentados alguns aspectos gerais e tópicos relacionados.

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Quanto ao vínculo empregatício (contrato), há predominância dos por tempo determinado e por empresa, individual e unilateral, ou ainda sem contratação, o que provoca alta rotatividade. Também não há proteção contra demissão arbitrária (sem justa causa) e proibição de discriminações (salarial, funcional e de admissão). Além do não-registro em carteira, também não são disponibilizados os serviços e benefícios previdenciários (como licenças, auxílios e seguros) e o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS).

Já os pagamentos são considerados sub-remunerações, tais como por produção por serviço ou tarefa, por hora e comissões, havendo também casos de não-recebimento, como nos trabalhos voluntários, realizados para membros da unidade domiciliar ou para instituições. Também não há garantia de décimo terceiro salário e de adicionais por atividades noturnas ou especiais (penosas, insalubres, perigosas), além das horas extras.

As jornadas, em geral, são marcadas pela intensidade e indefinição, sem o parâmetro de 44 horas semanais, com um dia de repouso garantido por lei, enquanto as condições de trabalho muitas vezes não têm estrutura básica, expondo o trabalhador a riscos diversos.

Nesse quadro, as relações de trabalho acabam ficando “deterioradas” (MATTOSO, 1999), uma vez que o incentivo é dado à competitividade extrema, com diminuição de solidariedade e o surgimento de falsas cooperativas de trabalho, alimentando o individualismo (cada um por si) e a não-participação coletiva (em movimentos sociais como sindicatos).

Alguns autores nomeiam e caracterizam o trabalho precário da seguinte forma: instabilidade, vulnerabilidade, submissão, precariedade, dependência, heteronomia, situação de moratória (BAJOIT e FRANSSEN, 1997), degradação social e individual (CATTANI, 1996), socialização do transitório (MOLITOR, 1987, apud BAJOIT e FRANSSEN, 1997), provisório-permanente (CATTANI, 2000).

O trabalho precário, portanto, é alicerçado na instabilidade , aliás, a expressão parece contraditória, mas foi utilizada propositadamente. O trabalho como base de sustentação material, afetiva, psíquica, moral, social, ou seja, o alicerce no desenvolvimento do ser individual e social, passa a ser construído em terreno instável, que a qualquer momento pode sofrer abalo, e se destruir tudo o que foi concretizado.

Sobre essa situação, Castel (1998, p.515-516 e 526) apresenta um olhar crítico e desolador:

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Esse processo parece...

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