Jornada de trabalho e o direito à saúde dos motoristas de caminhão

AutorRafael de Araújo Gomes
Páginas237-252

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Rafael de Araújo Gomes1

Jornadas praticadas no transporte rodoviário de carga

Muitas pessoas sabem que os motoristas de caminhão no Brasil cumprem longas horas de trabalho à frente da direção. A maioria das pessoas não sabe, entretanto, o que “longas horas de trabalho” significa em concreto, na prática, na realidade brasileira. O problema é notório, sem dúvida, a maioria das pessoas sabe que é inclusive antigo, mas não se tem ideia do seu tamanho, e exatamente por isso a sociedade acaba, de certa forma, consentindo com sua persistência, pois não visualiza gravidade.

De acordo com estudo2 elaborado pela Confederação Nacional de Transporte (que representa as empresas do setor), 51,5% dos caminhoneiros trabalham de 13 a 19 horas por dia, 10,4% trabalham mais de 20 horas diárias, sendo que a jornada de trabalho média dos caminhoneiros é de aproximadamente 15 horas.

Veja-se, entretanto, que essa é a jornada média apurada, o que significa que há casos em que a jornada praticada é inferior a isso, e outros casos em que é superior a 15 horas.

Quão superiores a 15 horas tais jornadas podem ser?

O Ministério Público do Trabalho tem obtido resposta a tal pergunta a partir de operações de fiscalização que tem realizado periodicamente em parceria com a Polícia Rodoviária Estadual de São Paulo, principal-mente na Rodovia Washington Luiz, uma das mais movimentadas do Estado.

Em um caso concreto, relativo a motoristas que transportavam açúcar para uma das maiores empresas de logística do país, os relatórios “diário de bordo”, gerados eletronicamente, incluíam uma coluna com o título “Hr Trb”, ou seja, total de horas trabalhadas. Ficou desde logo afastada qualquer alegação de que tal montante diria respeito a “tempo de espera” ou algo do gênero. Tratavam-se das horas que o próprio empregador reconheceu como sendo de efetivo trabalho.

Vejamos, exemplificativamente, alguns registros lançados em tais documentos (cada número abaixo corresponde ao total de horas trabalhadas em uma única jornada de trabalho).

Motorista A: 10:53 horas, 10:04, 12:00, 01:16, 09:11, 05:42, 12:03, 35:00, 10:24, 09:18, 03:03, 12:31, 11:03, 14:12, 15:26, 11:08, 02:30, 20:20, 14:25, 10:58, 15:36, 11:43, 04:29, 12:42, 14:28, 12:39.

Motorista B: 11:55 horas, 11:31, 09:07, 13:01, 11:31, 05:28, 11:22, 13:01, 07:00, 11:40, 13:41, 14:57, 11:13, 06:48, 29:57, 11:00, 19:27, 13:48, 13:47, 02:58, 13:45, 12:36, 13:12.

Motorista C: 15:47 horas, 06:29, 18:04, 11:42, 06:18, 01:36, 14:19, 12:30h, 11:40, 17:45, 01:09, 17:34, 23:08, 10:33, 11:43, 08:38, 13:23, 14:10, 14:24, 15:34, 05:43, 12:26, 20:07, 16:19.

Motorista D: 14:45, 10:20, 14:29, 09:09, 14:44, 02:43, 13:37, 06:40, 04:41, 12:09, 13:49, 07:43, 10:21h, 00, 09:16, 16:16, 09:07, 10:38, 12:24, 08:34, 17:10, 09:22, 11:20, 12:22, 23:59, 13:20, 12:30.

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Motorista E: 11:47 horas, 14:02, 17:36, 09:04, 00:25, 12:36, 12:23, 09:50, 11:30, 04:27, 11:17, 09:20, 03:20, 11:10, 13:29, 11:14, 26:43, 13:53, 00:18, 06:19, 10:15, 12:41, 09:27, 06:57, 00:26, 15:10, 11:26.

Motorista F: 13:44 horas, 00:41, 07:26, 09:54, 14:21, 09:47, 12:32, 00:50, 12:53, 10:22, 15:58, 01:25, 22:19, 09:33, 11:12, 12:56, 10:07, 05:18, 14:33, 15:26, 10:27, 12:55, 31:32, 14:52, 12:30, 11:27.

Note-se que não apenas mostra-se habitual a extra-polação do número de horas extras admitido pela legislação, como ainda se chega, em vários dias, a se praticar uma jornada de trabalho superior a 24 horas. Ou seja, o “dia” de trabalho desses motoristas, envolvidos em dirigir pesados caminhões por rodovias de tráfego intenso, possui em diversos casos mais de 24 horas.

Chama a atenção do caso do trabalhador que cumpriu uma jornada “diária” de 35 horas. Essa jornada teve início às 06:05h do dia 23 de junho de 2015, e só foi se encerrar às 20:05h do dia seguinte. Além disso, na jornada imediatamente anterior a essa, o trabalhador já tinha dirigido por 12 horas, e na jornada imediatamente seguinte trabalhou mais de 10 horas.

Observe-se, ainda, que essas são as jornadas formalmente reconhecidas pela empresa transportadora, havendo motivos para crer que a jornada efetivamente praticada atingia patamares inclusive maiores.

Não se imagine que esses são casos isolados. Antes da edição da Lei 12.619/2012 (“Lei do Descanso”), que apesar de seus vários defeitos buscava atenuar o problema do excesso de jornada no setor, o habitual em operações de fiscalização realizadas pelo Ministério Público do Trabalho era a identificação de um ou mais casos de jornadas superiores a 24 horas (sendo que em cada operação são parados de 20 a 30 caminhões).

Constatou-se uma lenta evolução após a entrada em vigor da Lei n 12.619/2012, chegando-se ao ponto em que as operações não mais flagravam casos de jornadas superiores a 24 horas.

Infelizmente, após a revogação da Lei n. 12.619/2012 pela lamentável Lei n. 13.103/2015, editada para atender aos interesses econômicos do setor do agronegócio (como se discutirá com maiores detalhes a seguir), passou-se a verificar o retorno às condições anteriores, e voltaram a ser encontrados, durante as operações, casos de jornadas de 24 horas ou mais, por vezes ocultadas pelo manto do “tempo de espera”.

Seja o nome que se dê para a jornada praticada, pontuada ou não pelos “tempos de espera” (que a Lei n. 13.103/2015 não reconhece como sendo período de trabalho), o certo é que temos, em tais casos, motoristas que estão há mais de 24 horas envolvidos em sua atividade laboral e sem dormir, realizando no máximo alguns breves “cochilos”, insuficientes para a plena recuperação das forças físicas e mentais.

Não é por acaso, então, que o jornal Folha de São Paulo divulgou em 2012, em sua TV Folha, reportagem em vídeo com o título “Escravos da Soja”, com a seguinte sinopse:

Crescimento do agronegócio cria ‘escravos da soja’ no Brasil: Uma grave epidemia assombra as estradas brasileiras e tem transformado a vida de caminhoneiros e de suas famílias: o uso do rebite, droga estimulante que cria os “supercaminhoneiros”. É o que informa reportagem de Agnaldo Brito, cuja íntegra será publicada na Folha desta segunda-feira.

Mas o vício não é causa, é efeito. E esse tem levado ao flagelo uma legião de escravos da soja, o trabalhador rodoviário que se impõe jornadas desumanas de trabalho de 16 a até 24 horas. O crescimento do agronegócio, sobretudo da soja, transformou o país em um dos maiores fornecedores mundiais de alimentos. Deu o Brasil divisas que ajudam a ajustar suas contas, mas o custo humano é alto.”3.

Menciono apenas mais um caso concreto, para melhor compreensão da dimensão do problema, e suas repercussões. Em fiscalização realizada em 2016, foi durante a noite parado pela polícia rodoviária um caminhão, e logo outro caminhão espontaneamente parou junto com ele, pois seguiam em comboio.

Os discos do aparelho tacógrafo dos dois caminhões revelaram que os motoristas, empregados da mesma transportadora, já estavam dirigindo há 18 horas praticamente consecutivas naquele dia, com brevíssimas paradas.

Em depoimento ao Procurador do Trabalho, os motoristas reconheceram que: “a jornada que vem praticando nos últimos dias se dá para cumprir os prazos de entrega, e também para evitar assaltos, em razão do alto valor da carga; que há instrução para fazer poucas paradas, por razões de segurança, para evitar assaltos”.

Os seja, tais jornadas, de 18 horas ou mais, são habituais e impostas pela transportadora, que presta

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serviços a uma mineradora. Com um agravante a mais: a carga transportada era radioativa, minério contendo urânio e tório.

Fica-se a imaginar as consequências de um acidente envolvendo tal carga, se o motorista acabar dormindo ao volante, como inevitavelmente acabará acontecendo mais dia, menos dia, e o veículo vier a cair em um córrego, digamos um que abastece de água toda a população de uma pequena cidade.

Contribuição dos embarcadores (donos da carga transportada) aos excessos de jornada

As investigações realizadas pelo Ministério Público do Trabalho, instauradas a partir das constatações oriundas das ações de fiscalização, têm revelado que, na maioria dos casos, os excessos de jornada dos motoristas são não apenas conhecidos, mas permitidos, induzidos ou francamente ordenados pelos grandes embarcadores, contratantes dos serviços prestados pelas transportadoras, principalmente aqueles relacionados ao agronegócio.

Com frequência, tais embarcadores, que correspondem a grandes empresas do setor da carne, suco de laranja, grãos, açúcar, etanol e algodão, dentre outros, exigem que os caminhões possuam sistema de rastreamento por satélite, e também que a informação sobre o deslocamento dos caminhões lhe seja fornecida diariamente, para seu controle.

Tal controle é realizado para fins de segurança patrimonial da carga, mas também para fiscalização do cumprimento dos prazos de entrega, de modo que tais embarcadores sabem, com perfeição, quanto tempo cada caminhão permanece rodando, e, portanto, também ficam sabendo se a jornada dos motoristas está sendo extrapolada ou não.

No caso concreto acima mencionado, de motoristas que chegam a permanecer até 35 horas trabalhando, os contratos de transporte celebrados elas partes previam que:

“...são obrigações da TRANSPORTADORA:

(...)

r – adotar ferramentas eletrônicas e procedimentos que lhe permitam fazer, eletronicamente, a troca de informações a respeito dos Serviços com a Contratante, de acordo com as instruções que lhe forem passadas por esta última;

(...)

z – disponibilizar o sinal de...

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