Joaquim Bandeira: jogos onomásticos e nova gnomonia de Manuel Bandeira a Dalton Trevisan via Joaquim Pedro de Andrade II

AutorJorge Hoffmann Wolff
CargoJorge Hoffmann Wolff é professor adjunto de Literatura Brasileira da Universidade Federal de Santa Catarina e membro do Núcleo de Estudos Literários e Culturais e do Núcleo Juan Carlos Onetti de Estudos Literários Latino-americanos, ambos da UFSC.
Páginas25-38
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Jorge Hoffmann Wolff
E agora, Joaquim?
Carlos Drummond de Andrade1
Creio nas afinidades electivas.
Mário de Andrade2
Com “Joaquim Bandeira” começo: busco as aparições, mais ou me-
nos espectrais, de Manuel Bandeira (1886-1968) na revista Joaquim, dirigida
pelo jovem Dalton Trevisan na década de 1940. Com Joaquim Pedro avanço
e termino, décadas depois, em novo começo: em “Falar cafajeste: De Manuel
Bandeira e Dalton Trevisan via Joaquim Pedro de Andrade”, texto de 2010,3 a
conexão entre os três artistas de três gerações diferentes é exposta através
do chulo e do chulé, isto é, da perspectiva da boca e do beco sujos, da ruína e
da miséria cotidianas, primeiro através do curta “O poeta do Castelo” (1959)
e depois através do longa “Guerra conjugal” (1975). O que eu ainda não sabia
é que Joaquim Pedro (Rio, 1932-1988) já estava de corpo e espírito presente
junto a este “Joaquim Bandeira” de 1948, setenta anos atrás (contando da
data de hoje: 13 de dezembro de 2018), em plena infância fluminense: o me-
nino “bonitinho pra burro mas muito encabulado” do “Rondó do atribulado do
Tribobó”, o poema de Bandeira publicado no número 17 da revista, em março
1 !Ambos atribulados, José é Joaquim e Joaquim é José, isto é, o homem sem nome, sem rumo e
sem nada, como se pode verificar na pergunta refeita por Drummond a partir de seu poema
“José” (1942) em crônica de 1945... Em função da onipresença do poeta mineiro na revista
paranaense, é bem possível que seu título tenha surgido daí.
2 Afirmação feita na terceira carta a Manuel Bandeira, de 1922. ANDRADE, Mário de. Cartas a
Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d., p. 20. Mário recria na carta a cena carioca em
que, na casa de Ronald de Carvalho, mantém o primeiro contato pessoal com Bandeira, após
“exigir” sua presença: “Foi para um reconhecimento. Emprego a palavra com a subtileza dos
poetas japoneses nos seus haicais. Com todas as associações e significações que ela desperta.
E daí em diante esse reconhecimento não cessou de aumentar, florir, frutificar” (destaques do
original).
3 Publicado na revista Letras, v. 82, 2010. Aqui retomo a mesma tríade sob outra perspectiva, a
da poesia, do nome próprio e da circunstância.
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de 1948, era o mesmo e próprio diretor vindouro, responsável pelos dois fil-
mes acima mencionados.4
“O poeta do Castelo” marca a estreia do menino crescido de vinte e tan-
tos anos como cineasta – estreia feita em forma de díptico, ao lado do curta
“O mestre de Apipucos” sobre e com Gilberto Freyre, que termina com o au-
tor de Casa Grande e Senzala lendo poemas de Manuel Bandeira numa rede.
Em “O poeta do Castelo”, de 1959, Manuel Bandeira é o ator protagonista,
enquanto em Guerra conjugal Dalton Trevisan – que então (anos 70) já ha-
via reescrito a “Tragédia brasileira” e a “Evocação de Recife” bandeirianas em
“O senhor meu marido” e “Minha cidade” ou “Em busca de Curitiba perdida”,
além do “Rondó dos cavalinhos” em “Cavalinas” – é o autor dos diálogos es-
pecialmente lapidados para o cinema, a partir de seus próprios relatos, num
total de 16 deles, roteirizados e encadeados por Joaquim Pedro. Seguindo com
os jogos onomásticos, é Manuel Bandeira com Dalton Trevisan via Joaquim
Pedro de Andrade: três vezes “falar cafajeste”, a “nova gnomonia” três vezes.
Seguindo e voltando ao lugar de onde vieram: o passado não cessa de passar
e não passar. Parafraseio o “Manifesto Antropófago”: só o “falar cafajeste” e
a “nova gnomonia” nos une, esteticamente, eticamente, afetivamente. Nosso
itinerário é diverso e um só.5
Mafuá do Malungo
Com esse nome Manuel Bandeira publica seus “versos de circunstância”,
que na realidade são de pouca circunstância, ao menos no sentido redutor de
momento datado, pois, segundo prefiro lê-los, apresentam-se em sua singular
fatura de pobreza e riqueza,6 assim como toda poesia do Manú maduro. Aliás,
sua poética parece surtir sempre um curioso efeito de leitura, o que permite
que nos sintamos como na pele de Mário de Andrade para pronunciar, sem
4 Observo que o que me interessa neste trabalho é antes o aspecto convivial e indicial do que
o referencial e documental ou formal e autoral desta relação: “A poesia de circunstância ao
mesmo tempo me exclui e me chama. Os referentes estão e não estão ali”, afirma Luciana Di
Leone em “Poesia de roda. Notas a partir do convívio poético entre Alfonso Reyes e Manuel
Bandeira”. Sociopoética, v. 1, n. 16, jan. / jun., p. 39, 2016 – ensaio retomado adiante.
5 O “falar cajeste” é expressão encontrável no Itinerário de Pasárgada (1954); a “nova gnomo-
nia” é corrosiva sátira social, conforme crônica de Manuel Bandeira de 1931.
6 “Que humildade o quê! É poesia sofisticadíssima!”, exclamou Carlos Eduardo Capela no debate
que se seguiu à mesa em que este texto foi apresentado no evento Manuel Bandeira promo-
vido pelo NELIC-UFSC e em cujo dossiê, este, se pode ler seu texto intitulado “Lapalissíada e
vigarices”. O parti pris de Capela, portanto (também adotado aqui), é o rechaço do paradigma
de leitura estabelecido pela crítica domesticadora da literatura brasileira, a exemplo do expos-
to em “O humilde cotidiano de Manuel Bandeira” de Davi Arrigucci Jr. (Enigma e comentário.
São Paulo: Companhia das Letras, 1987).
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nenhum pudor, simplesmente Manú. Assim é o Mafuá, o seu esperado livro
onomástico – esperado ao menos pelas amigas e amigos nomeados nele, já
que está recheado de poemetos dedicados a gentes e situações de variados
tempos e espaços, os quais, uma vez e finalmente reunidos, ele botou numa
carta que viajou para Barcelona, na Espanha ditatorial de Franco no imedia-
to pós-guerra. Destinatário, à época vice-cônsul brasileiro na Catalunha: João
Cabral de Melo Neto. Era 1946 ou 47 ou 48 – cada ano durava vários anos en-
tão – e Cabral inauguraria sua tipografia com pequenos livros como o Maf
do Malungo. Fez 110 exemplares do livro menor do poeta menor, cuja poesia,
segundo Afonso Félix de Sousa7 em entrevista à própria Joaquim (no 19, julho
1948, p. 7), seria “a própria alma brasileira desfeita em versos”.
Mafuá é uma feira de rua. Malungo é africanismo que significa camara-
da, companheiro, como esclareceu o próprio poeta no Itinerário de Pasárgada.
Os malungos desse mafuá são, portanto, os comparsas, velhos ou novos,
crianças ou adultos, de vida e da vida do Manú. No “Rondó do atribulado do
Tribobó”, a voz do atribulado é ao mesmo tempo a do louco da aldeia e a do
poeta do Castelo que desdobra a carta, o mapa de uma paisagem imaginária
do interior de Minas Gerais, por origem familiar dos reais anfitriões: o velho
amigo Rodrigo Melo Franco de Andrade – o escritor-funcionário que criou
o Instituto do Patrimônio Histórico do Brasil –, cujos filhos então pequenos
surgem com seus nomes no poema: Rodrigo Luís, Joaquim Pedro e Clara. Mas
naquele tempo, anos 30 ou 40, o interior ainda ficava muito perto do Rio de
Janeiro, e o “vale do Tribobó” de Bandeira não deve ser outro (digamos que o
seja) senão o bairro Tribobó, em São Gonçalo, a menos de trinta quilômetros
do Rio, logo após Niterói. Realidadeficção: ali havia um sítio ou casa de campo
e nesse sítio ou casa de campo, ou seja, nessa circunstância – nessa redon-
deza teriam se passado os acontecimentos do “Rondó”, com a marcação
do refrão que fornece a pesada sensação climática do périplo do poeta leve e
atribulado nos arredores da então capital federal: “Mas era um calor danado!”,
em contraste com o repouso nas redes da casa e do bosque hospitaleiros e
repousantes.
Note-se desde já que, como sugerido acima, “rondó” e “circunstância” são
termos aparentados, ambos remetendo a roda, a circunferência, a ronda, a
7 Poeta então estreante com O túnel, nascido em 1925 em Goiás e falecido no Rio de Janeiro
em 2002, autor de Chamados e Escolhidos (Rio de Janeiro: Record, 2001) e do seguinte haicai:
“Morte completa / dissolve em lento / esquecimento / um poeta”.
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circo, a retorno e a contorno. Lembremos, a esse respeito, as observações de
Mário de Andrade em carta de maio de 1925 a Manú, a propósito de “Não sei
dançar”, o poema de abertura de Libertinagem:
[...] se você organizasse em forma de rondó ficava mais construído. E o rondó
não é nenhum artifício pois está historicamente provado que é forma popular uni-
versal, vem da nossa própria organização psicológica. Você repete duas vezes o
reflexivo “Uns tomam éter, outros cocaína”, pois se tornar a repetir isso como
penúltimo verso repare como organiza mais o poema só por causa do estribilho
que o torna mais rondó e circunferência. A forma mais universal e popular é incon-
testavelmente a da circunferência: serpente mordendo o rabo, a gente acaba por
onde principiou e fica o moto-contínuo balançando sensação.8
Nesse caso, e no presente texto, a forma rondó amarra absolutamente
tudo: desde o próprio “Rondó do atribulado do Tribobó”, então inédito, pu-
blicado por Bandeira originalmente em Joaquim, e os elementos que o cons-
tituem, até o que extrapolaria o poema no futuro através da fecunda relação
de vida das três gerações de artistas. Três gerações que se retroalimentaram
em suas trajetórias, ou melhor, seus itinerários: Manú-Dalton-João Pedro pas-
sando o bastão um ao outro nessa corrente elétrica de poesia-e-vida que atra-
vessou o século XX, com sobras para frente – na figura de Dalton, que segue
ativo aos 93 anos – e para trás – com Bandeira, nascido em 1886. Assim, ba-
lançando tempo e espaços, sensação e afetos, o Joaquim de Manuel Bandeira
era, inicialmente, o menino muito bonito mas muito encabulado do “Rondó
do atribulado do Tribobó”. E, no entanto, quem se apropriou dupla ou tripla-
mente de Joaquim foi Dalton Trevisan: uma vez como nome de sua revista,
“em homenagem a todos os joaquins do Brasil”; outra vez, de modo não de-
liberado, através da publicação do poema de Bandeira na revista em 1948; e
ainda outra vez como Joaquim Pedro de Andrade mesmo, enquanto parceiro
do diretor de Guerra conjugal (1975), ou seja, o Joaquim recriador das mines-
tórias do chamado “vampiro de Curitiba” no cinema.9
8 ANDRADE, Mário de. Cartas a Manuel Bandeira, op. cit., p. 61-62. Bandeira acata o conselho
de Mário. Aquele que seria o refrão de “Não sei dançar” introduz o poema com “Uns tomam
éter, outros cocaína. / Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria”, que é retomado em versos que
vão no entanto se fragmentando nas outras duas ocorrências: “Uns tomam éter, outros cocaí-
na. / Eu tomo alegria!”; no último verso lê-se simplesmente “Eu tomo alegria!”. Cf. BANDEIRA,
Manuel. Estrela da vida inteira. 20. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993 [1966].
9 Grafo minestórias, e não ministórias, como faz Dalton Trevisan, propositalmente, para mistu-
rar com as estórias de João Guimarães Rosa, a quem o escritor paranaense odiaria e amaria,
criticaria e bajularia na mesma proporção nas décadas vindouras.
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Trocando em miúdos, num dos últimos números da revista Joaquim, de-
senhada por Poty Lazarotto e dirigida por Dalton Trevisan,10 o de número
17, de março de 1948, aparece o “Rondó do atribulado do Tribobó”, o qual,
reiteremos, era ainda inédito e seria publicado no mesmo ano na primeira edi-
ção de Mafuá do Malungo pelo tipógrafo João Cabral em Barcelona. Como se
trata de um livro onomástico, atravessado por nomes de homens e mulheres,
daria margem, por sua vez, à formação da série apresentada no presente en-
saio: desde o “E agora, Joaquim?” – de Drummond; a revista Joaquim – com
21 números durante dois anos e meio; o Joaquim Pedro – no “Rondó”; até o
Joaquim Pedro de Andrade – do tio Manuel em curta-metragem; e novamente
o Joaquim Pedro de Andrade – em parceria com Dalton Trevisan em longa-
-metragem. Então e sempre, em homenagem a todos os joaquins do Brasil.
Mas, como propõe Luciana di Leone, a abordagem dos “versos de cir-
cunstância” do poeta de Libertinagem se torna mais interessante sob a ótica
da noção de nome e de circunstância enquanto índices “do passageiro, do
contato e do convivial”,11 o que ela vai mostrar a partir do famoso “Rondó dos
cavalinhos”. Neste poema de 1935, composto de cinco estrofes (quatro qua-
dras e uma septilha) em ritmo de gerúndios encavalados, o poeta se despede
do amigo Alfonso Reyes, em meio a farpas à condição geopolítica mundial. A
circunstância disparadora do poema: um almoço de despedida ao ex-embai-
xador do México no restaurante do Jockey Clube no Rio. Junto a esse aspecto
circunstancial no sentido lato da palavra, o poema contém a típica coloquia-
lidade aliada ao uso de formas simples que sua fortuna crítica se acostumara
a louvar. O que não se costuma levar em conta são justamente os corpos im-
plicados no texto, ou seja, a “trama de corpos e vozes própria das danças de
roda”. Posto que se trata simultaneamente de
[...] um tipo de dança e um tipo de música, um tipo de jogo e um tipo de arte. [...]
Retorno e roda marcam, então, estes gêneros poéticos como aquilo que com eles
10 Os jovens Dalton Trevisan (1925-) e Poty Lazzarotto (1924-1998) formaram um dueto de
artistas à frente da revista Joaquim, um responsável pelos textos, outro responsável pelo de-
senho da publicação – dueto que segue existindo após a morte de Poty: o último livro de
Dalton, O beijo na nuca, de 2014, a exemplo de vários outros, contém ilustrações do velho
amigo. A esse propósito, que tipo de parceria Dalton e Joaquim Pedro teriam constituído no
filme de longa-metragem realizado sob a ditadura militar brasileira? Parecem ter posto em
ação uma parceria tipo Jacques Prévert-Marcel Carné, que imaginaram e realizaram juntos
alguns clássicos do cinema francês, como Les enfants du paradis (conhecido em português
como O boulevard do crime, 1945), ou seja, levaram a cabo uma experiência de escrita em
colaboração em que ambos, escritor e cineasta, têm peso e participação se não equivalentes
ao menos decisivas no produto final. Cf. LAFON, Michel; PEETERS, Benoît. Nous est un autre.
Enquête sur les duos d’écrivains. Paris: Flammarion, 2006.
11 DI LEONE, Luciana. Poesia de roda. Notas a partir do convívio poético entre Alfonso Reyes e
Manuel Bandeira. Sociopoética, v. 1, n. 16, p. 24, jan. / jun. 2016.
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ao mesmo tempo finda e sobrevive: o vínculo do poema com o que não é texto. O
vínculo com a música, com a dança, com os corpos da comunidade e com o que
não tem uma forma fixa.12
Como disse o jovem Mário, em oposição a essa tradição crítica moderna e
construtiva, a forma mais universal e popular é a da circunferência – a roda, o
rondó – e o que resta é “o moto-contínuo balançando sensação”.
O atribulado em Joaquim
12 Ibidem, p. 27-28-29.
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Tantos rondós na poesia de Manuel Bandeira só podiam significar a im-
portância e o interesse por essa poesia menor, como sugere amplamente Di
Leone e o próprio poeta no Itinerário de Pasárgada. Tantos jogos onomásticos
– baseados nessa espécie de ciência patafísica que é a “nova gnomonia” – só
podem reforçar os laços do afeto e do convívio presentes nela, na medida
em que esses poemas-jogos possuem destinatários (explicitados ou não nos
títulos) e são, portanto, envios, dons feitos aos nomeados e marcados tan-
to pelo socius quanto pela segunda pessoa. Entre estes encontram-se muitas
crianças, como as do “Rondó do atribulado do Tribobó”, que igualmente pres-
ta tributo à “Nova Gnomonia”, designação sob a qual o grupo de amigos de
Bandeira – Ovalle, Otto Lara, Augusto Frederico, Vinícius – propôs burlesca-
mente classificar a classe artística, intelectual e política brasileira em torno de
1930. Vamos pois, entre gnomos e humanos, à superfície estriada da circuns-
tância do poema em forma de breve fábula de viagem, composta de quatro
estrofes, as duas primeiras e a última em versos predominantemente octos-
sílabos, a terceira em versos mais longos, todas as quatro concluídas com o
refrão “era um calor danado”: Era uma vez uma casa bonita e avarandada no
vale do Tribobó com “várias cadeiras de lona” e “redes rangendo gostosas”,
adornada, na parte interna, com “uns quadrinhos mozarlescos / como os co-
côs de Clarinha”.
Cabe nesse ponto uma digressão gnomônica, a propósito da crônica
“Nova Gnomonia”, de outubro de 1931, em que Bandeira define o qualifica-
tivo atribuído aos quadros nas paredes da casa, com referência a ninguém
senão o pintor Cícero Dias (mas também ao Conselheiro Acácio...). Pois o
“mozarlesco” em questão não é referência ao grande compositor alemão e sim
ao obscuro escritor e professor cearense Francisco Mozart do Rego Monteiro,
cuja pretensão, ingenuidade e inépcia são comparadas a excrementos infantis
no poema.13 O “compositor” Jayme Ovalle teria sido o responsável pela pro-
posta da “Nova Gnomonia”, incluindo a realização de um congresso especial-
mente dedicado à nova ciência, conforme anunciado na crônica homônima
de Manuel Bandeira, burla publicada pelo Diário Nacional, o jornal do Partido
Democrático (Diário Nacional: A Democracia em Marcha, São Paulo, 17 ou-
tubro 1931). Nela, o sarcasmo onomástico ou gnomomástico definia e con-
trastava os homens em cinco categorias. Primeiro, os membros do “exército
do Pará” – empreendedores-predadores do norte retirados às capitais do su-
13 “Merda e ouro” é, por sinal, o título de um poema de Paulo Leminski, quem provavelmente
acabaria incluído entre os “mozarlescos”, como se verá.
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deste, em que se incluiriam vários pernambucanos, não nomeados; em se-
gundo lugar viriam os “dantas” (inspirados no diplomata San Thiago Dantas),
os quais se caracterizariam por ser modestos e nobres, a exemplo de São
Francisco de Assis, Spinoza e Capistrano de Abreu; terceiros, os “kernianos”
(inspirados no jornalista e compositor Ari Kerner Veiga de Castro) seriam tão
bons quanto irascíveis, a exemplo dos poetas Byron e Verlaine, bem como de
D. Pedro I e Greta Garbo;14 em quarto lugar – “difíceis de definir”, segundo o
cronista – vêm então os “mozarlescos”, os quais se caracterizariam por pre-
tensiosos, ingênuos e ineptos simultaneamente, com exemplos de diferentes
gradações, do Conselheiro Acácio de O primo Basílio até a figura do pintor
Cícero Dias, já que, escreve o poeta, “em todo poeta existe algo de mozarles-
co”; e, por fim, em quinto lugar, haveria os “onésimos” (inspirados no advo-
gado Onésimo Coelho) que seriam passivos mas disciplinados, destacando-se
entre eles Swift, Heine, Sterne e Gilberto Freire.15
Na segunda estrofe descreve-se um bosque diante da casa, “todo de ma-
deira de lei”, em cujas sombras “era bom ficar fumando / embalançando nas
redes / contando bobagens”, e em que o ritmo dos gerúndios, como no “ran-
gendo” da primeira estrofe, remete à distensão, à preguiça e ao prazer: “Mas
era um calor danado!”. Já, na terceira estrofe, os versos se estendem na descri-
ção material da casa moderna e confortável, equipada com itens então ainda
excepcionais no campo, como “luz elétrica gelo instalações sanitárias com-
pletas / Água quente de serpentina a qualquer hora do dia”, além da “Comida
ótima”.16 Em seguida, é feita a descrição humana da casa, na qual se destaca
“A mulher do homem que estava passando uns tempos no sítio / era uma
senhora distintíssima”: aqui Rodrigo Melo e Franco de Andrade e a esposa
Graciema Prates de Sá (conforme o seu nome de solteira) não são nomea-
dos, ao contrário dos três filhos, delatando a paternidade: “Rodrigo Luís, que
quando se referia aos planetas dizia ‘o Vênus’, ‘o Mártir’, etc; Joaquim Pedro
bonitinho pra burro mas muito encabulado; e Clarinha, a mesma de cujos co-
côs já falei atrás” ... “O atribulado achava tudo isso delicioso familiar bucólico
repousante / Mas era um calor danado!”.
14 Entre estes, em futuro próximo, seria possível incluir Dalton Trevisan, sendo ele cria do “de-
satino da rapaziada”, para empregar o título do livro de Humberto Werneck (O desatino da
rapaziada. Jornalistas e escritores em Minas Gerais (1920-1970). 2. ed. São Paulo: Cia. das
Letras, 2012).
15 Diga-se de passagem que apenas Ari Kerner é referido de fato na crônica de Bandeira; os
demais nomes foram revelados a posteriori por Humberto Werneck. Já o sobrenome do autor
de Casa Grande e Senzala aparece com “i”.
16 As instalações modernas também serão vistas no apartamento de “O poeta do Castelo”, que
Joaquim Pedro filmará em fins dos 50.
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Na última estrofe, relata-se o percurso final em movimento constan-
te, desatado por um incidente, provocando “pânico tremendo / no sítio do
Tribobó”: falta água na véspera da partida e o atribulado “embarafusta” para
a cidade. No caminho de volta se desloca “sacudido num fordinho” por várias
localidades até Niterói, onde o viajante fabuloso de fim-de-semana toma a
barca rumo ao Rio. Nesta barca ocorre um encontro inesperado: “por cúmulo
do azar / surgiu o Martins errado!”, em versos que são sucedidos pelos quatro
finais, os quais aparecem entre parênteses e reforçam a impressão de um des-
fecho apressado em mais de um sentido: “(Não havia possibilidade de evasão
/ Nascer de novo não adiantava / Todas as agências postais estavam fechadas
/ Fazia um calor danado!)”. Pois o que chama a atenção na conclusão dedica-
da ao “Martins errado” (fosse quem fosse), que a acelera e extravia ao mesmo
tempo, é que dois dos versos finais do “Rondó do atribulado do Tribobó” são
autoplágios, retirados de dois noturnos de Libertinagem, o “Noturno da para-
da Amorim” – em que se lê “Todas as agências postais estavam fechadas” no
último verso – e o “Noturno da Lapa” em que se lê, na quarta estrofe “Nascer
de novo também não adiantava”.
Pois bem: o rondó que vamos lendo foi estampado no centro da edição 17
da Joaquim, à página 11, seguido do relato “Terra” de Dalton Trevisan (ilus-
trado por Poty) e de um poema de Ledo Ivo, “A contemplação” (ilustrado por
Yllen Kerr). Observando essa sequência percebe-se bem a função da revista,
que era a de promover nacionalmente o seu diretor vitalício, o que de fato se
deu. Mas os três textos manifestam outra coisa mais instigante e reveladora
do estado-da-arte da época, no pós-guerra em fins dos anos 40: a tensão per-
manente entre o vanguardismo de 22 – risonho, leve e frívolo – e a Geração
de 45 – solene, pesada e reativa, ambos igualmente influentes então. Joaquim,
alta e magra, moderna e modernista, eclética e esquizo, nunca passava das
vinte páginas e tinha mais ou menos um terço dos seus grandes espaços dedi-
cados a reclames publicitários (como então se dizia). Navegava nessa contra-
dição entre burgueses e antiburgueses de Curitiba, paranistas e antiparanistas
(a meia dúzia de “novíssimos” locais), entre o modernismo de 22 e o antimo-
dernismo de 45. Publicou muita poesia de Vinicius de Moraes, Drummond,
Ledo Ivo, José Paulo Paes, Sosígenes Costa, Waltensir Dutra, além de poesia
traduzida (Eliot e Rilke, por exemplo) ou mesmo no original (como no caso
de um poema de Lorca e outro de Tzara), colocando-se sempre nesse precá-
rio fio da navalha, ousada e contraditória. Apresentam-se, portanto, escritos
de Oswald e Mário de Andrade, assim como o poema de Manuel Bandeira, os
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quais convivem, porém, com a própria crítica que se fazia deles por aqueles
anos, tendo à frente um intelectual que foi próximo do jovem Dalton, Wilson
Martins.17 Em um instantâneo devastador sobre esse contexto – o de uma
ambígua resistência à “República de Curitiba” nascente –, a revista tinha ao
menos uma pretensão enunciada como certeza: “Por tudo, a literatura para-
naense inicia agora”. Certeza que se consolida aos poucos, pois esta mesma
frase aparece tanto em manifesto anônimo à página 3 do número 9, “A gera-
ção dos vinte anos na ilha”, de março de 1947, quanto em trecho do mesmo
manifesto republicado numa das últimas edições, a de número 18, de maio de
1948, também à página 3 (ou seja, abrindo a revista), mas então como textos
com nome e sobrenome: Dalton Trevisan.
Assim, heterogênea, cravejada de paradoxos, Joaquim se caracterizou
pela colagem de textos breves em colunas fixas como “Revista” e “História
Contemporânea” e pela montagem, a miscelânea de textos e imagens em cla-
ro-escuro sobre páginas amplas e limpas para os padrões da época, esculpidas
artesanalmente por Poty e Dalton na oficina da rua Emiliano Perneta, 476.18
Ocorre que a chamada “Geração de 45” esteve de fato presente na revista, em
tensão com os mais destacados modernistas. Tensão manifestada, por exem-
plo, à página 4 do número 18, através da reprodução de um certo “Manifesto
dos Novíssimos”, dentro da melhor tradição da burla oswaldiana, em que se
propunha uma versão paródica sob a denominação de “Geração do Primeiro
Semestre de 1948”, expondo o embate ocorrido entre Domingos Carvalho da
Silva – como “sombra de Sérgio Milliet” – e o próprio Oswald de Andrade. Ali
os “novos” ou “novíssimos” se querem insatisfeitos com “as duas soluções”,
contra os “clichês” de 22 e contra o limitado romantismo e parnasianismo
reacionário de Carvalho da Silva.
Observo ainda, em se tratando deste caleidoscópio onomástico de
artistas brasileiros afrancesados, que outro Bandeira – que não Manuel nem
Joaquim – passeou pelas páginas da revista: neste caso, Antônio Bandeira, o
pintor cearense, de quem Poty afirmaria o seguinte em entrevista ao “repór-
ter” D. T. na mesma edição e apenas quatro páginas antes do “Rondó do atri-
bulado do Tribobó”: “Um dos tipos mais populares de Montparnasse é o pintor
17 Será este o “Martins errado”? De todo modo Wilson Martins, conservador até a medula, foi o
crítico que insistiria que estava tudo errado quanto aos rumos da literatura brasileira.
18 O nome da rua figurando como a burla ready-made que chamou a atenção de Drummond em
carta publicada no segundo número, na medida em que na página ao lado se leria a invectiva
do jovem Dalton contra o simbolismo e o paranismo em “Emiliano, poeta medíocre” (Joaquim
n. 2, jun. 1946).
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cearense Bandeira” (p. 6). Igualmente no número 18, Poty, como correspon-
dente francês de Joaquim, destaca “Antonio Bandeira em Paris” em quatro
parágrafos festivos.19 Igualmente aparece Otto Maria Carpeaux, colaborador
desde os primeiros números, acumulando regras sobre a “crítica literária” (a
exemplo de Wilson Martins sobre diversos temas), sendo finalmente banido
da revista, na última edição, após a crítica ácida e anônima da invectiva “500
ensaios”, em que Carpeaux é visto como um erudito pretensioso que des-
conhece por completo o Brasil. Sua autoria seria mais tarde atribuída não a
Dalton Trevisan mas a Temístocles Linhares, mas foi o diretor da revista quem
pagou a conta: o crítico de origem austríaca se vingaria com uma resenha
negativa do livro de estreia de Dalton, Novelas nada exemplares, que, segun-
do Carpeaux, era composto de relatos e personagens mal-acabados, fazendo
com que o livro sequer parasse em pé.20 No entanto, o próprio Temístocles,
com tal nomenzarrão e não menos despudoradamente, faz à página 11 o elo-
gio do diretor de Joaquim em “Antecipações sobre um contista” – algo que
tanto Sérgio Milliet (brevemente) quanto Wilson Martins (mais detidamente)
haviam feito antes na própria revista.
Enfim, Dalton Trevisan é Joaquim, Joaquim é Trevisan, também Bandeira,
também Andrades, também Martins (certo ou errado?), também Paes, tam-
bém Domingos. Dalton Trevisan se livraria sem nunca se livrar desse fardo – o
de estar no fio da navalha entre 22 e 45, o de gravitar entre a vanguarda e a
retaguarda – criando aos poucos um caminho único e exclusivo, forjado a faca
em cada prosa, em cada frase, em cada haicai, em cada disparate, em cada
elipse, em cada faca no coração do texto ou – em versão um pouco mais atual
– em cada pico certeiro na veia de suas minestórias ou mal traçadas linhas.21
O fato é que o “Rondó do atribulado do Tribobó” voltaria à baila no nú-
mero 19 de Joaquim, em julho de 1948, que se abre com a seção “Revista” na
qual aparece uma curiosa admoestação do “espírito de 22”: o objeto da crítica
francamente negativa é justo o rondó escolhido e enviado por Bandeira para
publicar de forma inédita na revista, e que ela própria havia destacado dois
19 Ao lado do importante ensaio “Post-Modernismo” (n. 18, p. 5), de José Paulo Paes, em que
fala pelos novos de sua geração e de imediato afirma que “não temos programa” e “não temos
sensibilidade comum”. No entanto, “valemo-nos [...] da liberdade de pesquisa conquistada
pelos modernistas”, apontando na figura de Drummond o da “influência decisiva” mas, ao
mesmo tempo, pondo o dedo na ferida de sua “personalidade pequeno-burguesa”.
20 A crítica impiedosa de Carpeaux, “Pretensão sem surpresa”, publicada logo após o lançamen-
to do livro, está disponível para leitura na internet. “As histórias curtas do Sr. Dalton Trevisan
não surpreendem”, concluiria o artigo em resposta direta aos “500 ensaios”.
21 Como se intitula a segunda seção, repleta de cartas, de Desgracida (Rio de Janeiro: Record,
2010).
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números antes. Edmur Fonseca é quem assina o ataque ao poema no primei-
ro texto da seção, cujo título é “E agora, José?”, o lema drummondiano dos
interlocutores mineiros da revista Edifício, de Belo Horizonte, lema extensivo
a toda essa geração do pós-guerra. Ainda que também sobrem farpas para
Drummond, quando Fonseca ousa afirmar, de forma categórica e irônica e em
tom desafiador, o que segue:
Aparecem as interrogações, a insatisfação e o abismo que nos separa de 22 e tudo
nos leva a perguntar o que se poderia dizer, aqui, do sorriso desencorajado e hu-
mor provinciano de Carlos Drumond [sic] de Andrade; de Murilo Mendes e suas
malcuidadas trombetas de Jericó; de Oswald de Andrade e seu cabotinismo cabo-
clo; de Jorge de Lima e tantos, tantos senhores do poema piada, poetas do pau
brasil, queiram ou não, mestres do verso sobre acontecimentos, da poesia feita
com o corpo, a gota de bile e as caretas de gozo e dor no escuro, rapsodos senti-
mentais, dramáticos, invocativos. Incapazes já de superar o realizado, repetem-se
em brincadeiras inconsequentes, muito gostosas, muito líricas, muito simpáticas,
como o “Rondó do atribulado do Tribobó” que até parece a mameluca tão maluca
da maloca do próprio Manuel Bandeira.22
Dos “despojos de 22”, o texto propõe um único resgate, o da poesia de
Mário de Andrade, “incompreendida e silenciada por uma grande maioria”. No
texto seguinte da mesma seção “Revista”, assinado por Valdemar Cavalcanti,
a “nova geração” digna do nome seria composta por Ledo Ivo, Maria Julieta
Drummond de Andrade, Wilson Martins e Hélio Pellegrino... Além do elogio
das revistas paulistas e mineiras, Fonseca conclui o breve texto com um pará-
grafo dedicado à revista paranaense: “O grupo de Joaquim, [...] esse transfor-
mou-se num caso nacional, destinado, talvez, a ser lembrado amanhã como
hoje aludimos ao grupo de Cataguazes [revista Verde, 1928-29], quando foca-
lizamos a evolução histórica do pensamento modernista”. Já o texto seguinte
faz o elogio da nova geração do Pará através da revista Encontro, cujos direto-
res eram Benedito Nunes, Haroldo Maranhão e Mário Faustino.
Depois das três primeiras páginas em tom de manifesto, o número 19
é inteiramente dedicado às artes plásticas e à “prata de casa”, que é a mes-
ma expressão do título da entrevista concedida por Poty a Erasmo Pilotto.
Este havia sido diretor da revista nos primeiros números, mas a abandona
por ser, digamos, admirador confesso de Emiliano Perneta, de cujas Poesias
Completas (1945) foi o prefaciador. Já a página 6 é iluminada, à esquerda e no
alto, pela cabeça sorridente de Mário de Andrade com seus óculos estilo John
22 FONSECA, Edmur. E agora, José. Joaquim, n. 19, p. 5, jun. 1948.
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Lennon avant-la-lettre, assim como uma foto de Manuel Bandeira, com feição
no entanto séria, ilustra o “Rondó do atribulado do Tribobó”. Digamos, para
terminar, que estes óculos seriam emprestados ou repassados ao diretor do
longa-metragem Macunaíma, de 1969 (depois de O padre e a moça (1966),
baseado em Drummond, e antes de Os Inconfidentes (1972), já que em 1975
se estabelece um verdadeiro marco no itinerário dos joaquins, quando é lan-
çado ao mundo o filme Guerra conjugal – e antes ao mundo que ao Brasil, em
função da censura dos anos de chumbo (que acabam de retornar efetivamen-
te no presente, 2019, como farsa e tragédia ao mesmo tempo). O curitibano
“Joaquim Bandeira” reaparece em cena ao lado do carioca “Joaquim Pedro de
Andrade” – igualmente nosso personagem – no delírio realista-tropicalista
do filme, que Dalton Trevisan vai promover e celebrar, em gesto tão compre-
ensível quanto raro. A partir daí cada um vai fazer literalmente o que quiser,
quero dizer: Dalton, consagrado contista, passa a experimentar cada vez mais
em direção ao múltiplo mínimo comum, com antologias cada vez mais “des-
generadas”, como vem ocorrendo até a década atual, enquanto Joaquim Pedro
vai realizar o longa O Homem do Pau Brasil (1981), seu réquiem dedicado
a Oswald de Andrade, após o divertimento hortifrutierótico Vereda Tropical,
média-metragem de 1977 inspirado em um relato de revista masculina.23
Joaquim Bandeira, Joaquim José ou Joaquim Pedro: sempre em homenagem
a todos joaquins do Brasil, mas à sua maneira paradoxal e ambivalente, vale
dizer, de modo invariavelmente sacrificial e fadado ao fracasso, entre a cruel-
dade e o sarcasmo, posto que se trata do homem sem nome, sem rumo e sem
nada.
23 Recentemente homenageado e atualizado por Adriana Calcanhoto no concerto-tese “A Mu-
lher do Pau Brasil” (2018), resultado de residência artística na Universidade de Coimbra.
Recebido em 18 de dezembro de 2018
Aceito em 12 de fevereiro de 2019

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