It's all in your head? - A utilização probatória de métodos neurocientíficos no processo penal

AutorSandra Oliveira e Silva
Páginas477-512
Revista Eletrônica de Direito Processual REDP.
Rio de Janeiro. Ano 13. Volume 20. Número 1. Janeiro a Abril de 2019
Periódico Quadrimestral da Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Processual da UERJ
Patrono: José Carlos Barbosa Moreira (in mem.). ISSN 1982-7636. pp. 477-512
www.redp.uerj.br
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IT’S ALL IN YOUR HEAD? A UTILIZAÇÃO PROBATÓRIA DE MÉTODOS
NEUROCIENTÍFICOS NO PROCESSO PENAL1-2
IT´S ALL IN YOUR HEAD? NEUROSCIENTIFIC METHODS AS AN
EVIDENCE RESOURCE IN CRIMINAL PROCESS
Sandra Oliveira e Silva
Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade
do Porto, Portugal. Membro Efetivo do Centro de Investigação
Interdisciplinar em Crime, Justiça e Segurança da FDUP
(CJS). Investigadora do Centro de Investigação Jurídico-
Económica da FDUP (CIJE). Porto, Portugal. E-mail:
sandra.silva@fdup.pt
RESUMO: O presente artigo analisa o emprego de métodos neurocientíficos no processo
penal, especialmente no tocante à produção de provas.
PALAVRAS-CHAVE: Métodos neurocientíficos; provas; processo penal.
ABSTRACT: The presente article analyses the use of neuroscientific methods as an
evidence resource in criminal process.
KEYWORDS: Neuroscientific methods; evidence; criminal process.
I. Neurociências e direito penal It’s all in your head? (sobre reducionismo,
determinismo e liberdade humana)
1. Nas últimas duas décadas, os progressos vertiginosos na área da neurobiologia e da
genética médica abriram caminho à ilusória possibilidade de conhecimento integral da
1 Artigo recebido em 01/04/2019, sob dispensa de revisão.
2 O artigo que de novo se publica foi originalmente escrito para integrar os E studos Comemorativos dos 20
Anos da FDUP, II, Coimbra: Livraria Almedina / FDUP, pp. 713 -751.
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Rio de Janeiro. Ano 13. Volume 20. Número 1. Janeiro a Abril de 2019
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«natureza humana». E um conhecimento sublinhe-se logrado já não no patamar
teorético das elucubrações filosóficas, mas no terreno concreto e situado da experimentação
empírica.
É precisamente na promessa inconclusa de acesso franqueado e irrestrito ao âmago mais
nuclear do «ser-se pessoa» que reside o fascínio das neurociências (3). Conhecer os
mecanismos e motivações da ação humana, antecipar comportamentos perigosos ou
desviantes, aceder aos pensamentos privados e à memória de outra pessoa não seriam já
somente os ingredientes elementares das sociedades distópicas imaginadas por George
ORWELL (1984) e Philip K. DICK (Minority Report) (4). Tratar-se-ia agora de possibilidades
reais e tangíveis com sérias implicações filosóficas, éticas e, sobretudo, jurídicas. A ponto
de se falar numa autêntica «revolução neurocientífica», de que o caudal imparável de estudos
publicados e a proliferação de «neurologismos» são o rasto mais visível (5).
Ao nível do processo penal, a notícia destes progressos foi recebida com sentimentos de
ambivalência. Se, por um lado, surge como sedutora a perspetiva de utilizar métodos
3 O termo «neurociência» foi utilizado pela primeira vez na d écada de 60 do século XX para designar um
campo particular dos estudos interdisciplinares relacionados co m o sistema nervoso central. Em 1971, foi
fundada a Society for Neuroscience, tendo surgido alguns anos depois nas revistas científicas a designação
«ciência cognitiva», associada às investigações que concebem a mente humana como um «conjunto de funções
para a elaboração de informações». A assimilação destes dois campos de investigação deu origem, no final dos
anos 80, à «neurociência cognitiva», ter mo cunhado por George MILLER e Michael G AZZANIGA para referir a
disciplina científica q ue tem por objeto o estudo da conexão entre o funcioname nto do cérebro e a atividade
mental. Objeto deste ramo do saber é, assim, o esclarecimento de como o cér ebro «ativa» a mente. A
emergência, em meados da década de 90, de modernas técni cas de neuroimagem funcional, associando-se às
recentes descobertas na área da genética, desempenhou um papel-chave na compreensão da relação entre o
comportamento, as emoções, a função cognitiva e o substrato neuronal, dando um novo impulso à revolução
neurocientífica em curso. Cf. Alessandro CORDA, «Neurociencias y Derecho penal desde el prisma de la
dimensión procesal», in: Neurociencia y proceso judicial (dirs. Michele Taruffo e Jordi Nieva Fenoll), Madrid:
Marcial Pons, 2013, 109-11.
4 No estado ditatorial imaginado por ORWELL, a «Thought Police» tinha um papel fundamental no controlo do
pensamentos d os cidadãos, cab endo-lhe monitorizar e esquadrinhar as suas atividades (por meio de écrans
estrategicamente situados) em busca de qualq uer indício de uma opinião proibida. A capacidade de aceder ao
conteúdo não exteriorizado da mente é ainda mais clara em Minority Report de Philip K. DICK, que descreve
a forma como os «PreCogs» conseguiam antecipar as intenções criminosas dos indivíduos.
5 Usando aqui o conceito no sentido próprio (o estatístico), é manifesto que o proble ma das neurociências se
converteu numa «moda» e ntre os juristas, como se evidencia pelo número de artigos, obras coletivas e
monografias que o elegem como objeto de estudo. A título de exemplo, e para citar apenas alguns livros
referidos às temáticas do direito e da prova penais, veja-se Bernardo FEIJOO SANCHÉZ (ed.), Derecho penal de
la culpabilidad y neurociencias, Cizur Menor: Civitas / Ar anzadi, 2012; Eduardo DEMETRIO CRESPO (ed.) /
Manuel MAROTO CALATAYUD (coord.), Neurociencias y Derecho penal: n uevas perspectivas en el ámbito de
la culpabilidad y tratamiento jurídico-penal de la p eligrosidad, Madrid: Edisofer, 2013; Michele TARUFFO /
Jordi NIEVA FENOLL (dirs.), Neurociencia y proceso judicial, Madrid: Marcial Pons, 20 13; Michael S. PARDO
/ Dennis PATTERSON, Minds, Brains, and Law: the conceptual foundations of Law and Neuroscience, New
York: Oxford University Press, 2013; e Brent GARLAND (ed.), Neuroscience and the Law: Brain, Mind, and
the scales of Justice, New York / Washington D.C.: Dana Press, 2004.
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neurocientíficos para determinar se são verdadeiras ou falsas as declarações prestadas às
autoridades de perseguição penal ou recuperar memórias ocultas com relevo para a
investigação (p. ex., a dinâmica de um evento criminoso, o local onde se encontra o cadáver
da vítima, a fisionomia do agente do crime), por outro, teme-se que ceder ao «canto de
sereia» representado por estas novas possibilidades de «leitura da mente» signifique a
capitulação do Estado-de-Direito e das liberdades individuais em favor de uma eficácia
repressiva «a todo o custo».
As consequências negativas das descobertas neurocientíficas o mais líquidas do lado
do direito penal substantivo. Com efeito, se todos os comportamentos humanos fossem
predeterminados pela atividade neuronal e, como alguns neurocientistas sustentam,
pudessem ser explicados e antecipados com base nas conexões entre zonas diversas do
cérebro, então perderiam sentido os conceitos da dogmática penal assentes nas ideias de
liberdade e culpa, tornando-se necessária, à primeira vista, uma reconfiguração ab imis
fundamentis dessas categorias nucleares com vista à sua adaptação a um «direito penal “do
efeito” que sancione simplesmente o comportamento com base numa espécie de
“responsabilidade objetiva” — tomando por referência as consequências produzidas, mas
sem ter em conta a condição subjetiva do autor» (6).
2. É esta compreensão mecanicista e determinista das condutas humanas que emerge
das experiências desenvolvidas na década de 80 do século passado por Benjamim LIBET e
replicadas mais tarde por outros neurocientistas. Delas se infere que a reação do cérebro para
executar um comportamento é anterior alguns milésimos de segundo, variáveis consoante
os estudos à própria expressão de vontade do sujeito, ou seja, que o cérebro «se põe em
marcha» para realizar determinada ação (no caso, levantar um dedo ou rodar o punho) antes
mesmo de o sujeito ter consciência de ter tomado a decisão correspondente (7). Estas
6 Michele TARUFFO, «Proceso y Neurociencia. Aspectos generales», in: Neurociencia y proceso judicial, cit.,
20.
7 Por ironia, a intenção inicial de LIBET seria demonstrar no plano empírico aquilo que parece ter contribuído
para negar: o livre-arbítrio humano. As investigações até então realizadas evidenciavam que a seguir à decisão
de realizar um movimento simples o córtex motor enviava um sinal elétrico aos nervos e músculos implicados
no movimento. Esse processo era antecedido de uma certa atividade elétrica no cérebro, que se julgava ter a
função de preparar o movimento e se convencionara designar como «potencial de preparação»
(Bereitshaftspotential, na expressão or iginal em alemão, e readiness p otential, em inglês). LIBET pretendia
determinar em que momento d a sequência da atividade cerebral, supostamente iniciada com a tomada de
decisão e finalizada com o movimento, se produzia o «potencial de preparação». A sua experiência consistiu
em pedir a um conjunto de voluntários que indicassem, por referência aos raios luminosos de um cronómetro

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