O ISS - imposto sobre serviços e a cessão de licença de uso de software

AutorRosana Oleinik Pasinato
CargoMestranda em Direito Tributário pela PUC/SP. Especialista em Direito Tributário pela PUC/SP - COGEAE. Advogada em São Paulo
Páginas264-278

Page 264

Ver Nota1

1. Introdução

Esse artigo visa debater se é admissível, em nosso sistema de direito positivo, interpretar a atividade econômica de cessão de licença de uso de software como obrigação de fazer caracterizadora de serviço e, portanto, passível de tributação pelo ISS -Imposto Sobre Serviço, conforme fez o legislador que positivou esse entendimento na Lei Complementar n. 116/2003.2

Sob outra óptica, aplicável à investigação de qualquer questão prática no campo do direito positivo, o que queremos investigar é se, é possível ao legislador, ou ainda, ao intérprete autêntico do direito na nomenclatura estabelecida por Kelsen,3 conferir significação diversa aos vocábulos que adota na construção da norma jurídica, daquela utilizada usualmente pela comunidade jurídica em dado contexto histórico, a ponto de atribuir outro sentido aos vocábulos empregados na construção da norma.

Page 265

Portanto, seria correto à luz da Constituição da República de 1988, do art. 110 do Código Tributário Nacional e do Direito Civil Brasileiro, o entendimento de que a expressão "licença de uso" significa uma obrigação de fazer e, por conseguinte, um serviço?

Para enfrentar esse problema, adota-mos duas premissas. Aprimeira consistente no conceito de que direito é um fenômeno comunicacional,4 é linguagem prescritiva de condutas. Por tratar-se de ato comunicacional cujo objetivo é regular condutas, o direito é intersubjetivo e necessita de que alguém legalmente legitimado5 emita uma mensagem que será levada por um canal, suporte físico, a um receptor. Esse receptor, por sua vez, construirá o sentido daquela mensagem.6

Portanto, ao construir o sentido de uma mensagem reguladora de condutas, o intérprete está formulando um juízo de valor prescritivo, uma norma jurídica.

Logo, o direito para atingir seu fim último, qual seja regular condutas, necessita ser interpretado, ou seja, impõe-se a construção de normas jurídicas, porque o significado da comunicação será construído a partir do texto.

Porém, esse intérprete não está solto no tempo e no espaço, podendo atribuir qualquer significação às mensagens, a ponto de considerar, como no caso da Lei Complementar n. 116/2003, de que a cessão de um direito, consistente em obrigação de dar, para fins de tributação, seria o mesmo que obrigação de fazer. Obviamente tal liberdade, se possível, instauraria uma espécie de esquizofrenia jurídica e o direito jamais conseguiria realizar os valores dos quais está incumbido, a exemplo da segurança jurídica.7

Para evitar essa contradição é que estabelecemos a segunda premissa deste trabalho, consistente em inserir o intérprete na sua historicidade, que submete o ser humano a determinados pré-juízos e pré-valores que lhe servirão de limites objeti-vos.8

Conforme essa premissa, o direito é objeto cultural, posto que produzido pelo homem e tem por meta prescrever condutas que servem para a realização de valores determinados historicamente.

Esse contexto histórico, porém, para que sirva de limite à interpretação, deve ser estabelecido de forma geral para dada comunidade, como se fosse um recorte no tempo, para que se evite ao máximo a sub-jetividade dos subcontextos que se formam inexoravelmente dentro do contexto geral, tendo em vista a dinamicidade da história e os conflitos de interesse existentes na sociedade.

Estabelecemos então, de forma clara que, para esse trabalho, o contexto histórico ao qual o intérprete está inserido e que por conseqüência o limita é a Constituição da República de 1988.

Assim o elegemos, primeiramente porque os valores históricos a serem realizados pelas normas jurídicas são aqueles que foram introduzidos ou referendados em nosso ordenamento pela Constituição da República de 1988, conforme se afere

Page 266

na norma introdutora constante no seu Preâmbulo, dentre os quais, a segurança jurídica é um deles.9

Por outro lado, a Constituição da República vigente, de acordo com nosso sistema de direito positivo, é o fundamento de validade de toda norma produzida, dessa forma, condicionando as interpretações possíveis aos seus limites, entendendo esses limites não como sendo o próprio texto da Constituição, mas as significações que levou em conta o constituinte para a elaboração do texto.

Nesse sentido, não poderia o legislador da Lei Complementar n. 116/2003, ao construir norma relativa ao art. 156, III, da Constituição da República, que determina a competência dos Municípios e Distrito Federal para instituir tributo sobre serviços de qualquer natureza, utilizar-se de materialidade diversa daquela entendida por serviço no momento histórico da promulgação da Constituição da República. "Permitir ao intérprete ou ao legislador ordinário interessado (que legisla em causa própria) que alterasse o sentido e alcance desses institutos e conceitos constitucio-nalmente empregados, seria permitir que firmasse, sem licença da Constituição, novo pacto federativo, nova discriminação de competência (...)".10

Deixo claro, que essas premissas ado-tadas foram inspiradas nos ensinamentos de Paulo de Barros Carvalho, que por sua obra, dispensa apresentações e Tathiane dos Santos Piscitelli, que fundamentada nas teorias de Ludwig Wittgenstein e Hans-Georg Gadamer, escreveu brilhante Tese de Mestrado, defendida na Faculdade e Direito da USP, que posteriormente veio a ser publicada com o nome de Os Limites à Interpretação das Normas Tributárias.

Passamos então, a aprofundar e esclarecer as premissas adotadas, conforme acima citado, o que se impõe como necessidade, na tentativa de que fiquem claras e bem fundamentadas as conclusões a que chegaremos ao final deste artigo.

1. 1 O direito como linguagem

Afirmamos acima, ser o direito linguagem prescritiva de condutas. Esse conceito encontra seu fundamento na filosofia contemporânea que passou a considerar a verdade, a realidade, como construção lingüística e não como a correspondência entre a proposição lingüística e o objeto. É o pensamento da corrente filosófica denominada "virada lingüística" ou linguistic turn, que representou a ponte de passagem da filosofia moderna para a filosofia contemporânea.

Ao comentar essa mudança de paradigma, que elevou a linguagem como fundamento filosófico e não apenas como instrumento de conhecimento, Manfredo Araújo de Oliveira11 afirma que "isso implica radicalização da crítica do conhecimento, como ela foi articulada nos últimos séculos, pois a pergunta pela verdade dos juízos válidos é precedida pela pergunta pelo sentido, lingüisticamente articulado, o que significa dizer que é impossível tratar qualquer questão filosófica sem esclarecer previamente a questão da linguagem".

Para filósofos dessa corrente de pensamento, a linguagem constrói a realidade e não apenas a designa. Não seria a linguagem uma forma de aproximação da realidade, mas a própria realidade na medida em que a constitui.12 Conforme Manfredo

Page 267

Araújo de Oliveira:13 "Numa palavra, não existe mundo totalmente independente da linguagem, ou seja, não existe mundo que não seja exprimível na linguagem. A linguagem é o espaço de expressividade do mundo, a instância de articulação de sua inteligibilidade".

Por via de conseqüência, sendo a linguagem que constitui a realidade e sendo o direito parte de nossa realidade, produto cultural, criação humana, não poderia ser o direito outra coisa senão linguagem. Porém, uma linguagem que prescreve, que quer realizar valores, moldar condutas para manter a coesão que uma idéia de vida em sociedade pressupõe.

Ora, toda e qualquer linguagem somente pode ser considerada como tal, se for possível realizar uma comunicação, ou seja, se for possível o seu entendimento. Para tanto, é necessário o ato de interpretar, de construir sentido. Assim também o é no campo do Direito.

Porém, essa interpretação não pode ser feita de forma aleatória, de modo a separar texto de contexto, causando enorme sensação de insegurança e descrença no Estado Democrático de Direito instituído pela Constituição da República de 1988.

1.1. 1 O processo de construção de sentido e a norma jurídica

Como já dissemos, adotamos a premissa que Direito é linguagem prescritiva de condutas. "Sistema de signos utilizados para a comunicação, a linguagem jurídica assume, desde logo, a função de conteúdos prescritivos voltados para o setor específico das condutas intersubjetivas".14

Portanto, para aplicar o Direito, é necessária a interpretação dessa linguagem15 que se encontra positivada no sistema de Direito Positivo, o que significa construir normas jurídicas que irão regular as condutas intersubjetivas.

Seguindo esse raciocínio, temos de antemão condições de afirmar que o sentido do texto jurídico de Direito Positivo, não está em seu suporte físico (marcas de tinta sobre o papel ou texto bruto), mas é construído pelo exegeta no processo de interpretação que se inicia a partir da leitura do texto escrito.

Nesse momento, no qual temos apenas o texto escrito, ainda não podemos falar de norma jurídica, mas tão-somente de enunciado lingüístico, que por si só não possui sentido, apenas coerência sintática e nada regula. Para que ocorra a regulação intersubjetiva de condutas que se almeja pela aplicação do Direito é necessário, antes de mais nada, a interpretação do texto, a construção de sentido que se completará com a formação da norma jurídica.

Para Paulo de Barros Carvalho a norma jurídica que tem por fim último a...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT