Isonomia sob enfoques constitucional e internacional: por uma releitura do art. 461 da CLT

AutorMartha Halfeld Furtado de Mendonça Schmidt
CargoDoutora em Direito pela Universidade de Paris II (Panthéon-Assas), diploma revalidado pela UFMG
Páginas71-82

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1. Introdução

Um gerente de empresa, com 20 anos de carreira nela prestados, tem direito à equiparação salarial com outro gerente, em análogo serviço prestado à mesma empresa, com 24 anos de serviço nela prestados? A interpretação literal do art. 461 da CLT afastaria a pretensão, já que o tempo de serviço na função é superior a dois anos.

E se esses gerentes tivessem diferença de tempo de serviço de apenas um ano, mas trabalhassem em localidades distintas e distantes, com custo de vida equivalente? A mesma interpretação literal do dispositivo afastaria a pretensão.

Com efeito, o art. 461 da CLT, caput e § 1º, com a redação dada pela Lei n. 1.723, de 8.11.1952, dispõem que:

Art. 461. Sendo idêntica a função, a todo trabalho de igual valor, prestado ao mesmo empregador, na mesma localidade, corresponderá igual salário, sem distinção de sexo, nacionalidade ou idade.

§ 1º Trabalho de igual valor, para os fins deste Capítulo, será o que for feito com igual produtividade e com a mesma perfeição técnica, entre pessoas cuja diferença de tempo de serviço não for superior a 2 (dois) anos.

A equiparação salarial, tal como assentada na Constituição e nos tratados internacionais ratificados pelo Brasil — tratados esses de direitos humanos — deve se limitar às hipóteses previstas no art. 461 da CLT? A propósito, cuidam os dispositivos de proteção contra a discriminação no salário verdadeiramente de direitos humanos?

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A segunda pergunta deste último parágrafo é mais fácil de ser respondida. É sabido que a Organização Internacional do Trabalho, desde os primeiros anos de sua constituição, preocupa-se com a igualdade de tratamento em matéria salarial. A Convenção n. 19 de 1925 já dispunha sobre esse tema. A OIT, desde sempre, cuida da proteção dos direitos humanos, embora muitas vezes sem dizê-lo expressamente. No sistema internacional de direitos humanos, o art. 23º da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, trouxe a disposição, pelo menos 23 anos depois a OIT, no sentido de que: “(...) 2. Todos têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual.” O direito internacional do trabalho é, pois, certamente, parte da proteção dos direitos humanos universais no trabalho.

Já as primeiras perguntas constituem o ponto de partida deste trabalho. A partir da inquietude que essas indagações geraram no espírito da autora é que a refiexão se desenvolveu, a ponto de considerar que o art. 461 da CLT estabelece presunção apenas relativa para afastar a equiparação salarial, quando ausente algum de seus elementos (igual produtividade e mesma perfeição técnica, na mesma locali-dade e cuja diferença de tempo de serviço não seja superior a dois anos).

Essa presunção, todavia, poderá ser elidida, caso haja alguma circunstância específica que torne despropositada a aplicação infiexível dos critérios objetivos do art. 461. Essa aná-lise, que somente poderá ocorrer diante do caso concreto, levará em conta a aplicação dos princípios-regra de maior importância, de índole constitucional e internacional, com valor superior à legislação infraconstitucional, já que os tratados internacionais de direitos humanos — onde se situam os de isonomia salarial — ratificados pelo Brasil têm status pelo menos supralegal – quiçá constitucional.

Propõe-se assim um novo enfoque jurisprudencial a respeito da equiparação salarial, levando-se em conta não só a norma infra-constitucional, mas também a adoção das perspectivas constitucional e internacional de direitos humanos de índole trabalhista neste campo de aplicação do princípio da não discriminação.

Passemos breve revista em algumas convenções internacionais do trabalho, antes de visitarmos a evolução constitucional neste importante tema da isonomia salarial.

2. Algumas convenções internacionais e a isonomia no trabalho

A partir da constituição da OIT em 1919, no final da 1a Guerra Mundial, as convenções internacionais do trabalho tinham por objetivo estabelecer o equilíbrio assegurador da paz universal e durável, por meio da melhoria da condição social do ser humano.

Em matéria de isonomia, vigoram algumas convenções no plano jurídico internacional. Baseadas no princípio da igualdade de remuneração para um trabalho de igual valor, têm por objetivo a equiparação salarial. Para atingir essa equiparação salarial, é preciso, segundo o direito internacional do trabalho, assegurar igual remuneração para empregos idênticos ou similares e para — aqui está o grande salto em relação à atual redação do art. 461 da CLT — empregos que não sejam idênticos ou similares, mas cujo valor do trabalho é igual.

A Convenção n. 100 da OIT versa sobre “Igualdade de Remuneração de Homens e Mulheres Trabalhadores por Trabalho de Igual Valor”1. Aprovada logo após o término da Primeira Guerra Mundial, teve o contexto do trabalho desenvolvido pelas mulheres durante o conflito. A igualdade de remuneração entre homens e mulheres é considerada uma das primeiras etapas do processo de instauração de melhor equidade na sociedade. Mais de

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60 anos depois da sua adoção pela comuni-dade internacional, ainda hoje é considerada importante instrumento de inspiração e de repercussão do princípio da igualdade de tratamento no mundo.

Em 1958, foi adotada a mais ampla Convenção n. 111 da OIT, que trata da “Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação”2. Em seu art. 1º, “a” e “b”, compreende no termo “discriminação”, respectivamente, “toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidade ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão” e “qualquer outra distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou tratamento em matéria de emprego ou profissão que poderá ser especificada pelo Membro interessado depois de consultadas as organizações representativas de empregadores e trabalhadores, quando estas existam, e outros organismos adequados”.

Observe-se, pois, que não há numeros clausus: a enumeração é exemplificativa, diante da cláusula aberta a “toda e qualquer outra distinção, exclusão ou preferência...”.

Mais de 90% dos Estados-membros da OIT ratificaram essas duas convenções fundamentais, o que demonstra o grande nível de aceitação e de quase consenso sobre os valores sociais e humanos que delas emanam.

Estas duas convenções são consideradas fundamentais pela Declaração da OIT de 1998, relativa aos princípios dos direitos fundamentais no trabalho, dentre os quais se encontra a eliminação da discriminação em matéria de emprego e de profissão. A Declaração de 2008 sobre a justiça social para uma mundialização equitativa afirma que a igualdade entre ho-mens e mulheres e a não discriminação devem ser consideradas como questões transversais na agenda do Trabalho Decente da OIT.

Igualmente a Convenção n. 168 da OIT, “Promoção do Emprego e Proteção contra o Desemprego”3. No art. 6º, estabelece: “1. Todo Membro deverá garantir a igualdade de tratamento para todas as pessoas protegidas, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, religião, opinião pública, ascendência nacional, nacionalidade, origem étnica ou social, invalidez ou idade.

A propósito, a interpretação dos órgãos de controle da OIT tem considerado que cabe remuneração quando há exercício de mesmo trabalho ou trabalho idêntico, mas também quando os equiparandos “realizam trabalho que, mesmo sendo diferentes, são de igual valor”.

A Comissão de Peritos examinou o exemplo da Irlanda, onde o âmbito da noção de “trabalho similar” foi definido como abrangendo desde o “mesmo trabalho” ao “trabalho de mesmo valor”, levando-se em conta o que for preciso em áreas tais como aptidões, esforço físico ou mental, responsabilidade e condições de trabalho4.

Garantias desse jaez, é induvidoso. Em alguns casos, têm sofrido franco retrocesso no ordenamento jurídico pátrio, a exemplo da disciplina em discussão, atinente à rígida interpretação que vem sendo conferida ao art. 461 da CLT, se considerado em sua literalidade.

É preciso então indagar a respeito do lugar do direito internacional no ordenamento jurídico interno. A evolução da internalização

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do direito internacional dos direitos humanos revela que, até 1977, a tradição jurisprudencial no Supremo Tribunal Federal era de preponderância do direito internacional sobre o direito interno5.

De 1977 até 2008, manteve-se o reconhecimento do status de lei ordinária aos tratados e convenções internacionais ratificados pelo Brasil e prevalência da Constituição sobre os tratados ratificados6.

Ocorre que, com o advento da ordem constitucional de 1988, as instituições políticas passaram a ter novos desenhos, o que revelou a necessidade de novos posicionamentos acerca de alguns temas jurídicos, mais adequados aos novos paradigmas constitucionais.

Com efeito, a Constituição da República de 1988 elegeu como princípios fundamentais da nova ordem jurídica a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III); e a prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II).

O art. 5º, § 1º, da Constituição Brasileira de 1988, dispõe que os direitos e garantias fundamentais têm aplicabilidade imediata, vinculando os poderes públicos independentemente do reconhecimento expresso por lei infraconstitucional.

Por sua vez, o art. 5º, § 2º da Constituição estabelece que: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

A Emenda Constitucional n. 45, de 2004, acrescentou o § 3º ao art. 5º, o qual dispõe que: “Os tratados e convenções...

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