Irredutibilidade salarial

AutorAmauri Cesar Alves e Giovanni Antônio Diniz Guerra
Páginas315-319

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O presente artigo, na perspectiva apresentada pelos organizadores da obra coletiva em homenagem à ilustre amiga Profa. Dra. Gabriela Neves Delgado, pretende analisar as possibilidades jurídicas de redução salarial, com destaque para o disposto no art. 468 da CLT, à luz das regras e princípios insculpidos na Constituição da República, especificamente seu art. 7º, inciso VI.

De início, vale destacar que a escolha da temática central é bastante coerente com a linha doutrinária da ilustre homenageada, que acredita e demonstra tecnicamente a possibilidade de ser o Direito do Trabalho modo de afirmação da dignidade humana e que, portanto, não pode ser utilizado como instrumento de precarização das relações entre capital e trabalho. É necessário, então, que se compreenda a legislação trabalhista à luz das normas constitucionais, pois assim se efetiva a valorização social do trabalho que é fundamento da República Federativa do Brasil. Nas palavras da brilhante homenageada, "a efetividade da proteção ao trabalhador e a viabilização do trabalho digno como direito e valor fundamental, poderão ser melhor alcançados por meio da regulamentação jurídica..." (DELGADO, 2006, p. 221). Na mesma linha e em sede introdutória as lições do ilustre Mauricio Godinho Delgado, que também compreende que o Direito do Trabalho, fundado em trabalho livre e subordinado, tem como objetivo assegurar "a preservação da dignidade da pessoa humana, o incremento do valor trabalho, a distribuição de renda, além do controle e aperfeiçoamento do exercício do poder no âmbito da relação de emprego..." (DELGADO, 2012, p. 88). A interpretação e a aplicação de regras celetistas devem ser sempre condicionadas aos valores fundamentais da República, com destaque para a dignidade da pessoa humana.

Infelizmente, entretanto, é comum atualmente a aplicação "flexibilizada" dos direitos trabalhistas, na perspectiva da proteção ao emprego e, consequentemente do empregador, em detrimento da valorização social do trabalho. Márcio Túlio Viana adverte que "o princípio da proteção - matriz de todos os outros - vai se deslocando, em vários momentos, do sujeito-empregado para o sujeito-empregador, a pretexto de que, protegendo-se este, é aquele que ganha" (VIANA, 2004, p. 19). A referida proteção ao empregador reflete substancialmente no salário e na possibilidade de sua redução ao longo do contrato.

O ponto central do presente artigo é a compreensão do permissivo constitucional excepcional contido no inciso VI do art. 7º, que trata da possibilidade de redução de salários mediante negociação coletiva. O objetivo é proporcionar uma melhor interpretação da regra citada, para que o comando constitucional possa ser apreendido e aplicado nas relações empregatícias e para que as regras celetistas sobre salário e alteração contratual observem seu conteúdo elementar.

Preliminarmente, ao ponto central da análise, é necessária uma breve reflexão sobre a interpretação jurídica, na perspectiva das diretrizes centrais da presente obra coletiva. Nunca é demais então lembrar que a melhor interpretação de uma situação concreta envolvendo emprego é aquela que reconhece a supremacia das normas constitucionais. A supremacia da norma constitucional decorre de seu conteúdo, da posição de preeminência do Poder Constituinte originário, da rigidez constitucional e de sua vocação de permanência, conforme esclarece Luís Roberto Barroso (2012). Tal preponderância da norma constitucional, entretanto, somente desponta clara no mundo a partir da segunda metade do século XX, e, no caso brasileiro, depois da Constituição da República de 1988, o que talvez explique (embora não justifique) a interpretação retrospectiva que insistentemente se vê em julgados trabalhistas. Mesmo depois de 1988, há ainda intérpretes e julgadores que não conseguem compreender a supremacia constitucional e optam, talvez sem maior reflexão, por uma falsa regra de especialidade, como se aplicar a CLT em detrimento do Texto Constitucional se justificasse pela especificidade das regras infraconstitucionais trabalhistas. Some--se ainda o fato de que o Texto Constitucional promulgado começou a ser interpretado e implementado em um momento de agressão ao sistema protetivo trabalhista vigente no plano infraconstitucional. Tal contexto de agressão impôs aplicação restritiva e limitadora de normas constitucionais trabalhistas (sobretudo princípios), em consonância com o neoliberalismo hegemônico, que como tal atingiu também o Poder

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Judiciário. Houve a promulgação de uma Constituição Social seguida dos governos neoliberais de Fernando Collor de Melo e Fernando Henrique Cardoso, o que talvez explique a inter-pretação conservadora, e muitas vezes retrospectiva, que se faz de seu Texto.

O tema "redução de salários", entretanto, parece não padecer de interpretação retrospectiva, vez que sua realização, regra geral, está fundamentada no disposto no inciso VI do art. 7º da Constituição da República. Márcio Túlio Viana critica e explica o que compreende como constitucionalização de regras flexibilizadoras de direitos trabalhistas: segundo movimento foi a constitucionalização das primeiras regras flexibilizadoras, em meio às protetivas. Dessas regras, a mais importante é a que permite a redução de salários, via negociação coletiva, sem articulá-la (ao menos expressamente) com a diminuição proporcional da jornada ou a qualquer outra compensação. Com isso, pouco a pouco, os papéis dos atores sociais se invertem: é a classe empresarial que reivindica, é a profissional que tenta resistir. E nesse quadro se tornam ainda mais difíceis até as conquistas in melius. Ao mesmo tempo, setores do empresariado e do sindicalismo mais conservador pressionam no sentido de "valorizar a contratação coletiva", expressão que esconde a estratégia, já referida, de transformar as normas de ordem pública (ainda hoje, a imensa maioria) em normas de ordem dispositiva, em nível coletivo. (VIANA, 2007, p. 23.)

Diante de tal constatação, de prevalência fática da...

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