A Invenção de Sujeitos de Direito e Processos Sociais: Povos e Comunidades Tradicionais no Brasil e no Norte de Minas Gerais

AutorJoão Batista de Almeida Costa
Ocupação do AutorDoutor em Antropologia; Professor-Pesquisador da Faculdade de Direito Santo Agostinho
Páginas7-39
A INVENÇÃO DE SUJEITOS DE DIREITO E
PROCESSOS SOCIAIS:
POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS
NO BRASIL E NO NORTE DE MINAS GERAIS
João Batista de Almeida Costa1
Nos tempos atuais, comunidades rurais e urbanas no Brasil se
visibilizaram advogando para si o reconhecimento jurídico pelo
Estado-Nação dos direitos emergentes inscritos na Constituição de
1988, no tópico em que determinou garantias aos grupos sociais que
contribuíram historicamente para a formação da Sociedade e da
Nação brasileiras. Em diversos campos disciplinares, os estudos
desenvolvidos encontram respaldo legal, ainda que
supraconstitucional, como na Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho que trata dos direitos dos povos
caracterizados como tradicionais. Alicerçam-se aí as bases a partir
das quais as identidades e os processos sociais vividos nessas
comunidades são fundamentados para a compreensão de suas
realidades sociais específicas que contribuem para a construção
plural da sociedade brasileira.
1. A invenção da diversidade de sujeitos de direito
No capítulo da Ordem Social da Constituição Federal de 1988, os
constituintes impuseram ao Estado a garantia plena dos direitos
culturais e a proteção aos bens de natureza material e imaterial
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, dentre eles os
modos de criar, fazer e viver.
Essas garantias constitucionais, considerados como direitos
emergentes (ARRUTI, 1997), inventam sujeitos de direito coletivos
até então não existentes na ordem jurídica nacional, apesar da
existência material desses sujeitos cuja razão histórica (LITTLE, 2004)
se opõe desde a Colônia à razão instrumental do Estado-Nação,
sempre amparado pelas legislações anteriores.
p p p g ç
Entretanto, ao falar sobre tais sujeitos, a Constituição de 1988
não garantiu efetivamente qualquer direito, uma vez que os sujeitos
e objetos desse direito ainda não estavam determinados. Quem
seriam, então, e onde se encontravam esses grupos partícipes do
processo civilizatório nacional possuidores de referências que
deverão ter garantidos o pleno exercício de sua identidade, ação e
memória por meio dos modos de criar, fazer e viver?
Em razão disso, emergiram nas últimas décadas processos
sociais por todos os rincões do território brasileiro, lutas de grupos
rurais e urbanos pelo reconhecimento de direitos relativos à
diferença. Em sua tese sobre o caminho quilombola, a
consideração de que esta luta é “entendida a partir de um modelo de
ação coletiva no qual o desrespeito a uma determinada forma de ser
no mundo enseja um conflito cujo principal resultado é a ‘evolução
moral’ da sociedade.” (FIGUEIREDO, 2011, p. 30-31).
A interpretação do autor acima referenciado apoia-se no
entendimento de que as lutas de reconhecimento buscam a
“condição para que o sujeito mantenha uma relação de integridade
consigo.”, interpretação esta apoiada na teorização de Honneth
(2003). Este autor considera serem as lutas de reconhecimento
constituídas por (a) relações afetivas, que tratam da autonomia
corporal; (b) as relações jurídicas, que implicam no reconhecimento
da condição de sujeito de direito; e (c) as relações comunitárias, que
enfatizam o respeito que os sujeitos devam ter sobre seu modo de ser
sob pena de ofender a honra das comunidades que têm vinculadas si
o direito constitucional inventor de identidades que pluralizam a
realidade social brasileira dada suas emergências.
Os constituintes brasileiros, ao ouvirem as representações
populares que acorreram a Brasília durante a Assembleia que
elaborou a nova Carta Magna nacional – cujo texto final saiu em 5 de
outubro de 1988 –, ao definirem nos artigos 215 e 216 a existência de
grupos formadores da cultura nacional partícipes do processo
civilizatório constroem, em princípio, uma comunidade ética em que
é preciso que haja respeito mútuo entre seus indivíduos assim como
aos diferentes estilos de vida. Ao assim fazê--lo, conjugam a
afirmação da dignidade humana ao reconhecimento das
particularidades culturais, consolidando não apenas a perspectiva
normativa do comunitarismo liberal, mas, particularmente, sua
vertente multiculturalista (FIGUEIREDO, 2011, p. 35).
A multiplicidade de grupos sociais que emergiram amparados
nos princípios constitucionais que alicerçam a sociedade brasileira,
ao se tornarem visíveis e reivindicarem para si o reconhecimento de
suas diferenças, impôs ao Estado-Nação a construção de
mecanismos, processos e políticas públicas capazes de atender às
reivindicações de homens e mulheres que se erguem em todo o
território nacional construindo politicamente suas identidades
diferenciadas por meio de lutas sociais, jurídicas e políticas.
2. As Ciências Sociais: a construção da interpretação
dos processos sociais vividos
Na segunda metade da década de 1980, quando do processo
constituinte, a sociedade brasileira se informou sobre a existência de
um amplo espectro de grupos sociais que reivindicaram sua
presença na Carta Magna em construção e que saíam, assim, da
invisibilidade a que estavam legados pela existência do homem,
branco, proprietário e letrado como único sujeito de direito das
Constituições nacionais anteriores.
Ao conseguirem inscrever suas existências no campo do Direito,
essas gentes propiciaram ao campo das Ciências Sociais a
emergência da busca de uma interpretação de suas realidades. No
caso dos grupos rurais e urbanos que reivindicam para si uma
tradicionalidade que lhes permite afirmarem-se como grupos
participantes do processo de formação da nacionalidade brasileira,
há uma dissensão entre áreas disciplinares que buscaram na década
de 1990 assumir a agência da interlocução desses grupos com o
Estado, como se pode verificar em Costa (2004).
Entre as diversas comunidades de comunicação e argumentação
(APEL, 1985) a disputa da agência mediadora entre os grupos sociais
emergentes como sujeitos de direito e o Estado, ocorreu uma
distribuição no interior do campo das Ciências Sociais. No caso da
afirmação de tradicionalidades pelos grupos rurais e urbanos, a
Antropologia assumiu um papel fundamental dado ao processo
político construtor de identidades diferenciadas enunciadas por
estes povos e comunidades2.

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