Introdução. A intervenção do Poder Público no espaço urbano: os 'direitos da cidade

AutorJosé Roberto Fernandes Castilho
Páginas11-22

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Ver Nota1

A cidade não é feita de pedras mas de homens.

Marsilio Ficino2

1. Como nos mais diversos setores sociais, não se pode, em absoluto, afirmar que o melhor governo urbano seja o que governa menos. Na verdade, a experiência secular demonstra, com clareza, a necessidade de estabelecimento de parâmetros legais para qualquer aproveitamento do solo urbano. Tais parâmetros, índices ou medidas significam que o Poder Público pode e deve, em nome do interesse coletivo, moldar o direito de propriedade sobre o lote (e até mesmo a formação do próprio lote) de modo que valores socialmente relevantes sejam garantidos em cada unidade edilícia. A modelação determinada pela lei atinge o uso, a ocupação e a transformação do solo urbano, entendidos todos eles em sentido bastante amplo. O proprietário não é livre para determinar nem o que fazer (decorrência do plano) nem quando fazer (haja vista a sanções sucessivas do art. 182/§ 4º da Constituição Federal em perímetros delimitados pelo mesmo plano urbanístico) e nem como fazer (as regras técnicas).

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Pode-se dizer que o controle começa na própria garantia de solidez da construção – a preocupação para que, no limite, não caia – e acaba por atingir, no Direito Urbanístico, a inserção harmônica da edificação no contexto urbano que integra e como qual se relaciona. De fato, a intervenção do Poder Público no espaço urbano é multiforme, não só porque a expressão “Poder Público” é genérica e imprecisa (plurívoca) como porque os modos de intervenção são múltiplos e diversos na determinação constante da habitabilidade. Torna-se necessária uma precisão. Mapeando o tema dos “direitos da cidade” – integrantes de um mesmo sistema –, pode-se cogitar de, pelo menos, cinco diferentes modalidades de atuação do Poder Público no ambiente construído, buscando o atingimento de finalidades específicas (ainda que coligadas).
2. A primeira modalidade consiste no chamado “direito da construção” ou direito de construir ou regime legal da construção (não há designação uniforme). Veiculado em normas esparsas, de diferentes níveis, trata ele das exigências técnicas do processo edificatório incluindo a organização interna do futuro edifício. Com efeito, o Poder Público pretende garantir, além da solidez – valor milenarmente protegido –, valores importantes como a funcionali-dade, o conforto e a salubridade em benefício direto de moradores e usuários. O proprietário, assim, não é livre para edificar da forma que quiser, no sentido mais elementar do abrigo, porque há regras técnicas da atividade edificatória insertas nos códigos de obras ou nos códigos sanitários, tanto estaduais quanto municipais. Daí questões como a dimensão mínima dos compartimentos, a altura do pé-direito, o desenho das escadas, etc. Como diz o art. 3º da importante Lei espanhola 38/99, de Ordenação da Edificação (v. capítulo 6), para garantir a segurança das pessoas, o bem-estar da sociedade e a proteção do ambiente, os edifícios devem ser projetados, construídos, mantidos e conservados de modo que satisfaçam requisitos de segurança, funcionalidade, acessibilidade, etc, incluin-

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do até mesmo a “facilitação de acesso aos serviços postais” (requisito incluído em 2001). Portanto, a questão é afeta à própria estrutura da edificação e aos seus elementos constitutivos, que têm disciplina legal: são as chamadas normas edilícias, cuja simplificação o próprio Estatuto da Cidade postula, juntamente com as normas urbanísticas (art. 2º/XV).

Por força da segurança, na Roma clássica o Estado já intervinha na edilícia privada sobretudo em razão do perigo de incêndio decorrente do uso constante da madeira nos pavimentos superiores dos edifícios (insulae) e da intensa aglomeração em alguns setores da cidade. A limitação de altura e a necessidade de espaçamento entre os edifícios, então estabelecidas, surgem dessa específica preocupação. A altura sofreu variações: Augusto fixou-a em 70 pés romanos, isto é, 21 m, o que possibilitava edificação de 6 a 7 pisos; bem depois, a constituição imperial de Zenão estabelecia que o espaço intercalar entre os edifícios privados – chamado ambitus – era de 12 pés, ou seja, cerca de 3,50 m (no entanto, dada a falta de habitações, as paredes-meias – paries communis – eram frequentes). Tais grandezas não serão muito diferentes das que, por um plexo de motivos, vigoram hoje.
3. A segunda modalidade de intervenção materializa-se no chamado “direito de vizinhança”, que integra o corpo maior – e clássico – dos direitos reais (arts. 1.277 a 1.313 do Código Civil). Se o direito da construção, nos códigos técnicos, preocupa-se com aspectos inter-nos da construção, os direitos de vizinhança – plurais, contemplados no Código Civil – tratam de prevenir litígios ocorridos em razão da relação da vizinhança e do uso anormal da propriedade (repercussão in alieno). O foco se amplia: não é mais a ordenação estrutural interna mas a relação com alguns outros; do interior passa-se ao exterior, de dentro para fora; externalizam-se as preocupações ainda que num círculo circunscrito. Isto gera obrigações de tolerar e consentir, além de não fazer: a passagem necessária, por força da topografia, das

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águas pluviais do prédio superior ao inferior, não despejar tais águas diretamente sobre o prédio vizinho por intermédio dos beirais, etc. Como se vê da epígrafe do presente livro, Vitrúvio já cogitava de tais direitos, ao afirmar que era tarefa dos arquitetos agir para evitar as controvérsias entre os proprietários lindeiros.

Na verdade, o Código Civil procura evitar interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde no que tange ao projeto e ao uso das propriedades imobiliárias (art. 1.277). Portando, consagra direitos que disciplinam a externalização das faculdades dominiais, impondo limitações ao aproveitamento do lote para pré-compor os conflitos de vizinhança, que são bastante frequentes porquanto derivados da concreta proximidade3...

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