Introdução ao direito fenestral

AutorJosé Roberto Fernandes Castilho
Páginas44-96
44
[ II ]
Introdução ao direito fenestral29
As janelas das casas de muitos andares
São olhos com que me veem
Passar na rua. Quem? Alguém?
Joaquim Cardozo,
As janelas, as escadas, as pontes e as estradas”,
Poesias completas
1 Aproximação do tema
O direito fenestral (ou “januelar”) integra a parte especial dos
direitos de vizinhança (jura vicinitatis) e consiste, basicamente, na
análise da faculdade recíproca e limitada que o vizinho tem de, em
nome da privacidade e da salubridade, abrir janelas, frestas, seteiras e
óculos na edicação. Estes termos têm um núcleo de signicação co-
mum e todos designam aberturas nas paredes, como também são as
portas, também aberturas. Constituem termos próprios da Arquite-
tura que, de há muito, o Direito incorporou desde os praxistas e que
estavam no Código Civil revogado em 2002 (art. 573/§ 1º, herança
29 Publicado, em versão anterior, na revista eletrônica Tópo s (vol. 1, n. 3, 2017), da
FCT/Unesp.
A cidade entre o direito e a história
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do Código Civil português de 1867, e que corresponde ao atual art.
1301/§ 2º). Trata-se, pois, de restringir o direito da construção em
face da limitação negativa especíca imposta pela vizinhança – o que
é fonte de muitos conitos.
Lembre-se, a título exemplo que se aplica perfeitamente, do
conito entre o cortiço de João Romão e o sobrado contíguo do Mi-
randa, personagens de O cortiço, de Aluísio Azevedo (1890), clássica
obra do nosso naturalismo embora – como lembra Brito Broca – não
tenha alcançado Zola30. A rivalidade inicial entre eles derivava, den-
tre outras coisas, do fato de que o sobrado “despejava para o terreno
do vendeiro as suas nove janelas de peitoril” (Cap. I) – camarote de
onde a burguesia assistia a vida dura do cortiço e até jogava pão para
as galinhas dos moradores, antes da ascensão social de Romão, ob-
jeto do romance.
A respeito do direito de o proprietário levantar construções
em seu lote (art. 572 do CC/16 e 1299 do atual), desde que obedeci-
dos os “regulamentos administrativos, escreveu o vetusto Virgílio
de Sá Pereira: “a regra diretora nesta matéria do direito de cons-
truir, como de todos que se contém no domínio, é a que assegura
o máximo de gozo individual com o mínimo de sacrifício social”31.
Trata-se, como se percebe claramente, de uma ponderação de va-
lores individuais e coletivos, que, no caso especíco das janelas,
materializa-se naquilo que Pontes de Miranda chama de “princípio
da proximidade mínima da vista sobre o prédio vizinho. A privaci-
dade, valor constitucional, deve ser preservada: a casa, anal, é o
asilo inviolável do indivíduo(art. 5º/IX), preceito que deita suas
raízes na religião doméstica romana.
30 Diz o grande crítico Brito Broca: “O ambiente social da metrópole está muito
bem marcado em O Cortiço e na Casa de Pensão de Aluísio Azevedo. O romancista
maranhense, porém, não chegou a fazer, para o Rio, o que o seu mestre Zola fez para
a capital francesa, no livro Paris (Horas de leitura, 1957).
31 Direito das coisas, p. 336.
José Roberto Fernandes Castilho
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Assim, além de tema da teoria da Arquitetura, janelas e frestas
são igualmente tema arquiclássico do Direito Civil, surgido – como
luz e vista em Roma e, depois, desenvolvido na Idade Média32 –, que
está regulado, hoje, tanto pelo Código Civil de 2002 (arts. 1301 a 1303,
seção referente ao direito de construir) quanto nos códigos de obras
municipais. Na verdade, os dois códigos se complementam: o civil re-
gula as relações jurídicas entre confrontantes; já o código de obras é
código técnico concernente ao direito da construção que deve regular
a qualidade da edicação, o grau de habitabilidade que proporcionará
– e, assim, as aberturas, que são elementos constitutivos dela.
Em sede de construção teórica, pode-se defender que o direi-
to fenestral integraria o chamado “direito privado do urbanismo.
Isto porque a ordenação da ocupação do solo, em qualquer escala,
deve ser pensada considerando tanto o interesse notadamente pú-
blico, concernente à ordenação da cidade (e então teremos o Direito
Urbanístico), quanto o interesse não puramente privado referente à
vizinhança (e daí o Direito de vizinhança). Não se trata de questão
puramente privada porque o Poder Público disciplina o assunto para
prevenir conitos – muito comuns nesta matéria por força da pro-
ximidade – quanto assegurar a qualidade de vida dos confrontantes
e dos próprios moradores. Lembre-se que a higiene das edicações
é um tema que está na base do surgimento do próprio urbanismo,
no século XIX. Assim, não se pode dizer que a forma de ocupação
do solo urbano constitua matéria de interesse privado puramente.
Não é. Sempre será tema de interesse público embora em escala de
32 No período pré-clássico, os romanos não desenvolveram o tema porque em Roma
as casas não eram inicialmente construídas na divisa do lote, havendo um interstí-
cio entre elas considerado sagrado (ambitus). Segundo entende António Carvalho
Martins, “na Idade Média é que principiaram as apertadas aglomerações urbanas,
de molde a não ser possível o completo isolamento das habitações” (Construções e
edicações, p. 13).

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