Introdução

AutorFlávio Saliba Cunha, Roberto Dutra Torres Júnior
Páginas17-32
Introdução
As disciplinas que se propõem a explicar cientificamente as
sociedades humanas, notadamente a Sociologia, encontram-se hoje
quase tão fragmentadas quanto seu próprio objeto de análise: a
sociedade contemporânea. Cumpre-se o vaticínio do “decifra-me ou
te devoro”. Que as ciências sociais dificilmente conseguem ser
neutras todo mundo sabe, mas a sociologia deixou-se envolver de
tal forma por uma secular disputa ideológica, patrocinada sobretudo
por marxistas e weberianos, que hoje transformou-se, como sugere
Giddens, num reduto de descontentes: dos descontentes com as
desigualdades sociais aos descontentes com o próprio casamento.
É a Sociologia fazendo as vezes da Psicanálise. É o desacordo em
torno de questões teóricas fundamentais empurrando a disciplina
para o campo fácil dos acordos politicamente corretos sobre
questões sociais legítimas, mas de duvidosa centralidade
sociológica. O problema que aqui se coloca é o de reconhecer que,
mesmo quando metodologicamente rigorosas, poucas são as
abordagens microssociológicas que têm contribuído para desvendar
a lógica de processos sociais cujas determinações estruturais ainda
são objeto de intensas disputas teóricas. Mais do que parciais (o
que em ciência não é defeito), estes estudos mostram-se, com
frequência, fragmentados e inconclusos, resultando seus esforços
em estabelecer conexões entre o objeto empírico observado e
processos sociais mais amplos a inferências genéricas previamente
acordadas no plano ideológico ou no senso comum. O que se segue
é um primeiro e parcial resultado de reflexões que, à semelhança
dos esforços realizados por autores como Giddens e Alexander,
procuram concentrar-se nas questões que caracterizariam a “crise
da sociologia” contemporânea.
Alexander afirma que contra a dominação do funcionalismo no
pós-guerra empreenderam-se duas revoluções”, a saber, a das
escolas radicais da microteorização que, por um lado, destacavam a
interação e a ação dos indivíduos, e as da macroteorização que, por
outro lado, procuravam enfatizar o “papel das estruturas coercitivas
na determinação do comportamento individual e coletivo”[1], e cujo
rápido declínio deveu-se à sua insustentável unilateralidade. Em
reação a isso surge, segundo Alexander, uma geração de
sociólogos que formula um programa de trabalho cujo objetivo
principal é articular ação e estrutura e que põe na ordem do dia mais
uma teoria que busque a síntese do que uma que insista na
polêmica.
Perspectiva semelhante é a que orienta nosso trabalho, que tem
como propósito identificar caminhos que possibilitem a integração
das perspectivas teóricas clássicas a partir de temas e conceitos
específicos, sem nos prender aos conteúdos que cada uma dessas
teorias, tomadas isoladamente, busca enfatizar. Com efeito, a
ausência de diálogo entre as várias contribuições que constituíram a
teoria sociológica tem alimentado tanto a ortodoxia de abordagens
paradigmáticas, quanto o ecletismo descritivo de abordagens
“pluralistas”, epistemologicamente problemáticas, cuja contribuição
para a teoria social é, no mínimo, discutível.
Ainda que apresente uma série de outros sintomas, a “crise da
sociologia” pode, a nosso ver, ser resumida a duas facetas
principais. A primeira, sempre associada às possibilidades dessa
disciplina de criar instrumentos para uma intervenção precisa na
realidade e resolver problemas, refere-se à descrença na
cientificidade do discurso sociológico. A segunda possui uma
vinculação mais estreita com a reflexão teórica e diz respeito às
interpretações unilaterais da realidade social que contribuem para a
perpetuação de dicotomias tais como “sociedade” e “indivíduo”,
“estrutura” e “ação”, “macro” e “micro” conhecimentos. A este
respeito, pode-se argumentar que as dificuldades de se articular as
realidades micro e macrossociológicas têm contribuído para o
fortalecimento de duas imagens nada agradáveis da Sociologia. A
primeira, que corresponde ao unilateralismo macro, é de uma
sociologia distante da vida cotidiana e que sustenta seu status de
ciência apenas através de entidades como a consciência coletiva, o
organismo social e as classes sociais, entre outros. A utilização
indiscriminada dessas categorias, ainda que importantes para a
afirmação da Sociologia enquanto disciplina acadêmica, impede que
as ações e relações que se fazem e se desfazem no dia-a-dia dos

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