Intimamente publicitados: o direito à privacidade das celebridades na sociedade contemporânea

AutorLuis Carlos Cancellier de Olivo - Mikhail Vieira Cancelier de Olivo
CargoProfessor Associado II do Curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina - Professor substituto de Direito Civil na Universidade Federal de Santa Cataria (UFSC)
Páginas6-30

Page 6

Issn Eletrônico 2175-0491

Doi: 10.14210/nej.v21n1.p06-30 ᆀ

IntImamente publIcItados: o dIreIto à prIvacIdade das celebrIdades na socIedade contemporânea

Privately lives in the media: celebrities’ right to Privacy in contemPorary society

intimmamente Publicado: el derecho a la Privacidad de las celebridades en la sociedad contemPoránea

Luis Carlos Cancellier de Olivo1Mikhail Vieira Cancelier de Olivo2 1 Professor Associado II do Curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Diretor do Centro de Ciências Jurídicas da UFSC. luis.cancellier@ufsc.br

2 Professor substituto de Direito Civil na Universidade Federal de Santa Cataria (UFSC). Doutorando em direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/ UFSC). Mestre em Direito e Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC). mikhail.cancelier@ufsc.br.

Disponível em: www.univali.br/periodicos

Page 7

Issn Eletrônico 2175-0491

Resumo: O art. 20 do Código Civil de 2002 prevê que, salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comer-ciais. Tal necessidade de autorização prévia foi posta em cheque na ADI 4815, julgada em junho desde ano pelo STF. Este artigo busca trabalhar o exercício do direito à privacidade na atualidade e problematiza o tema por meio da discussão acerca da privaci-dade das pessoas famosas. Exemplo que popularizou a questão, o posicionamento do grupo Procure Saber sobre a necessidade de autorização prévia para a comercialização de biografias será aqui analisado, assim como o voto da Ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, Relatora da referida ADI.

Palavras-chave: Direito à privacidade. Direito à liberdade de expressão. Censura. STF.

Abstract: Article 20 of the 2002 Brazilian Civil Code states that except as authorized or necessary to the administration of justice or to maintain public order, the disclosure of written text, the transmission of the words, or the publication, display or use of the image of a person may be prohibited, at their request and subject to compensation where applicable, if they affect that person’s honor, good name or reputation, or if they are intended for commercial purposes. Such need for prior authorization was challenged by the adi (direct action of unconstitutionality) 4815, but upheld in June of this year by the Supreme Court. This article analyzes the exercise of the right to privacy today, investigating the issue through a discussion on the privacy of celebrities. An example that has brought this issue under the spotlight - the critical positioning of the Procure saber group (which defends the need for prior authorization for the marketing of biographies) - is analyzed here, as well as the vote of Cármen Lúcia Antune Rocha, the Rapporteur of the abovementioned ADI.

Revista novos Estudos Jurídicos - Eletrônica, Vol. 21 - n. 1 - jan-abr 2016

Doi: 10.14210/nej.v21n1.p06-30

7

Page 8

Issn Eletrônico 2175-0491

Doi: 10.14210/nej.v21n1.p06-30 ᆀ

Keywords: Right to privacy. Right to freedom of expression. Censorship. The Supreme Court.

Resumen: El art. 20 del Código Civil de 2002 prevé que, salvo si autorizadas o si necesarias a la administración de la justicia o a la manutención del orden público, la divulgación de escritos, la transmisión de la palabra o la publicación, la exposición o la utilización de la imagen de una persona podrán ser prohibidas, a su solicitud y sin perjuicio de la indemnización que corresponda, si es afectada la honra, la buena fama o la respetabilidad, o si se destina a fines comerciales. Tal necesidad de autorización previa fue puesta en jaque en la ADI 4815, juzgada en junio de ese año por el STF. Este artículo busca trabajar el ejercicio del derecho a la privacidad en la actualidad y problematiza el tema por medio de la discusión acerca de la privacidad de las personas famosas. Un ejemplo que popularizó la cuestión y será analizado aquí es el posicionamiento del grupo Procure saber sobre la necesidad de autorización previa para la comercialización de biografías, así como el voto de la Ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, Relatora de la referida ADI.

Palabras clave: Derecho a la privacidad. Derecho a la libertad de expresión. Censura. STF.

Introdução

E m sua análise da obra de Hannah Arendt, Celso Lafer3, dentre outros pontos, destaca a diferenciação entre os espaços público e privado desenvolvida pela autora. Lafer demonstra que Arendt frisa que

o privado deve ser respeitado, já que nem tudo o que se oculta representa, necessariamente, algo em algum nível condenável ou reprovável. Eventualmente — e frequentemente — há aspectos da personalidade, individual ou coletiva, que podem não ser mostrados. Mais do que isso “as grandes forças da vida íntima

3 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São

Paulo: Companhia das Letras, 1988. p.261;271.

Disponível em: www.univali.br/periodicos

Page 9

Issn Eletrônico 2175-0491

têm uma existência válida apenas na penumbra”4.

Para Arendt5, o público é comum — tanto no sentido de espaço comum quanto no sentido de visto e ouvido por todos —, aproximando-se da ideia de igualdade entre as pessoas; o privado é exclusivo, ressaltando as diferenças. Dentro da esfera privada, cada um escolhe com quem quer e como deseja se relacionar com o mundo e tal escolha é “afetada pelo impacto de uma pessoa em sua singularidade, sua diferença em relação a todas as pessoas que conhecemos”6.

Uma existência vivida inteiramente em público, na presença de outros, torna-se, como diríamos, superficial. Retém a sua visibilidade, mas perde a qualidade resultante de vir à tona a apertar de um terreno mais sóbrio, terrenom este que deve permanecer oculto a fim de não perder sua profundidade num sentido muito real e não subjetivo. O único modo eficaz de garantir a sombra do que deve ser escondido contra a luz da publicidade é a propriedade privada — um lugar só nosso, no qual podemos nos esconder.7Lafer8nota, ainda, que segundo Arendt, o privado é essencial à defesa do público, que acaba sendo ferido quando aquilo que deve ficar restrito ao íntimo invade seu espaço, banalizando-o. A distorção desses ambientes, que pode ser enxergada na excessiva publicização da privacidade, poderia, segundo a autora, degenerar num ‘estado totalitário de natureza’. Talvez dentro de certa perspectiva, tenhamos chegado lá.

Nesse sentido, é facilmente notável que a área da privacidade acabou transformando-se num lugar de encarceramento, “sendo o dono do espaço privado condenado e sentenciado a padecer expiando os próprios erros”9, o que nos leva à conclusão de que, hoje, a relação entre o indivíduo e a sua privacidade está abalada. Não só vivemos um momento em que a privacidade é constantemente violada

4 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah

Arendt. p.261.
5 ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. p. 60-62.
6 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah

Arendt. p.267-268.
7 ARENDT, Hannah. A condição humana. p.81.
8 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah

Arendt. , p.271.
9 BAUMAN, Zygmunt. Vigilância líquida: diálogos com David Lyon. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2014. p.55.

Revista novos Estudos Jurídicos - Eletrônica, Vol. 21 - n. 1 - jan-abr 2016

Doi: 10.14210/nej.v21n1.p06-30

9

Page 10

Issn Eletrônico 2175-0491

Doi: 10.14210/nej.v21n1.p06-30 ᆀ

pelo “outro”, como, nós mesmo, de forma deliberada, “submetemos à matança nossos direitos de privacidade por vontade própria”10. Ser “privado” é mal visto e tentar impedir que terceiros tenham acesso àquilo que consideramos de cunho estritamente pessoal é tachado, com bastante frequência, de censura.

Seguindo por esse caminho, Bauman11acredita que “o anonimato já está em processo e auto-erosão no Facebook e em outras mídias sociais. O privado é público, é algo a ser celebrado e consumido tanto por incontáveis ‘amigos’ quanto por ‘usuários´casuais.” Para ou autor, abrimos os braços à coletivização do privado por vontade própria em troca da “alegria de ser notado”12. Por outro lado, mas dentro desse mesmo movimento, a sociedade contemporânea implode a esfera privada, frequentemente impossibilitando ao indivíduo o alívio de seu lar privativo, “no qual antes ele se sentia resguardado contra o mundo e onde, de qualquer forma, até mesmo os que eram excluídos do mundo podiam encontrarlhe o substituto no calor do lar e na limitada realidade da vida em família”13.

Assim, além de, como já levantado, optarmos, conforme as nossas necessidades, por fornecer nossas informações pessoais e alimentarmos patologicamente todo o tipo de redes sociais, temos, à nossa revelia e independente de qualquer autorização, nossa vida invadida por programas de coleta de dados que não nos permitem nenhuma forma de controle e reação. Tal comportamento invasivo tornou-se rotineiro. Diariamente, temos, conscientemente, nossa privacidade violada nos mais diversos níveis e não nos damos conta que, com esse comportamento, rejeitamos um componente essencial da formação da pessoa humana, que “define propriamente o que é um indivíduo - quais suas fronteiras com os demais, qual seu grau de interação e comunicação com seus conhecidos, seus familiares e todos os demais”14.

...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT