Intervenção Judicial nos Contratos de Assistência Privada à Saúde

AutorJosiane Araújo Gomes
Ocupação do AutorMestra em Direito Público pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Especialista em Direito das Famílias pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Servidora do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG)
Páginas161-306

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Assentado o caráter fundamental e social do direito à saúde - o qual integra a ideia de garantia mínima que deve ser assegurada às pessoas, com espeque na conservação pacífica da sociedade e na promoção do valor humano -; a permissão de prestação de assistência à saúde por entes privados - possuindo os contratos de plano de saúde enorme importância na sociedade brasileira, por constituírem meio alternativo ao sistema público de saúde ineficiente -; como também a caracterização dos instrumentos contratuais firmados entre operadoras e usuários - à luz do diálogo de fontes entre a Lei nº 9.656/98 e o Código de Defesa do Consumidor, bem como da concepção social do direito contratual -; torna-se possível enfrentar o tema propriamente dito do presente estudo: a intervenção judicial nos contratos de plano de saúde para a ponderação dos interesses das operadoras e dos beneficiários.

Deveras, ao se permitir a prestação da assistência à saúde por entes privados de forma paralela à atividade estatal, por meio de contratos de serviço de saúde, torna-se duvidoso o respeito ao direito fundamental à saúde face à finalidade lucrativa atribuída por tais entes aos serviços prestados. Em vista disso, surge a indagação: há o dever, por parte das operadoras de assistência privada à saúde, de promoção do direito fundamental à saúde, ou, em outras palavras, pode-se afirmar que o direito fundamental à saúde incide imediata e diretamente nos contratos de planos de saúde?

A resposta à referida indagação reside na própria caracterização das relações privadas de assistência à saúde. De fato, é sabido que os planos de saúde ganham espaço no mercado por representarem meio alternativo ao sistema público de saúde ineficiente e que, em razão da sua importância para a população, conferem ao sistema de saúde suplementar resultados altamente lucrativos. Outrossim, além do desequilíbrio substancial existente entre usuários e operadoras, que se exterioriza, notadamente, pela catividade contratual dos

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primeiros, verifica-se que, por serem relações de longa duração, os contratos de plano de saúde possuem curva de utilidade inversa para as partes, pois a contratação é mais vantajosa ao usuário anos após a adesão, enquanto para a operadora, apenas no início da vigência da avença.

Em vista dessas constatações, tem-se como obrigatória a incidência direta e imediata do direito fundamental à saúde nos contratos de plano de saúde, como forma de se evitar a completa mercantilização desse direito, o que tornaria, mais uma vez, impossibilitado o acesso efetivo e adequado à saúde. E, nesse sentido, havendo a adoção de práticas abusivas pelas opera-doras, cabe aos usuários dos planos de saúde o recurso ao Poder Judiciário, para que o magistrado avalie, de forma objetiva, se as cláusulas questionadas podem ser alteradas, ou até mesmo declaradas nulas, com o fim de se obter a justiça substancial do contrato, com a preservação das legítimas expectativas das partes, e, por decorrência, o respeito ao direito fundamental à saúde.

Desse modo, no presente capítulo, será analisada a eficácia horizontal do direito fundamental à saúde, seus reflexos nas relações privadas de assistência à saúde, notadamente a ponderação de interesses dos usuários e operadoras. Em seguida, será abordado o fenômeno denominado neoprocessualismo e, por decorrência, o papel exercido pelo Poder Judiciário na concretização dos direitos fundamentais. Após, tentar-se-á delimitar o momento em que a adoção de cláusulas contratuais restritivas de direito ultrapassa a finalidade de manutenção do equilíbrio financeiro das prestações para caracterizar verdadeira prática abusiva, ofensiva ao objetivo contratual e as legítimas expectativas dos usuários. Diante disso, serão analisados aspectos pontuais relativos à proteção do usuário de plano de saúde, relativos às principais situações ensejadoras de litígios entre os contratantes, abordando-se as posições normativas, doutrinárias e jurisprudenciais sobre as hipóteses elencadas. Ao final, diante das conclusões parciais obtidas, adotar-se-á posicionamento acerca da necessidade de inter-venção judicial nos contratos de assistência privada à saúde, a fim de possibilitar a harmonização dos interesses econômicos das operadoras com a eficácia do direito à saúde, visando, como fim último do ramo de saúde suplementar, a máxima efetividade desse direito fundamental social.

3. 1 Da eficácia horizontal do direito fundamental à saúde

No primeiro capítulo deste estudo, constatou-se que o direito à saúde é expressamente reconhecido como direito fundamental na ordem constitucional

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vigente e que, assim, é de observância obrigatória na produção e aplicação das normas infraconstitucionais, bem como na atuação dos entes públicos e dos entes privados, visando a sua efetiva proteção e promoção. Nesse sentido, não há dúvidas acerca da incidência desse direito nos contratos de plano de saúde, tendo em vista, inclusive, a sua natureza social, que confere ao Estado a obrigação de normatizar e fiscalizar o sistema privado de assistência à saúde, seja quanto aos aspectos relativos à constituição e atuação das operadoras ou quanto às questões específicas acerca do conteúdo contratual.

Destarte, a eficácia do direito fundamental à saúde ultrapassa o âmbito das relações travadas entre Estado e cidadãos - eficácia vertical -, para abarcar as relações jurídicas firmadas entre os cidadãos, limitando a autonomia das partes com o intuito de se obter a máxima concretização do aspecto existencial, sem, contudo, eliminar os interesses materiais. Suscita-se, pois, a eficácia horizontal do direito fundamental à saúde, visualizando a incidência direta e imediata desse direito nos contratos de plano de saúde.

3.1. 1 Eficácia horizontal dos direitos fundamentais

Quando da análise da natureza social do direito à saúde, consignou-se que os direitos fundamentais são considerados, em primeiro momento, como direitos de defesa, ou seja, como poderes jurídicos outorgados aos indivíduos para se protegerem contra a opressão do Estado. Tem-se, assim, a eficácia vertical das normas de direito fundamental, uma vez que estas "influenciam o sistema jurídico na medida em que afetam a relação jurídica entre o Estado e os cidadãos, sob a forma de direitos subjetivos em face do legislador, do Poder Executivo e do Judiciário".216Logo, por alcançar as relações travadas entre os indivíduos e o Estado, a eficácia vertical dos direitos fundamentais tem por escopo proteger aqueles das ingerências por parte deste na sua esfera pessoal, bem como imputar aos Poderes Públicos a obrigação de promover e zelar pelo respeito desses direitos.

Contudo, com a revolução capitalista que ocorreu, principalmente, no início do século XX, os ideais individualistas que permeavam a sociedade sofrem alterações lentas e graduais, firmando-se, em contrapartida, a noção de que o Estado deve atender às demandas referentes à satisfação das necessidades básicas dos cidadãos. Dessa forma, são reconhecidos os direitos sociais, com

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a finalidade de tentar solucionar a profunda crise de desigualdade social instalada em razão da concentração industrial e comercial, da universalização do mercado e da crescente urbanização, cabendo ao ente estatal a promoção desses direitos, por meio da garantia aos indivíduos dos recursos materiais essenciais à obtenção de uma existência digna.

Ocorre que a implementação de políticas públicas voltadas a garantir amparo e proteção social à parcela vulnerável da população não é capaz de atender, de modo completo e satisfatório, à demanda social, na medida em que a efetiva realização das prestações reclamadas somente é possível com o dispêndio de recursos, dependendo, pois, da conjuntura econômico-financeira. Por consequência, abre-se o caminho para a atuação de entes privados no fornecimento e realização dos direitos sociais, o que, todavia, não ocorre de forma equilibrada, em razão, notadamente, da essencialidade desses direitos, colocando seus destinatários em verdadeira posição de dependência e sujeição. Destarte, percebe-se que o Estado não é o único a titularizar a posição de ofensor às liberdades individuais, mas também o próprio particular, ao se relacionar com o seu semelhante.

Desse modo, passa a ser considerada a eficácia horizontal217dos direitos fundamentais, a qual se refere à incidência e aplicação desses direitos no âmbito das relações privadas, uma vez que as violações a esses direitos não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas também nas relações travadas entre pessoas naturais e jurídicas de direito privado. Com efeito, a existência de forças sociais, como os conglomerados econômicos, sindicatos, empresas multinacionais, associações patronais, entre outros, exige que se reconheça a aplicação dos direitos fundamentais em face de pessoas e entes privados, pois, devido ao poder...

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