Intervenção estatal e a legislação desportiva

AutorJorge Miguel Acosta Soares
Páginas40-61

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2.1. A organização do esporte nacional — A era da legislação

Até o final da década de 1930, o futebol, assim como todos os outros esportes, era regido pelas entidades dirigentes de suas diversas modalidades. Havia alguma obediência às regras internacionais, sem a menor interferência do Estado, que apenas cuidava das questões que envolvessem a ordem pública. O desporto era atividade dos particulares e, como tal, cabia aos particulares sua organização. Os constantes conflitos entre as entidades dirigentes de um mesmo esporte, as divergências entre os dirigentes dos diversos estados, os atritos internacionais, nada disso estava no rol das preocupações oficiais. Contudo, Getúlio Vargas e a estrutura política e ideológica do Estado Novo mudaram essa relação. Agora, o que se buscava era a construção de uma Nação e de um “homem novo”, e o desporto era uma ferramenta poderosa para isso.

O primeiro instrumento significativo dessa intervenção do Estado nas questões desportivas foi o Decreto-Lei n. 3.199, de 14 de abril de 1941, que estabeleceu as bases de organização dos desportos no país. Por ele, foi criado o Conselho Nacional de Desportos (CND), subordinado ao Ministério da Educação e Saúde, cuja finalidade seria orientar, fiscalizar e incentivar a prática de todos os esportes no Brasil79. Sua estrutura era composta por cinco membros, todos nomeados diretamente pelo Presidente da República. Em 1945, esse número foi ampliado para seis membros, e para sete no ano seguinte.

O CND nascia após uma longa reflexão oficial sobre como seria a intervenção do Estado no desporto nacional. Dois anos antes, em 19 de janeiro de 1939, o Governo Federal, através do Decreto-Lei n. 1.056, criou a Comissão Nacional de Desportos, um órgão ligado diretamente à presidência da República. Era composta por sete membros escolhidos pessoalmente pelo presidente da República, “dentre pessoas entendidas em Matéria de Desportos ou a estes consagradas”80. Também fazia parte da comissão o diretor do Departamento Nacional de Educação. A Comissão elaborou um relatório que viria a se tornar o projeto do futuro CND. Não se pode considerar o Decreto-Lei n. 1.056/39 como marco inaugural da intervenção estatal no esporte, uma vez que apenas criou um órgão consultivo, responsável pela indicação dos caminhos que o governo Federal viria a trilhar.

Segundo o Decreto-Lei n. 3.199/41, efetivamente a primeira norma organizadora do desporto, a competência do CND era bastante ampla, buscando abranger todos os segmentos, assim como todas as modalidades esportivas:

  1. estudar e promover medidas que tenham por objetivo assegurar uma conveniente e constante disciplina à organização e à administração das associações e demais entidades desportivas do país, bem como tornar os desportos, cada vez mais, um eficiente processo de educação física e espiritual da juventude e uma alta expressão da cultura e da energia nacionais;

  2. incentivar, por todos os meios, o desenvolvimento do amadorismo, como prática de desportos educativos por excelência, e ao mesmo tempo exercer rigorosa vigilância sobre o profissionalismo, com o objetivo de mantê-lo dentro de princípios de estrita moralidade;

  3. decidir quanto à participação de delegações dos desportos nacionais em jogos internacionais, ouvidas as competentes entidades de alta direção, e bem assim fiscalizar a constituição das mesmas;

  4. estudar a situação das entidades desportivas existentes no país para o fim de opinar quanto às subvenções que lhes devem ser concedidas pelo Governo Federal, e ainda fiscalizar a aplicação dessas subvenções.

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Contudo, do ponto de vista histórico, o ponto mais relevante do Decreto-Lei n. 3.199/41 não foi a criação do CND, apesar de sua importância nas relações entre o desporto e o Estado nas próximas décadas. Mais significativa foi a criação da estrutura que seria obrigatória para todos os esportes. O documento legislativo montou uma pirâmide organizacional, tendo em sua base clubes de prática desportiva, ligas e entidades de base. Acima deles, no âmbito dos estados, agregando as entidades de prática por ramo desportivo, encontravam-se as federações. Mais acima, reunindo as federações de todo o país, estavam as confederações, as quais ligadas diretamente ao CND, eram as entidades máximas de direção dos desportos nacionais.

O modelo era a transposição da estrutura corporativista montada pelo ditador Benito Mussolini na Itália, na década de 1920. Naquele modelo, as entidades eram subordinadas e dependentes do Estado, existindo a partir de seu beneplácito. A organização vertical rígida, algo militar, em forma de pirâmide — das estruturas de base até a cúpula unificada — buscando um controle de toda a sociedade, suprimindo os conflitos e criando uma suposta colaboração nacional. As entidades, para terem existência legal, precisavam da autorização do Estado, do qual recebiam atribuição de funções públicas e verbas. No modelo do CND, toda e qualquer organização desportiva preexistente, para continuar funcionando, precisava submeter-se à nova estrutura, alterando seus estatutos, em adequação à regulamentação e à estrutura oficial.

A intervenção direta do Estado na forma de organização corporativista não ficou restrita ao desporto. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), Decreto-Lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943, dois anos mais tarde reproduziu a mesma estrutura. A semelhança entre as duas pode ser percebida com a simples comparação entre elas: a desportiva (Decreto-Lei n. 3.199/41) e a sindical (Decreto-Lei n. 5.452/43):

Decreto-Lei n. 3.199, de 14 de abril de 1941

(...)

Art. 9º A administração de cada ramo desportivo, ou de cada grupo de ramos desportivos reunidos por conveniência de ordem técnica ou financeira, far-se-á, sob a alta superintendência do Conselho Nacional de Desportos, nos termos do presente Decreto-Lei, pelas confederações, federações, ligas e associações desportivas.

Art. 10. Os desportos, que, por sua natureza especial ou pelo número ainda incipiente das associações que os pratiquem, não possam organizar-se nos termos do artigo anterior, terão, de modo permanente ou transitório, um sistema de administração peculiar, ficando as respectivas entidades máximas ou associações autônomas vinculadas ao Conselho Nacional de Desportos, com ou sem reconhecimento internacional. (...)

Art. 12. As confederações, imediatamente colocadas sob a alta superintendência do Conselho Nacional de Desportos, são as entidades máximas de direção dos desportos nacionais.

Art. 13. As confederações serão especializadas ou ecléticas, conforme tenham a seu cargo um só ramo desportivo ou um grupo de ramos desportivos reunidos por conveniência de ordem técnica ou financeira. (...)

Art. 15. Consideram-se, desde logo, constituídas, para todos os efeitos, as seguintes confederações: I — Confederação Brasileira de Desportos. II — Confederação Brasileira de Basquetebol. III — Confederação Brasileira de Pugilismo. IV — Confederação Brasileira de Vela e Motor. V — Confederação Brasileira de Esgrima. VI — Confederação Brasileira de Xadrez.

Parágrafo único. A Confederação Brasileira de Desportos compreenderá o futebol, o tênis, o atletismo, o remo, a natação, os saltos, o water-polo, o volley-ball, o hand-ball e bem assim quaisquer outros desportos que não entrem a ser dirigidos por outra confederação especializada ou eclética ou não estejam vinculados a qualquer entidade de natureza especial nos termos do art. 10 deste Decreto-lei; as demais confederações mencionadas no presente artigo têm a sua competência desportiva determinada na própria denominação. (...)

Art. 18. As federações, filiadas às confederações, são os órgãos de direção dos desportos em cada uma das unidades territoriais do país (Distrito Federal, Estados, Territórios).

Art. 19. Poderão as federações ser especializadas ou ecléticas, segundo tratem de um só, ou de dois ou mais desportos. (...)

Art. 24. As associações desportivas, entidades básicas da organização nacional dos desportos, constituem os centros em que os desportos são ensinados e praticados. As ligas desportivas têm caráter facultativo, são entidades de direção dos desportos, na órbita municipal.

Parágrafo único. As ligas bem como as associações desportivas poderão ser especializadas ou ecléticas.

Art. 25. As associações desportivas, no Distrito Federal e nas capitais dos Estados e dos Territórios, filiar-se-ão diretamente à respectiva federação; nos demais municípios, duas ou mais associações desportivas poderão filiar-se a uma liga, que se vinculará à federação correspondente.

Parágrafo único. As federações não poderão conceder, dentro de um mesmo município, filiação a mais de uma liga para o mesmo desporto.

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Art. 26. Os estatutos das associações e das ligas desportivas deverão ser aprovados pela federação a que elas estiverem filiadas.

CLT — Decreto-Lei n. 5.452, de 1º de maio de 194381

(...)

Art. 511. É lícita a associação para fins de estudo, defesa e coordenação dos seus interesses econômicos ou profissionais de todos os que, como empregadores, empregados, agentes ou trabalhadores autônomos ou profissionais liberais exerçam, respectivamente, a mesma atividade ou profissão ou atividades ou profissões similares ou conexas.

Art. 512. Somente as associações profissionais constituídas para os fins e na forma do artigo anterior e registradas de acordo com o art. 558 poderão ser reconhecidas como Sindicatos e investidas nas prerrogativas definidas nesta Lei. (...)

Art. 516. Não será reconhecido mais de um Sindicato...

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