Constituição do sujeito e intersubjetividade: por um diálogo entre Habermas e Winnicott

AutorJoão Pedro Chaves Valladares Pádua
CargoMestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-Rio. Advogado e Professor de Direito Penal da FND/UFRJ.
Páginas90-113

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1. Introdução

Nos debates contemporâneos de filosofia política, é recorrente o tema da subjetividade1. A emergência do tema do multiculturalismo e do pluralismo, embora de origem mais remota como fenômeno social, no esteio da globalização da cultura, fez com que a questão da inserção do sujeito na sociedade e sua dinâmica emergisse do automatismo teórico em que estava mergulhado2. De fato, com a virada individualista do liberalismo moderno, o ponto de vista do sujeito (indivíduo) passara a constituir o único ponto de análise possível da filosofia e de outros campos do conhecimento3. Este automatismo do ponto de vista do sujeito (indivíduo) só pode ser quebrado quando, para além da virada lingüístico-pragmática na filosofia, também a psicanálise expõe os limites do indivíduo na construção e reprodução de sua própria instância psíquica4.

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O trabalho que ora se faz é um primeiro esboço de aproximação entre as duas tendências mencionadas acima. A virada lingüísitico-pragmática e a psicanálise, para além de diferenças conceituais que possam eventualmente ter em suas múltiplas ramificações, unem-se, sem dúvida – e, às vezes, talvez por acaso, como se demonstrará – pela preocupação quanto ao ancoramento da subjetividade não só na própria autonomia individual, mas também – e mesmo pressupostamente – na inter-relação entre sujeitos. Sob esse ponto de vista, a subjetividade é também, e principalmente, intersubjetividade.

No que segue, após uma breve reflexão sobre a virada pragmática e a emergência da psicanálise (item. 2), será ilustrada a relação proposta através da análise de dois grandes expoentes, um de cada tradição: Habermas6 e Winnicott (item. 3). Em seguida, uma conclusão abarcante das ligações possíveis e necessárias.

2. A virada lingüístico-pragmática e a psicanálise: convergências inconscientes?

A idéia central da compreensão de significados (Sinnverstehen) – logo interpretação de sentido – sobre a qual se desenvolve toda uma vertentePage 92das ciências sociais (Geisteswissenschaften), originária da tradição alemã em crítica aberta ao positivismo “metodocentrista” do século XIX, não se iniciou no tratamento da cientificidade da psicanálise. No entanto, o debate filosófico, gnosiológico e ontológico que se inicia no final do século XIX e se afirma no início do XX parece encontrar, coevo, o desenvolvimento não só da clínica freudiana, senão também de sua produção metapsicológica7.

Não por acaso, a discussão francesa sobre o estatuto de cientificidade da psicanálise encontrou na hermenêutica filosófica – inicialmente concebida como ontologia, não como método8 – o fundamento para sua autoafirmação como saber interpretativo9. A característica óbvia da clínica psicanalítica, por oposição imediata à clínica médica, era a interação ativa, e mediada pela fala, entre analista e paciente10. Assim, a reconstrução racional11 da prática clínica como aspecto teórico legitimador do saber que tal experiência proporcionava pôde logo encontrar seu lugar no âmbito das práticas de troca e formação de significado já identificadas como limite inexpugnável para as ciências sociais e humanas em geral.

No que se segue, no mesmo caminho, a virada lingüísitico-pragmática será tematizada como fenômeno teórico bifurcado: por um lado inaugurou uma nova concepção de ser humano e de tempo/espaço, reformando, pois, a ontologia clássico-positivista; por outro lado, e mais relevantemente para nós, inaugurou, concomitantemente, um novo método para as ciências que estudam este renovado homem; um homem que produz e reproduz e compreende o sentido de ações sociais de outros homens, dos quais não se poderá dissociar (item 1). Após, a psicanálise será relacionada a este fenômeno, através da centralidade intersubjetiva e simbólica que apõe à formação do sujeito (item 2).

2.1. Sentido e sociedade: a superação do logicismo semântico e a centralidade da linguagem (como ato)

No âmbito do debate sobre o nascimento das Geisteswissenschaften, o historicismo de Dilthey jogou duplo papel de vanguarda. De um lado,Page 93trouxe o problema da consciência histórica para a consideração da filosofia social12. De outro, fincou a última trincheira contra o evolucionismo nomológico da filosofia da história, desde Condorcet até Comte – embora, mais tarde, retomado, com outro mote, pela tradição da dialética histórica que vai de Hegel a Marx13. Com efeito, a noção de localização espaço-temporal – locus cultural – como ponto de partida e ponto de chegada para o conhecimento sobre o homem e – mais especificamente – sobre o homem em sociedade, estabelece as bases da précompreensão cultural para a interpretação do sentido (Sinnverstehen) das ações sociais concretas14.

Embora ainda fosse Dilthey – assim como outro precursor da hermenêutica, Husserl, e sua fenomenologia15 – um adepto do conhecimento verdadeiro da ciência, que aponta para o mundo com seu discurso puramente representacional, na sua trilha teórica pôde caminhar – mesmo correr – uma tradição filosófica e gnosiológica que se firmava, de um lado, nas investigações (assumidamente) anti-metafísicas de Heidegger, e, de outro, na inserção pragmática da linguagem desde Pierce e Morris, passando pelo segundo Wittgenstein pela escola filosófico-lingüística de Oxford16.

De um lado, do ponto de vista da filosofia ontológica – e de seus reflexos gnosiológicos – a consolidação heideggeriana-gadameriana do ser-no-mundo (in-der-Welt-sein) e do ser-aí (Dasein) como produtores e compreendedores de sentido social a partir de horizontes culturais específicos – ou, em outras palavras, como portadores de consciência histórica de suas tradições – adiciona-se à necessidade mesma destas formas de vida concreta para a possibilidade dos jogos de linguagem17.

Portanto, à ontologia concretista, relativista e anti-metafísica – em uma palavra: hermenêutica – da tradição heideggeriana-gadameriana, vem adicionar-se a metodologia (lingüístico-pragmática) da compreensão de sentido18, todos na qualidade de condição de possibilidade dePage 94uma cognição social (interativa) que não se filia à narratividade ingênua de um universalismo abstrato e solipsista, ancorado em formas de razão transcendentais19. Noutro giro, a própria possibilidade de compreensão de sentido tal como delimitado por estas formas de vida concretas e culturalmente permeadas faz ver que toda a ação social significativa manifesta-se em linguagem ou sob formas que nela podem traduzir-se20.

O assentamento da hermenêutica filosófica pressupõe, portanto, a tomada de posição pela – ou a volta de atenção à – interpretação, sempre lingüisticamente orientada, do meio social e das ações sociais que nele se exprimem. A inserção da noção de círculo hermenêutico, nesta linha, implica não só o holismo inafastável que liga a compreensão do todo à compreensão das partes numa relação biunívoca – negando já por aqui a análise cartesiana unidirecional para a compreensão do ser humano –, mas também e principalmente a invencibilidade da linguagem como meio privilegiado – talvez único – de expressão, interpretação e, logo, interação social. Toda explicação em ciências sociais e humanas só pode aclarar-se mediante recursos aos mesmos signos presentes já nos próprios fenômenos explicáveis21, numa recursividade que torna o círculo hermenêutico, conforme as palavras de Bohman, inescapável22.

De outro lado, num movimento paralelo de desenvolvimento do culturalismo no seio da antropologia – que lidava com o estranho e o ininteligível – e da evolução da filosofia da linguagem e da pragmática lingüística – presente já o contexto de contestação ontológica que remonta a Dilthey –, pôde, então, processar-se, na filosofia teórica e na filosofia social, com impacto nas ciências do homem e da sociedade, uma espécie de dupla virada lingüística, segundo expressão de Habermas23.

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Em primeiro lugar, já os teóricos da semântica formal, como Frege (e o primeiro Wittgenstein), puderam notar que, em termos de compreensão e interação social, nada poderia ir além da própria linguagem. Que a linguagem constituía o ponto de partida para qualquer pensamento consolidado e também o ponto de chegada de qualquer discurso social. A verdade, assim, somente poderia ser descoberta em uma teoria semântica das condições de verdade, a valer para qualquer enunciado em qualquer circunstância.

O segundo passo da virada lingüística, puderam então dá-lo os pragmatistas, como Pierce e Morris, que notaram que, aprisionada a realidade na linguagem – leia-se, na semiose –, nada externo ou objetivo poderia garantir a verdade ou validade de qualquer manifestação discursiva. A verdade – e mais amplamente a validade – de qualquer pretensão discursivamente formulada por atos de fala somente poderia ser assegurada mediante o assentimento e o convencimento racional de todos os que potencialmente se envolvam na comunidade de fala em questão. Trata-se, então, de uma concepção consensual de verdade, que depende do discurso e do convencimento, e não da correspondência com um real que, de resto, não pode ser asseverada para além da própria linguagem – e do círculo hermenêutico.

A dupla virada lingüística garante, assim, não só a possibilidade de gerar conhecimento válido – e validável – sobre o homem e a sociedade, mas também esta possibilidade desde dentro do círculo hermenêutico e não de fora dele. Implica, por outro lado...

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