Interpretando o direito como um subalterno

AutorAdilson José Moreira
Páginas87-107
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CAPÍTULO III
INTERPRETANDO O DIREITO
COMO UM SUBALTERNO
Pensar como um negro significa, primeiramente, reconhecer meu
lugar como um subalterno. Esta afirmação pode parecer estranha porque
sou um jurista e alguns poderiam dizer que não enfrento as mesmas
dificuldades materiais que outros negros sofrem. Sempre ouço pessoas
dizerem que o dinheiro embranquece, que o dinheiro protege pessoas
negras da discriminação. Os que dizem isso estão enganados. Minha
posição no sistema de classes sociais não é o único fator que determina
meu lugar social. É preciso deixar claro logo de início que questões de
igualdade não podem ser discutidas a partir da premissa de que processos
de exclusão social afetam apenas a segurança material dos indivíduos,
nem de que as pessoas possuem uma identidade única. O racismo não
é algo que promove apenas desigualdades de classe, ele também estabelece
diferenças de valor cultural entre os diversos grupos sociais. Seus membros
são julgados a partir de estereótipos que determinam tanto supostas
características que eles possuem e também os lugares sociais que eles podem
ocupar. Pessoas negras estão sempre sendo julgadas a partir de estereótipos
descritivos e prescritivos e esse fato determina nossa experiência social em
praticamente todas as dimensões de nossas vidas.50
50 Para uma análise da psicologia social do estereótipo, ver: ARMOUR, Jody. Stereotype
and prejudice: helping legal decisionmakers break the prejudice habit. California Law
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ADILSON JOSÉ MOREIRA
Um jurista que pensa como um negro deve estar ciente de que
ele precisa interpretar o Direito a partir do ponto de vista de um
subalterno. Quero dizer com isso que a existência de uma pessoa dentro
de uma democracia liberal não impede a reprodução da condição de
subordinação. Os indivíduos podem ser considerados como sujeitos de
direito, mas eles possuem uma inserção social hierarquizada seja por
causa das disparidades de classe, seja por causa de estigmas culturais.51 Os
regimes políticos podem mudar, as pessoas podem ter acesso a direitos
formais, mas os grupos dominantes sempre criam meios para que o poder
permaneça em suas mãos. O regime liberal não elimina relações
assimétricas e arbitrárias de poder. O status subordinado de minorias
raciais na sociedade brasileira teve início com a inserção econômica desses
grupos como mercadoria no processo de colonização e teve continuidade
durante o período monárquico em função da manutenção da escravidão,
por causa da restrição de direitos e das políticas de transformação racial
dos trabalhadores na primeira República, da reprodução de mecanismos
de discriminação no espaço público e no espaço privado, e também por
causa das construções culturais responsáveis pela representação deles
como indivíduos moralmente degradados. O subalterno é um sujeito
construído a partir de ideologias sociais, de determinações históricas, de
interesses econômicos e de projetos políticos que os situam em uma situação
de alteridade permanente para que processos de dominação possam ser
sempre reproduzidos. Embora ele possa fazer parte de regimes supostamente
democráticos, sua inserção social será sempre de marginalização porque o
projeto de dominação social opera em quaisquer regimes políticos, mesmo
naqueles baseados no princípio da igualdade de direitos.52
Sou um homem negro e isso significa que minha identidade racial
e minha inserção social precisam ser compreendidas a partir da experiência
Review, vol. 89, n. 3, pp. 733-772, 1995; MOREIRA, Adilson José. O que é discriminação?
Belo Horizonte: Letramento, 2017, pp. 37-47.
51 Para uma análise dos mecanismos responsáveis pela promoção de disparidades de status
material e status cultural na modernidade ver: SANTOS, Boaventura de Souza. A gramática
do tempo: Para uma nova cultura política. São Paulo: Editorial Cortez, 2008, pp. 279-303.
52 BEVERLEY, John. Theses on subalternity, representation, and politics. Postcolonial
Studies, vol. 1, n. 3, pp. 305-319, 1998; MIGNOLO, Walter. On subalterns and other
agencies. Postcolonial Studies, vol. 8, n. 4, pp. 381-407, 2005.

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