Interpretação, integração e aplicação do direito do trabalho

AutorMauricio Godinho Delgado
Páginas224-255

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I Introdução

O Direito consiste no conjunto de princípios, institutos e regras, encorpados por coerção, que imprimem certa direção à conduta humana, quer alterando, vedando ou sancionando práticas percebidas, quer estimulando ou garantindo sua reprodução. Tem o Direito, portanto, caráter atuante sobre a vida social, dela resultando e sobre ela produzindo efeitos.

Esse caráter social atuante do fenômeno do Direito — sua referência permanente à vida concreta — importa no constante exercício pelo operador jurídico de três operações específicas e combinadas de suma relevância: a interpretação jurídica, a integração jurídica e, finalmente, a aplicação jurídica.

Por interpretação conceitua-se o processo analítico de compreensão e determinação do sentido e extensão da norma jurídica enfocada.

Por integração conceitua-se o processo lógico de suprimento das lacunas percebidas nas fontes principais do Direito em face de um caso concreto, mediante o recurso a fontes normativas subsidiárias.

Por aplicação conceitua-se o processo de incidência e adaptação das normas jurídicas às situações concretas.

As três operações, embora específicas, têm pontos de contato entre si. Afora a óbvia referência ao mesmo fenômeno jurídico, suscitada por idêntica ou semelhante situação fática, as operações igualmente se qualificam como processos analíticos e lógicos, submetidos a regras previamente fixadas. A par disso, tais operações mantêm-se estreitamente interconectadas, dependendo o resultado de uma do desenvolvimento alcançado na operação anterior.

II Interpretação do direito do trabalho
1. A Interpretação no Conhecimento Humano

Interpretação consiste no processo intelectual mediante o qual se busca compreender e desvelar um determinado fenômeno ou realidade de natureza ideal ou fática. É, portanto, uma dinâmica de caráter intelectual voltada a assegurar a seu agente uma aproximação e conhecimento da realidade circundante.

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Toda cultura humana — todo conhecimento — resulta de um processo de interpretação. Os diversos tipos de saber — ou, se se preferir, os diversos graus de saber — resultam, coerentemente, de processos próprios de interpretação.

Isso significa que desde os níveis menos sistematizados, objetivos e rigorosos de conhecimento (folclore, senso comum e outros) até os níveis mais sofisticados de saber (filosofia e ciência, particularmente), em todos eles cumpre papel exponencial o processo de interpretação. Obviamente que nos níveis menos rigorosos, objetivos e sistematizados de saber, a interpretação não se submete a regras firmes, objetivas e sistemáticas, sendo esse certamente um dos essenciais fatores a ensejar o comprometimento da qualidade do tipo de conhecimento oriundo dessas formas de saber.

O conhecimento científico, ao contrário, caracteriza-se por impor ao analista dos fenômenos regras mais rígidas, objetivas e sistemáticas de exame e interpretação da realidade, de modo a assegurar um resultado interpretativo necessariamente mais próximo à efetiva substância e sentido do fenômeno enfocado.

Tais regras rigorosas, sistemáticas e objetivas obviamente tendem a reduzir o papel criativo do cientista-intérprete no instante do desenvolvimento e enunciação de suas pesquisas e conclusões. Uma dinâmica contraposta a esta ocorre nos ramos ou patamares não científicos de conhecimento, onde a falta daquele tipo e qualidade de regra de pesquisa e interpretação eleva a contribuição pessoal criativa do intérprete, tornando-a eventualmente até mesmo mais importante e notável que o próprio objeto interpretado. Observe-se, a esse propósito, a diversidade de respostas interpretativas que, ilustrativamente, o folclore, o senso comum, as religiões e as artes conferem a inúmeros fenômenos (fáticos ou ideais) substantivamente semelhantes ou até mesmo idênticos. Nas artes, por exemplo, é regra relevante de seu processo interpretativo que a visão singular do intérprete prepondere no instante de aproximação e desvelamento da realidade. Em contraponto a essa tendência interpretativa inerente às artes destacam-se as ciências, buscando submeter o intérprete a uma conduta rígida, universal e objetiva de procedimentos, critérios, teorias e avaliações sistemáticas.

É claro que hoje é inquestionável truísmo o reconhecimento de que, mesmo nas formas consideradas científicas de saber, não se consegue descolar o cientista-intérprete dos condicionamentos socioeconômicos e culturais a que necessariamente se acha integrado. Em especial nas Ciências Sociais (Ciência Política, Sociologia, História, Economia, etc.), os efeitos limitadores ou instigadores desses condicionamentos são inegáveis.

Contudo, ainda assim, é também já inquestionável truísmo a viabilidade de se construir um conhecimento mais objetivo, mais sistemático, mais

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universal, mais rigoroso e passível de controle sobre os fenômenos da política (Ciência Política), os fenômenos sociais ou grupais (Sociologia), os fenômenos históricos (História), os fenômenos econômicos (Economia). A essa qualidade superior de conhecimento e às condutas teóricas e metodológicas para seu alcance é que se confere o nome de ciência1.

2. A Interpretação no Direito

O Direito, como um produto específico e sistemático da cultura humana, também se mostra envolvido, quer com o processo de interpretação, quer com o nível mais elevado de concretização desse processo, a ciência.

A interpretação atua em dois momentos fundamentais do fenômeno jurídico: no instante de elaboração da norma de Direito (fase pré-jurídica) e, em seguida, no instante da compreensão do sentido e extensão da norma já elaborada (fase jurídica propriamente).

O primeiro instante, tipicamente político, caracteriza-se pela gestação e concretização em norma jurídica de ideários e propostas de conduta e de organização fixadas socialmente. Já o segundo instante, tipicamente jurídico, caracteriza-se pela apreensão do sentido e extensão da norma definitivamente elaborada, para sua aplicação ao caso concreto.

Embora para a Ciência do Direito o estudo da interpretação jurídica esteja centrado na denominada fase jurídica — quando o fenômeno do Direito já está consumado — é importante uma rápida reflexão sobre a fase de gestação e formulação da norma de Direito. Tal reflexão comparativa agrega sugestivos elementos à melhor compreensão do próprio processo de interpretação da norma já formulada.

A) Interpretação na Fase de Construção da Norma — É, de fato, notável a diferença entre o momento pré-jurídico (isto é, momento político, em que se constroem as normas de Direito) e o momento jurídico, no contexto interpretativo.

Observe-se que, quando se pretende alterar ou reformar um sistema normativo (na verdade qualquer sistema de ideias ou instituições), acopla-se, combinadamente, ao processo de interpretação desse sistema um processo intelectual correlato, consistente na crítica do mesmo sistema — conferindo-se então ênfase a essa operação crítica. Através da crítica

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pré-jurídica (crítica política) procuram-se contradições e incongruências na legislação a se modificar. Desdobra-se o sistema jurídico em partes, em frações, acentuando-se suas incongruências e distorções.

São características da fase pré-jurídica ou política, desse modo, a procura e o desvelamento das contradições do sistema jurídico, suas falhas e lacunas, seu desajuste a valores que, politicamente, considera-se que a sociedade erigiu como relevantes ao longo do instante de desenvolvimento da crítica pré-jurídica. As incongruências e falhas são pesquisadas como mecanismos propiciadores do mais eficaz encontro de alternativas concretas hábeis de supressão ou superação das falhas e incongruências percebidas.

B) Interpretação do Direito Construído — Em contraponto à dinâmica analítica preponderante no chamado momento pré-jurídico, ou político, é sumamente distinta a direção analítica observada na fase propriamente jurídica (em que já se examina o Direito construído).

Nesse estado posterior prepondera sobre a crítica a interpretação, isto é, a reprodução intelectual daquilo que já foi normativamente proposto. Busca-se, na análise da norma jurídica, não a contradição interna das ideias e princípios normativamente apresentados, mas sua congruência e organicidade integradas. Pesquisa-se, no preceito normativo, a noção que faça sentido, tenha coerência e seja eficaz. Não se pode trabalhar, interpretativamente, com a noção de uma norma que traga dentro de si os instrumentos para sua própria esterilização e inaplicabilidade e, assim, os instrumentos para sua própria ineficácia.

Nesse quadro, pode-se concluir que a fórmula da contradição prepondera, por assim dizer, fundamentalmente na operação analítica do Direito efetuada pelo político — pelo legislador —, ao passo que a fórmula da coerência desponta principalmente na operação analítica do Direito efetuada pelo jurista — pelo intérprete e aplicador do Direito.

Essa fórmula própria e distintiva à fase analítico-interpretativa da norma produzida consiste na pesquisa da coerência racional e lógica da norma enfocada ao conjunto do sistema jurídico e ao conjunto do processo sociopolítico que responde por sua criação e reprodução. A realização de tal fórmula analítico-interpretativa submete-se a um conjunto de regras objetivas, sistemáticas, universais, que visam a assegurar um resultado mais objetivo, mais sistemático, mais universal, mais rigoroso e passível de controle que o produto da simples...

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