A interpretação do art. 114, inciso I, da constituição federal e a competência da justiça do trabalho para controle de políticas públicas

AutorRosangela Rodrigues Dias de Lacerda
CargoProcuradora do Trabalho da 5ª Região/BA
Páginas163-190

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Introdução

Interpretar, na concepção tradicional adotada pela doutrina jurídica, é apenas definir o sentido e alcance da norma. Esta conceituação simplista, todavia, não mais se coaduna com a complexidade das relações interpessoais e transpessoais da vida contemporânea. O presente estudo, portanto, busca estabelecer os fundamentos filosóficos da hermenêutica, fazendo digressões sobre os seus alicerces primevos, sua evolução temporal e, por derradeiro, sobre a crise que enfrenta com o surgimento de novos paradigmas. O problema primacial a ser deslindado reside em fincar as premissas teóricas que permitem ao intérprete afirmar que o inciso I do art. 114 da Constituição Federal contempla a competência da Justiça do Trabalho para controle de políticas públicas. A questão é da ordem do dia, especialmente se for considerada a ingente necessidade de concretização de direitos fundamentais mediante a formulação e execução de políticas públicas.

De acordo com a teoria sedimentada pela doutrina, a definição da competência para controle de políticas públicas seguiria o critério de condição da autoridade responsável pela realização do ato ou de origem dos recursos públicos, de modo que estaria restrita ao âmbito da Justiça Estadual ou da Justiça Federal. A tese sustentada, entrementes, é a de que a delimitação da competência resolve-se pelos fundamentos do pedido, ou melhor dizendo, pela causa de pedir alegada. Ora, se a omissão ou a ação dirigem--se à violação do valor social do trabalho, inarredável a conclusão de que a competência para tornar efetivo o comando constitucional é da Justiça do Trabalho, e não de outro ramo do Poder Judiciário. Pelo mesmo fundamento, é atribuição do Ministério Público do Trabalho, no papel de promotor dos direitos sociais, a interposição de ações civis públicas que busquem a implementação das políticas públicas.

Inicialmente, há uma explanação acerca dos novos paradigmas de hermenêutica, com o escopo de introjeção da linguistic turn (reviravolta linguística) na filosofia do Direito, para melhor compreensão do alcance e significado do art. 114, inciso I, da Constituição Federal. O terceiro e último item do artigo, por seu turno, adentra mais especificamente o tema da interpretação do aludido dispositivo e o controle de políticas públicas, sempre tendo por norte a realização dos princípios da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho.

As metodologias utilizadas, precipuamente, foram a pesquisa bibliográfica e a pesquisa documental.

A pesquisa bibliográfica envolveu a busca de livros, monografias, teses, dissertações, artigos pulicados em revistas especializadas, jornais e revistas,

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e teve a precaução de incluir os fundamentos das teses ora vigentes, em busca dos alicerces para firmar o novo entendimento sobre o tema.

A coleta de informações por meio de pesquisa documental ocorreu, especificamente, mediante a pesquisa de jurisprudência sobre a matéria e pesquisa, dentre os documentos fornecidos pelas Procuradorias Regionais do Trabalho, da atuação do Ministério Público do Trabalho quanto à implementação de políticas públicas.

1. A crise de paradigmas da hermenêutica contemporânea

Sob a ótica do Estado Democrático de Direito, consagrado no art. 1e, caput, da Constituição Federal, o Direito deve ser concebido como instrumento de transformação social, e não como aporte teórico e coercitivo para conformação e dominação de grupos de interesses para subtração de direitos e garantias dos cidadãos. A dogmática jurídica predominante, contudo, encontra-se atualmente assentada em um paradigma liberal e positivista, que sustenta a primazia da normatividade e a assepsia valorativa dos cânones jurídicos.

Há dois pilares que sustentam a dogmática dominante, que necessitam ser superados para que se obtenha efetividade para os direitos fundamentais:

1) o modo de produção do Direito, desde a etapa legislativa até a etapa deliberativa, de forma individualista, acrítica e meramente reprodutiva; e

2) o paradigma epistemológico da filosofia da consciência, na dicção de Lenio Luiz Streck1.

Uma das principais dificuldades a serem enfrentadas pelo hermeneuta, na construção de sentido para os dispositivos constitucionais, é o fato de que ainda predomina um modo de produção individualista e fordista do Direito, no qual as normas são elaboradas no escopo de solução individual dos conflitos e há uma nítida divisão de trabalho (os que que pensam e têm autoridade para estabelecer uma interpretação e outros que somente reproduzem os standards).

Assim, os Códigos Processuais privilegiam a solução de litígios envolvendo João, Maria e José — na verdade, Caio, Tício e Mévio, tão ao

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gosto dos doutrinadores — e não há um modo de pensar coletivo para o Direito, quando João, Maria e José, por exemplo, são pessoas comuns que não têm acesso a um trabalho digno ou quando não existem políticas públicas para afastar os seus filhos do trabalho e torná-los aptos, por meio da educação, a romper o círculo vicioso de pobreza a que estão subjugados durante gerações inteiras.

A crise de instala precisamente porque os conflitos da sociedade evoluíram em número e em complexidade exponencial, enquanto os instrumentos para sua solução cresceram em razão aritmética. Desta sorte, o ordenamento jurídico pátrio dispõe, basicamente, de três diplomas normativos que regulamentam a solução coletiva de conflitos: a Lei de Ação Popular (Lei n. 4.717/1965), o Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/1990) e a Lei de Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/1985). Estes instrumentos, contudo, não têm conseguido alcançar o desiderato de efetividade dos direitos sociais, por dois motivos primaciais. A uma, porque a solução de conflitos de modo coletivo demanda a assunção de uma postura política explícita por parte da magistratura, que é formada para compreender perfeitamente a atuação processual das partes nos diferentes tipos de processo, porém, não compreende o alcance político e econômico das decisões em ações coletivas e não observa — ou finge não observar — as relações de poder imbricadas em cada pedido deferido ou refutado.

A duas, porque o procedimento em matéria de ação coletiva é secundário em relação aos direitos substantivos veiculados, e o rigor processual e excesso de formalismo terminam por acarretar uma ineficácia das normas e uma implosão de todo o sistema que visa a garantir os direitos fundamentais. Na órbita trabalhista, os exemplos são múltiplos: durante muito tempo, não foi admitida a interposição de ação civil pública, sob o fundamento de que não havia sequer competência para julgamento das aludidas ações; em seguida, houve séria controvérsia sobre a atribuição funcional para sua apreciação e julgamento, pretendendo alguns que fosse deslocada da primeira para a segunda ou terceira instância, sob o pífio argumento de que eram semelhantes aos dissídios coletivos; atualmente, alguns tribunais trabalhistas mais conservadores ainda recalcitram em reconhecer ao Ministério Público do Trabalho a legitimidade para defesa dos direitos individuais homogêneos, posição ainda sustentada por alguns doutrinadores2.

Quanto ao paradigma epistemológico da filosofia da consciência, cumpre retrotrair à fase primeva da hermenêutica contemporânea até alcançar

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o linguistic turn e a hermenêutica crítica, para melhor compreensão do paradigma dominante, dos aportes teóricos que o sustentam e da crise que atualmente enfrenta.

Entre os séculos XVII e XVIII, o termo hermenêutica3 era restritamente utilizado para a correta interpretação da Bíblia, sendo Spinoza o seu maior expoente. A hermenêutica contemporânea remonta aos princípios do século XIX, quando Friedrich Schleiermacher reformula a disciplina e a torna matéria ínsita ao âmbito da filosofia, como teoria geral da compreensão. Segundo Josef Bleicher4, é possível distinguir nitidamente três tendências na hermenêutica, que não são necessariamente sucessivas, historicamente:

  1. a teoria hermenêutica, com fulcro nos cânones kantianos do entendimento, capitaneada por Schleiermacher, Dilthey e Emilio Betti, sedo que este último teve influência marcante na hermenêutica jurídica tradicional e no paradigma dominante;

  2. a hermenêutica filosófica, sufragada por Gadamer, a partir dos ensina-mentos de Heidegger e, por último,

  3. a hermenêutica crítica, sustentada por Habermas, com algumas divergências em relação a Gadamer.

Segundo Schleiermacher5, a hermenêutica deveria ser considerada como verdadeira teoria geral da compreensão, capaz de estabelecer os princípios gerais de toda e qualquer interpretação de manifestações linguísticas. Segundo seu entendimento, todo pensamento tem de ser exteriorizado por palavras; logo, não há conhecimento sem linguagem. Por esta razão, a hermenêutica deveria ser estudada em todos os campos do conhecimento humano, porquanto todos eles estão veiculados na linguagem6. Neste momento da hermenêutica, a linguagem ainda é compreendida como um veículo por intermédio do qual são transmitidas as ideias, como uma terceira

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coisa que se impõe entre sujeito e objeto ou entre dois sujeitos. Com Schleier-macher, a hermenêutica ingressa como campo específico da filosofia e deixa de ser um simples modo de revelação de verdades bíblicas, objeto de controvérsias entre católicos e protestantes, como o fora até então. Entrementes, para o autor, a hermenêutica ainda é consubstanciada em um conjunto de métodos de boa interpretação de um texto falado ou escrito. Apregoando uma interrelação entre o todo e a parte, advertia que o conhecimento anterior da obra era fundamental à compreensão de suas partes, assim como a compreensão adequada das partes resultaria numa boa interpretação do todo. O método...

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