Interesse público e os direitos humanos ? O parquet na justiça cível democrática como fiscal da estrita legalidade ? A correta aplicação da lei na interpretação do novo Código de Processo Civil

AutorCândido Furtado Maia Neto/Diego de Lima Soni/Magna Carvalho de Menezes Thiele/Luiz Gustavo Rosá
Páginas63-86

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1. Aplicação dos tratados de direitos humanos

Inicialmente, antes de se adentrar especificamente nas hipóteses de atuação do Ministério Público, faz-se imprescindível ex-planar de forma resumida acerca da dicotomia dos planos (interno e internacional) do ordenamento jurídico para aplicação dos tratados de direitos humanos no sistema pátrio, a fim de possibilitar a melhor compreensão da questão no âmbito da justiça cível.

Verifica-se que o legislador, no novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/15), dispôs expressamente acerca da aplicabilidade dos tratados, pactos e convenções internacionais de direitos humanos na jurisdição interna, o que se dá após a ratificação e adesão pela República Federativa do Brasil, de acordo com o processo legislativo próprio (arts. 49, I, e 84, VIII, CF), visando à efetivação prática nacional, de modo a sempre ser dada prevalência aos direitos humanos.

Prevê o artigo 13 do estatuto processual em questão:

A jurisdição civil será regida pelas normas processuais brasileiras, ressalvadas as disposições específicas previstas em tratados, convenções ou acordos internacionais de que o Brasil seja parte.

Acerca da posição hierárquica superior dos tratados, já decidiu o Supremo tribunal Federal:

Prisão civil do depositário infiel em face dos tratados internacionais de direitos humanos. Interpretação da parte final do inciso LXVII do art. 50 da Constituição Brasileira de 1988. Posição hierárquico-normativa dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro. Desde a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis

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e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão.5Desta sorte, entendeu o Supremo tribunal Federal que, na hipótese de conflito entre lei ordinária e tratado, prevalece o tratado (leia-se instrumentos internacionais de direitos humanos).

Por sua vez, referidos instrumentos de direitos humanos, ratificados e incorporados pela República Federativa do Brasil como signatária, expressam a validade hierárquica entre os dispositivos internacionais e a legislação nacional, por meio da denominada cláusula de proteção, conforme dispõe a Convenção sobre Direitos dos tratados (Convenção de Viena, 1969/ONu – BR/2009):

Artigo 26 – Pacta sunt servanda

Todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa fé.

Artigo 27 – Direito Interno e Observância de Tratados

Uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado.6Do mesmo modo, a cláusula de proteção está nos artigos 46 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (ONu/1966 – BR/1992), 24 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ONu/1966 – BR/1992), 29 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (OEA/1969 – BR/1992) e na Convenção para a Proteção da Flora, da Fauna e das Belezas Cênicas Naturais dos Países da América (1940 – BR 1966).

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Por seu turno, a denominada teoria da incorporação incondicional ou automática é prevista no Código tributário Nacional:

Lei n. 5.172/66 Código tributário Nacional: “Os tratados e as convenções internacionais revogam e modificam a legislação tributária interna e serão observados pela que lhes sobrevenha”, especialmente no que se refere ao direito público.

Os direitos humanos asseguram garantias fundamentais ou garantias judiciais para a proteção jurídica do devido processo legal, em prol da cidadania ou dos jurisdicionados, sem distinção ou privilégios de qualquer natureza, sempre visando, cada vez mais, o maior prestígio da justiça equânime, célere, imparcial, independente e transparente.

Cabe salientar que os instrumentos de direitos humanos aprovados pelo quórum qualificado de 2/5 possuem status constitucional ou de emenda constitucional, aqueles não submetidos ao quórum possuem status de supralegalidade, e os tratados que não se referem a direitos humanos têm valor de lei infraconstitucional7.

A supralegalidade posiciona-se entre a carta magna e a legislação infraconstitucional, o que define que as cláusulas e princípios de direitos humanos, de qualquer forma, possuem validade superior ao que dispõem as normas de direito civil (Lei 10.406/02) ou de processo civil (Lei 13.105/15).

O legislador constituinte demonstra que o espírito da Constituição é voltado à supremacia ou prevalência dos direitos humanos, visto que, para formular/montar o texto da carta magna, na época e antes de sua aprovação, o legislador ordinário, denominado de constituinte, tomou como base e levou em consideração o contido nos instrumentos internacionais de direitos humanos, como por exemplo: a Declaração universal, de 1945, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações unidas, de 1966, a Convenção sobre Direitos Humanos da OEA, de 1969, entre outros tantos documentos de valor tácito para o mundo e para os ordenamentos jurídicos vigentes.

Assim, pode-se dizer que os tratados de direitos humanos (e seus princípios) estão acima da própria Constituição, sendo que todo

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Estado democrático (a prestação jurisdicional) possui o dever de respeito, independentemente da configuração legal dada ou do que expresse a carta maior.

Os direitos humanos possuem valor hierárquico tácito internacional majoritário, já que a constituição dos países com regime demo-crático é que deve se adaptar aos princípios fundamentais de direitos humanos, e não estes à constituição (princípio da parametricidade), ou seja, os instrumentos de direitos humanos são parâmetros para as constituições democráticas. trata-se da supraconstitucionalidade dos direitos humanos, posto que o direito interno se congrega aos postulados e reconhecimentos universais, em face aos princípios da cooperação e da obrigatoriedade de aplicação, razão pela qual se adere aos direitos humanos, sendo os documentos internacionais ratificados posteriormente.

Desse modo, tem-se como regra geral:

– Prevalece texto mais recente – lex posterior derogat priori

– Lei mais recente incompatível não prevalece sobre tratado

– Violação aos diretos humanos resulta em responsabilidade estatal internacional

– Dever de observância aos princípios da hierarquia e da recepção das normas

– Desrespeito aos direitos humanos afeta os fundamentos e o regime do estado democrático

Atenção ao contido no preâmbulo da carta magna.

É de se destacar o universalismo e a indivisibilidade dos instrumentos de direitos humanos. A cidadania é cosmopolita, globalizada e planetária. Sem asseguramento dos direitos fundamentais individuais e coletivos das pessoas, e sem o devido respeito integral aos princípios reitores de direitos humanos, estes com validade hierárquica prevalente frente aos dispositivos ou normas legais, não há que se falar

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em Justiça, em hipótese alguma, ante a incorreta interpretação e aplicação do direito.

Estamos diante da teoria da incorporação incondicional ou auto-mática. A carta magna e a legislação nacional se incorporam às prescrições dos tratados e convenções de direitos humanos, e não o contrário. trata-se do princípio da parametricidade, pelo qual os direitos humanos são parâmetros legais para a efetivação do Estado democrático.

Os tratados não se revogam por lei posterior. Há que se considerar o conceito de parametricidade, em que a ordem global – o direito público internacional – é mais vasta que o direito interno. As garantias fundamentais abarcam princípios implícitos e explícitos, os primeiros como parte do chamado bloco da constitucionalidade, e os segundos da legalidade, assim temos a presunção iuris tantum e depois a iure et de iure, ou seja, o direito constitucional plasmado, ou um “continum jurídico”, conforme as lições de Canotilho citadas pelo professor Sergio Borja da PuC-RS8.

É de se observar, ainda, que as cláusulas de direitos humanos (direito internacional humanitário) desfrutam hoje, nas palavras do professor Antonio Augusto Cançado trindade, de caráter imperativo – ius cogens – e não de natureza de dispositivos9.

A base da interpretação e aplicação correta dos direitos humanos se encontra na principiologia do direito, no estudo da hermenêutica e da exegese, literal, histórica, lógica e racional. São os princípios de justiça e de equidade que norteiam os direitos humanos, dando a eles validade hierárquica e legitimidade, segundo as regras da intertemporalidade e da antinomia de 1º e 2º grau10.

Ensina o ex-ministro da corte suprema sobre controle da legalidade e da constitucionalidade:

Existem certos direitos individuais cujo respeito e consenso exige a comunidade internacional. São os direitos da pessoa humana, reconhecidos pela Declaração universal dos Direitos Humanos, ainda que não tenha natureza de tratado, por não haver sido regularmente celebrada como determinam as normas do direi-

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to internacional público, tem força como se assim fosse, e para alguns tratadistas está na categoria dos Documentos indenunciáveis, o que tecnicamente não é exato, mas politicamente é uma realidade.11Por sua vez, leciona Konder Comparato:

Sem entrar na tradicional querela doutrinária entre monistas e dualistas, a esse respeito, convém deixar aqui assentado que a tendência predominante, hoje, é no sentido de se considerar que as normas...

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