A mediação e o interesse público ambiental

AutorSidney Rosa da Silva Junior
CargoMestre em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Páginas269-284

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Introdução

A observação histórica demonstra que a ciência jurídica desenvolve-se com estímulo nas mais diversas transformações que ocorrem no âmbito social. As conquistas democráticas se petrificaram na forma de direitos e limitações, traduzindo uma esperança de garantia e proteção. O elementoPage 270jurídico ganha relevância social e, aos poucos, vai se convertendo em instrumento de transformação social.1 De outra sorte, o fortalecimento de um sistema econômico de cunho fortemente individualista, culminou na retirada do ser humano do foco das atenções do Direito e, sob a influência de uma idéia de massificação da sociedade decorrente de existência do que se convencionou chamar de relações globalizantes2, os problemas da sociedade passaram a ser vistos sob a ótica de conflitos de massa, levando a individualidade3 a um plano secundário. Esse movimento, por muito tempo, andou junto a um sistema de implementação de direitos, que, pautado em padrões abstratos de comportamento, servia para identificar se determinadas condutas estariam ou não de acordo com o direito objetivo. A incapacidade, todavia, de este sistema atingir os escopos fundamentais dele esperados permitiu, todavia, que o pensamento jurídico iniciasse um questionamento sobre a adequação daquele instrumento para lidar com os problemas que surgiam a partir do distanciamento produzido entre a ordem jurídica abstrata (mundo do Direito) e o fato social (mundo da realidade). É neste momento de mudança que se situa o presente estudo, uma vez que o longo período em que a ordem jurídica estatal priorizou o sistema jurisdicional como método oficial de solução de conflitos, acabou por arraigar na ciência jurídica uma série de obstáculos ao desenvolvimento de outras tecnologias de pacificação social como aquelas de natureza consensual.

Apesar de se estar vivendo um momento de desabrochar dessas novas estruturas jurídicas, seu desenvolvimento concreto ainda esbarra na aparente dificuldade em compatibilizá-las com elementos dogmáticos já assentados na ciência do direito. Neste contexto, apesar de ser ainda limitada a aplicação de soluções consensuais em sede de disputas coletivas, já é possível perceber o entrave causado por uma suposta incapacidade de compatibilizar a titularidade difusa do bem jurídico em jogo com a possibilidade de autocomposição do conflito.

De forma a ilustrar os contornos do problema, tome-se a intensa controvérsia sobre a natureza jurídica do ato de ajustamento de conduta celebrado entre órgãos do Estado e causadores de acidentes coletivos, como aqueles celebrados com agentes poluidores visando a impedir ou minimizar a ocorrência do dano ambiental. Apesar de já ter sido analisada pela jurisprudência da mais alta corte do país a possibilidade de um órgão público fazer concessões sobre o direito material envolvido em uma disputa transindividual4, parcela considerável da doutrina somente vislumbra a possibilidade de as pessoas estatais diretamente envolvidas na discussão promoverem concessões recíprocas em suas posições, quando estas se referirem às condições de cumprimento das obrigações legais5, ou seja, sobre aspectos acidentais da questão principal em disputa, sob oPage 271argumento de estarem limitados pela presença do interesse público indisponível característico de tais controvérsias.

Não se pretende aqui simplesmente comungar com um ou outro entendimento, defendendo seus principais argumentos, e rechaçar correntes jurídicas divergentes. Na verdade o objetivo principal deste estudo é aprofundar a discussão em um âmbito mais restrito, circunscrevendo apenas os conflitos decorrentes de matéria ambiental. Por certo, a discussão não pode ser traçada no plano genérico do ato ilícito coletivo, já que os diversos interesses em jogo apresentam elementos bastante divergentes e especificidades inerentes a cada matéria envolvida. Não se pode, por exemplo, considerar que conflitos ambientais e consumeristas compartilhem das mesmas premissas e características, merecendo tratamento único da ciência jurídica, não obstante muitas vezes ser possível que, na prática, ambos se inter-relacionem. Aliás, normalmente é de fácil visualização o direito subjetivo do consumidor lesado, enquanto que a lesão ao meio-ambiente nem sempre expressa de forma nítida os elementos estáticos dos tradicionais direitos subjetivos, dificultando, de certa forma, sua tutela autônoma6.

A finalidade que se persegue, portanto, é analisar elementos fundamentais dos conflitos afetos ao meio ambiente de modo a perquirir bases capazes de distingui-los dos demais e compreender se sua titularidade universal configura um obstáculo intransponível à utilização de soluções negociadas como a mediação.

Dano ambiental e os meios adjudicatórios

O estudo de problemas ambientais gira em torno de um conceito fundamental e propedêutico à exata compreensão dos contornos de incidência e à aplicabilidade de processos negociados de solução de controvérsias à matéria: o dano ambiental.

Podem ser identificadas duas variáveis importantes à aferição da lesividade de determinada conduta, considerando seus reflexos à questão ambiental. A primeira variável expressa a dificuldade em se definir o conceito de meio ambiente, enquanto que a segunda decorre do próprio processo de composição de disputas, quando são buscadas alternativas que atendam aos interesses de todos os envolvidos.

A tutela do meio ambiente só se mostra possível e racionalmente legítima a partir do momento em que se define a espécie de conduta capaz de gerar dano ambiental. Todavia tal noção é muitas vezes confundida com o que se poderia chamar de dano à natureza, criando um pressuposto falso para a utilização dos instrumentos de proteção, seja na esteira da prevenção, seja na esfera da reparação. De fato, poder-se-ia afirmar com total convicção que toda conduta capaz de colocar em risco o meio ambiente seria, por sua própria natureza, passível de causar o chamado dano ambiental. Entretanto, nem sempre um comportamento de exploração de recursos naturais e/ou culturais é capaz de produzir o mesmo resultado, visto que não se confundem as noções de bens ambientais com o próprio bem jurídico ambiental. Estes últimos são aqueles elementos naturais e culturais individualmente considerados, como florestas, animais e o ar, que compõem uma classe de bensPage 272públicos de uso comum essenciais à sadia qualidade de vida7, capazes de serem desfrutados8 por qualquer pessoa dentro de determinados limites. A noção de bem jurídico ambiental, porém, consiste na integração ecológica de cada um desses elementos, que se desprende de seus componentes paras formar uma singularidade ficcional própria. Aqui está o principal vetor da aplicação à matéria métodos negociais de solução de controvérsias, pois os interesses que envolvem a tutela do meio ambiente estão intrinsecamente ligados à uma razão de equilíbrio ou equidade intergeracional e, na maioria das vezes, ocultos pelas discussões sobre posições – permitir ou proibir determinada conduta. O conflito de posições acaba por gerar um impasse típico de ser solucionado pela via adjudicatória, atribuindo-se rótulos de vencedores e perdedores às partes envolvidas no problema9. Quando o foco da questão passa a girar em torno da manutenção do equilíbrio sistêmico (proteção do bem jurídico ambiental), deixam-se as posições de lado para se permitir a discussão de idéias capazes de preencher todos os interesses afetos à controvérsia, abrindo espaço para a adoção de meios de negociação e mediação.

Hodiernamente, ao se pretender definir o conceito de meio ambiente, torna-se necessário fazêlo sob o prisma das relações dinâmicas entre seus componentes. Em suma, pode-se compreendê-lo como um conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas10. Por ser composto de uma série de componentes dinâmicos, em sua tutela descabe a busca por um estado absoluto de equilíbrio ecológico, mas uma forma de viabilizar as condições para que o sistema consiga absorver e gerir todas as relações que lhe são implicadas. Assim, sendo o homem elemento integrante desse sistema, sua atuação somente pode ser vista como destoante e lesiva no momento em que constitui uma barreira ao curso regular do processo de recomposição natural de uma perturbação. Notadamente processos de predação e competição são plenamente auto-ajustáveis quando mantidas as condições para que estas relações se estabilizem, independentemente de ser possível verificar uma oscilação sazonal na quantidade populacional de cada comunidade de acordo com os eventos causais nelas incidentes11. Evidentemente o desenvolvimento humano exige o consumo de determinados recursos naturais, razão pela qual haverá sempre um nível tolerável de degradação de bens ambientais12plenamente auto-regenerável. A violação desse limite estaria configurada pelo rompimento da capacidade de absorção inerente ao próprio sistema, caso em que se estará diante de um dano ambiental.

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Portanto, impossível analisar de forma absoluta se determinada conduta humana é ou não lesiva ao meio ambiente, sendo imperioso identificar como a mesma afetará os processos naturais concretos e em que medida irá alterar a capacidade de o ecossistema se recompor de tal perturbação. Com efeito, ao contrário do conceito de bem ambiental, a noção jurídica de meio ambiente – ou bem jurídico ambiental – não é passível de ser visualizada a partir da mera expressão física, exigindo, por seu turno, uma abstração dogmática capaz de traduzir o conjunto de relações naturais de manutenção e reestruturação do ecossistema.

Necessário, no entanto, frisar ser o homem elemento integrante desse organismo e, por tal razão, irá participar dessas relações dinâmicas entre os diversos elementos componentes do meio através da utilização e exploração dos recursos que lhe...

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