Os intelectuais e a censura na França no século XX

AutorJean-Yves Mollier
CargoDoutorado em História (Université Paris I, 1986)
Páginas63-85
DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2017v17n39p63/
6363 – 85
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Os intelectuais e a censura
na França no século xx1
Jean-Yves Mollier2
Resumo
Em pleno século XX, na França, intelectuais laicos, de um lado, católicos, de outro, defenderam
a censura de obras literárias, de exposições, de artistas e até mesmo de histórias em quadrinhos.
A história dos intelectuais franceses desse período encobre a existência e a atuação de figuras
conservadoras e reacionárias, virulentas na expressão de suas convicções, vindas em boa parte do
meio clerical, e que dispuseram de grande visibilidade e influência, não apenas na França. Embora
menos lembradas, é preciso compreender o alcance de suas ideias, as formas de sua difusão, o papel
deletério que exerceram, em seu tempo, com a calúnia e a condenação sistemática de obras, de
autores, de artistas, e o modo como se impuseram ao Estado e atuaram em seu nome. Reconstituir
essa dimensão da história intelectual francesa é fundamental hoje, quando se pode ouvir o eco de
totalitarismos de base religiosa que progressivamente ameaça as liberdades individuais.
Palavras-chave: Intelectuais franceses. Censura. Totalitarismo. Reacionarismo. Religião.
“Madame Anastasie”, essa representação caricatural da censura sob a
forma de uma senhora idosa munida de tesoura e meio cega e surda apa-
receu na imprensa francesa no período dito da “Ordem Moral”3. A cen-
sura não nasceu, no entanto, no m do século XIX. Ela estava, de fato,
instalada há mais de trezentos e cinquenta anos na França, quando en-
tão a Revolução colocou m, em julho de 1789, ao que chamamos, deste
1 Tradução de Simone Varella, Josiane Bittencourt e Luzmara Curcino.
2 Doutorado em História (Université Paris I, 1986). Diretor do Centre d’Histoire Culturelle des Sociétés Contem-
poraines de 1998 a 2005, Diretor da École Doctorale “Cultures, Organisations, Législations” de 2005 a 2007,
Diretor da École Doctorale “Cultures, Régulations, Institutions et territoires” de 2009 a 2014. Professor Emérito
da Université de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines.
3 A ilustração de André Gill intitulada “Madame Anastasie” foi publicada pelo jornal L’Eclipse em 19 de julho
de 1874 (DELPORTE, 1997).
Os intelectuais e a censura na França no século xx| Jean-Yves Mollier
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lado do Oceano Atlântico, de Antigo Regime. Surgido com a obrigação do
depósito legal de livros, assim como todo tipo de impresso, incluindo gra-
vuras e letras de música, entre 1537 e 1624 (MOLLIER, 2015), o controle
estatal sobre a produção dos escritores, professores, padres, juristas, e ou-
tros especialistas da escrita, tinha então criado um corpo de censores reais
que se proliferara de modo a poder contar com cerca de 200 representantes
ao nal do século XVIII (DARNTON, 2014).
Figura 1 – “Madame Anastasie”
(DELPORTE, 1997)
Abolida de fato no contexto do levante popular que precede a extinção
da Monarquia, a censura volta à tona três anos mais tarde, quando a Repú-
blica, ameaçada pelos soberanos europeus em coalizão contra ela, decide
controlar a circulação de jornais e livros. Enquanto a Declaração dos Direi-
tos do Homem tinha proclamado, em 1789, a liberdade de expressão como
um dos direitos fundamentais do cidadão, a Convenção Jacobina, a partir
do m de 1792, iria restringir essa liberdade e depois suspendê-la no ano
seguinte. Napoleão Primeiro, herdeiro da Grande Revolução, mas também
imperador despótico, iria ainda mais longe restabelecendo ocialmente a
censura e criando, em fevereiro de 1810, um corpo de “Comissários da
Livraria”, uma espécie de polícia do espírito que então inicia sua atuação,
o que se estenderá por aproximadamente 70 anos.
Com efeito, se o regime de licença que era concedida aos livreiros,
obrigatória para todos os impressores e todos os editores, foi anulado em

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