A proteção integral de crianças e adolescentes negros no Brasil: uma abordagem a partir dos instrumentos normativos internacionais de proteção aos direitos humanos

AutorFernanda da Silva Lima; Josiane Rose Petry Veronese
Páginas426-439

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Introdução

Como premissa introdutória é interessante refletir se o Direito deve ou não servir como instrumento para transformação social 1234 5. Alguns podem dizer que não, outros podem dizer sim. Entende-se, no entanto, que na área da infância e adolescência, cujo caráter é transdisciplinar, o direito é um dos instrumentos acessíveis ao alcance da concretização dos direitos fundamentais às crianças e adolescentes.

No Brasil, em matéria de infância têm-se cientistas que vêm consolidando a doutrina da proteção integral e um ordenamento jurídico em âmbito nacional e internacional favorável e compatível com a nova temática. Pode-se dizer que no mundo Page 427 jurídico as normas nomeadamente as regras sempre estiveram atrás dos fatos sociais. Atualmente na área infanto-juvenil temos o seu avesso, em que pela primeira vez cria-se um ramo jurídico autônomo, cujas regras prescrevem exatamente o dever ser e propõem mudanças nas práticas sócio-políticas. Tem-se um conjunto normativo e uma doutrina jurídica avançada que precisa urgentemente refletir nas práticas sociais.

Por isso, a importância em compreender a doutrina da proteção integral dissociada das velhas doutrinas jurídico-repressivas. Realmente o Direito da Criança e do Adolescente não se apresenta apenas como um amontoado de regras, mas com uma reformulação legislativa, política e doutrinária. O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990) surgiu para regulamentar os dispositivos constitucionais6 e foi aprimorado ao contemplar em seu texto normativo a política de atendimento baseado num completo sistema de garantia de direitos que devem atender de maneira satisfatória os direitos fundamentais de crianças e adolescentes no país.

O Direito da Criança e do Adolescente é universal, e nesse sentido não escolhe e não seleciona quem são os seus titulares. Atende a todas as crianças e adolescentes sem distinção de classe social, de gênero, de raça, de cor.

Por ser um ramo jurídico autônomo e com uma doutrina própria - o da proteção integral, como tantos outros, seu campo de atuação abre espaços para os mais variados temas em matéria de infância e adolescência.

Neste trabalho optou-se por estudar a proteção internacional dos direitos humanos de crianças e adolescentes pertencentes aos grupos sociais negros no país, principalmente porque os grupos negros sofrem dos fenômenos do racismo, do preconceito e da discriminação racial7 o que acaba por provocar o agravamento do seu processo de exclusão social. Igualmente as crianças e adolescentes negros não estão alheios a estes fenômenos.

Assim, segue o entendimento de que a partir do momento que se reconhece crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, percebe-se que muitas dessas crianças e adolescentes cujos direitos são violados são pertencentes ao segmento negro da população. E que muitas dessas sofrem como os adultos dos mesmos fenômenos que acabam por excluí-las e desprovê-las dos seus direitos fundamentais.

Assim, buscar-se-á através das regras jurídicas editadas nos documentos internacionais dos quais o Brasil é signatário, dispositivos que vedem qualquer Page 428 manifestação de racismo, preconceito e discriminação racial como forma de impedir a violação dos direitos de crianças e adolescentes negros.

Como a simples proibição normativa não impõe necessariamente a mudança no comportamento social é factível aferir que não basta a existência de normas incriminadoras de condutas, pois ao se tratar de minorias e nesse caso específico de minorias negras, é imprescindível o investimento em políticas sociais capazes de transformar a realidade social desses grupos socialmente marginalizados e afrontados nos seus direitos fundamentais.

A pesquisa utilizou o método indutivo de análise interdisciplinar crítica e reflexiva da realidade, envolvendo levantamento bibliográfico.

1 Apontamentos iniciais sobre o direito da criança e do adolescente

É importante compreender o Direito da Criança e do Adolescente enquanto ramo jurídico autônomo, o que significa reconhecê-lo como um subsistema jurídico dotado de regras, princípios e valores próprios. O Direito da Criança e do Adolescente ao conceder ao universo infanto-juvenil a titularidade de direitos fundamentais, e por isso mesmo, o reconhecimento da condição de sujeitos de direitos o fez desvencilhado de velhas doutrinas e velhas concepções.

O Direito da Criança e do Adolescente, portanto, é responsável por incorporar uma nova concepção jurídica de proteção que ultrapassa o mero legalismo formal para se afirmar. A proteção integral que contempla crianças e adolescentes disposta na Convenção Internacional dos Direitos da Criança de 1989, na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 não pode ser resumida a um mero conjunto normativo.

Mas, além disso, a ruptura com a concepção menorista em pleno vigor no Brasil durante os revogados Códigos de Menores de 1927 e 1979, que apenas coisificava a infância e a colocava na mira do controle repressivo estatal aqueles compreendidos na "situação irregular", foi responsável pela reprodução das mais variadas violências. Os velhos modelos doutrinários baseados em concepções obsoletas não dispunham de uma tutela protetiva à infância brasileira, ao contrário, foram responsáveis por culpabilizar e punir principalmente à família e as crianças e adolescentes empobrecidos.

Por isso a transição paradigmática da velha "situação irregular" para o prisma da "proteção integral" inaugurou uma nova fase no campo de atuação do Direito, principalmente porque anacora-se em uma nova base axiológica composta pela tríade: liberdade, respeito e diginade. Acerca dessa nova teoria jurídico-protetiva transdiciplinar, Ramidoff (2007, p. 13) afirma que é extremamente necessário que haja um reordenamento estratégico no campo das políticas públicas capazes de auxiliar as crianças, os adolescentes e suas famílias no alcance da real satisfação dos seus direitos fundamentais. E aliado a isso, é imprescindível a atuação e responsabilização compartilhada da sociedade civil organizada ou não, do poder público e da família. É essa ação articulada entre família, Estado e sociedade que permitirá a construção de Page 429 mecanismos políticos democráticos capazes de implementar de forma permanente os direitos fundamentais inerentes a crianças e adolescentes. A doutrina

[...] jurídico-protetiva de viés transdisciplinar do direito da criança e do adolescente, precisamente, por cuidar de elementos fundamentais de um direito novo tem como o seu principal desafio justamente a construção, conscientização, mobilização, implementação e eficácia dos novos valores humanos que encerra em prol daquelas novas subjetividades: a criança e o adolescente. (RAMIDOFF, 2007, p. 13)

A doutrina jurídico-protetiva para a infância e adolescência tem na sua base de estruturação duas premissas específicas: 1) o reconhecimento de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos; 2) a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Esse novo modelo de proteção jurídica prescinde da adequação do campo de incidência das normas ao caso concreto para que se alcance fundamentalmente uma completa satisfação jurídica. Essas duas premissas são norteadores da nova prática político-social que deve ser implementada à essa parcela vulnerável da população.

O Direito da Criança e do Adolescente deve ter condições suficientemente próprias de promoção e concretização de direitos. Para isso deve-se desvencilhar do dogmatismo e do mero positivismo jurídico acrítico. De acordo com Veronese e Oliveira (2008, p. 53), não mais é possível conceber um "Direito alheio à realidade social", pois essa postura pode ensejar a "[...] manutenção do status quo determinado pela classe dominante e, consequentemente, da manutenção do atual Estado capitalista que pretende exprimir-se além das suas contradições interiores".

O Direito da Criança e do Adolescente enquanto ramo autônomo do direito, portanto, é responsável por ressignificar a atuação estatal, principalmente no campo das políticas públicas e impõe corresponsabilidades compartilhadas. Para Lima (2001, p. 80) a construção inovadora da doutrina da proteção integral é responsável por inaugurar

[...] um novo modelo jurídico, isto é, um novo ordenamento de direito positivo, uma nova teoria jurídica, uma nova prática social (da sociedade civil) e institucional (do poder público) do Direito. O que importa, neste caso, é perceber que desde a criação legislativa, passando pela produção do saber jurídico, até a interpretação e aplicação a situações concretas, este Direito impõe-nos o inarredável compromisso ético, jurídico e político com a concretização da cidadania infanto-juvenil.

A doutrina da proteção integral compreende um modelo capaz de atender as necessidades sociais a partir de mudanças estruturais de valores, regras e princípios que propiciem uma mudança emancipadora e o reconhecimento de direitos fundamentais para crianças e adolescentes.

Além disso, a proteção integral é globalizante no sentido de que cria estratégias de transformação da realidade social através da implantação de um amplo sistema de garantia de direitos, cuja funcionalidade perfeita prescinde do amplo investimento em redes institucionais de atendimento descentralizadas. Assim, a proteção integral como o Page 430 próprio nome contempla, tem na funcionalidade das redes de atendimento a sua perfeita formatação jurídico-política. (CUSTÓDIO, 2008, p. 30-31)

Para que haja uma compreensão da sistemática que envolve o Direito da Criança e do Adolescente é indispensável o estudo sobre a teoria neoconstitucional responsável por...

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