A insuficiente proteção jurídica das cotas de contratação de pessoa com deficiência no setor privado

AutorUlisses Dias de Carvalho
Páginas113-142

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Introdução

O Brasil, durante e após o processo de redemocratização, em uma tentativa de construção histórica da legitimidade social e de consolidação democrática dos sistemas jurídico e político, esforçou-se em tentar aderir a um discurso de defesa dos direitos humanos, seja para, no âmbito interno, facilitar o processo de abertura política após o período ditatorial, seja para, no âmbito externo, garantir o respeito e o reconhecimento de outras nações que também estavam comprometidas com os direitos humanos. Por isso, o país, reconhecendo a necessidade de adequar a sua soberania aos primados da dignidade, submeteu-se aos sistemas internacional e regional de proteção dos direitos humanos.2 Retraíam bem esse quadro as normas contidas no inciso III do art. 1a da Constituição Federal, que determina ser a dignidade da pessoa humana fundamento da República (âmbito interno), e no inciso II do art. 4a da Carta Constituição que cria o princípio da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais do país (âmbito externo).

A principal consequência dessa mudança de paradigma é a centralização do respeito teórico à pessoa nos sistemas jurídico e político e a ampliação da legitimidade de suas normas, que agora buscam na noção de dignidade da pessoa humana seu fundamento de validade e de eficácia. Esse, afinal, é o motivo da importância da questão da legitimação dos direitos humanos em nosso país: para além de um exame meramente formal, a validade e a eficácia das normas passaram a depender de uma análise material do

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direito (respeito à dignidade da pessoa humana, como elemento que confere unidade de sentido e legitimidade à ordem constitucional).3

Para o efetivo cumprimento de todos esses deveres constitucionais, toda essa construção depende do desenvolvimento de uma cultura de proteçao dos direitos humanos, com a cotidianização dessa categoria de direitos, difusão de suas bases teóricas e potencializaçao da autonomia dos sujeitos, o que foi reconhecido por Gallardo,4 nos seguintes termos:

[...] Sem alarde, da possibilidade de criar uma sensibilidade política e moral para direitos humanos, uma cultura efetiva dos direitos humanos, depende hoje a sobrevivência humana da humanidade. Esse desafio era importante antes da nova ordem, porém, hoje, é decisiva. Devemos nos orientar para a criação planetária de uma cultura de direitos humanos.

[...]

Elejo como experiência fundadora para essa transformação do Direito a luta por direitos humanos, por seu fundamento sócio--histórico, por sua proposta universal e integral em tensão com necessidades diferenciadas e particularizadas, por potencializar articulações humanizadoras entre diversos, por sua proteçao utópica, por seu requerimento para institucionalizar-se, sem guerra, como Direito positivo planetário. Essa luta demanda estudos e análise, mobilizações mais frequentes e constantes para denunciar tanto violações circunstanciais e sistémicas como deturpações e utilizações ideológicas e igualmente para resgatar esses direitos, ressignificá-los, defendê-los e promovê-los como bandeiras e procedimentos de luta popular e coletiva.

[...]

Necessitamos de um movimento social centrado em direitos humanos entendidos sócio-historicamente, isto é, como transferências de poder social e pessoal que possibilitam práticas

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produtivas de autoestima legítima, um movimento que tenha como eixo articulador a produção de uma cultura de direitos humanos, de uma sensibilidade de reconhecimento, acompanhamento e solidariedade humana. De uma cultura que aposte no risco de assumir o diferente que se empenha em crescer de maneira libertadora, como referência de aprendizagem e humanidade, como estímulo para crescer vital e socialmente a partir de carências próprias [...].

Esse é o tipo de reconhecimento que parece faltar em nosso país para os direitos sociais do trabalho. Apesar do extenso rol de direitos elencados nos arts. 7a e 8a da Constituição, as relações laborais em nosso país em muitos casos podem ser consideradas medievais. Não é raro encontrarmos trabalhadores em situação degradante de labor, com jornadas exaustivas ou mesmo presos por dívidas. O trabalho infantil, por sua vez, ainda não foi solucionado, a despeito dos esforços do poder público. Mesmo no meio urbano é fácil encontrar trabalhadores expostos a risco de morte sem qualquer garantia de proteção para a sua saúde e segurança.

Outra ocorrência comum nas cidades brasileiras, e que é objeto do presente estudo, é a existência de milhares de pessoas com deficiência, com potencialidades para o labor, a quem não é oferecida a oportunidade de entrar no mercado de trabalho, por conta da insuficiente proteção conferida pela legislação atualmente em vigor.

Com efeito, o art. 93 da Lei Federal n. 8.213/91, que fixa parâmetro para a obrigatoriedade de contratação de pessoas com deficiência por parte das empresas estabelecidas no Brasil, estabelece que apenas aquelas que possuam cem ou mais empregados tem o dever legal de contratá-las.

Conforme será analisado no estudo, este patamar não leva em consideração que apenas uma parcela relativamente pequena das empresas possui mais de cem empregados em nosso país, estando elas, em sua maioria, localizadas em centros urbanos mais desenvolvidos. Essa circunstância acaba por inviabilizar o exercício do direito fundamental ao trabalho das pessoas com deficiência e demonstra que as medidas adotadas pelo Estado para proteger esse direito são insuficientes.

Conforme será visto ao longo do texto, o estudo teve por objeto apenas a cota legal de contratação de pessoas com deficiência no setor privado, que, no Brasil, até pela amplitude do mercado de trabalho, é o principal instrumento de concretização do direito ao emprego dessas pessoas. Não é objeto de estudo neste trabalho o dever de contratação de pessoas com deficiência no setor público.

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O estudo está dividido em quatro partes: na primeira, a partir da revisão bibliográfica realizada, serão formuladas algumas considerações gerais sobre o dever geral de proteção decorrente dos direitos fundamentais, especialmente daqueles de natureza social, imposto ao Poder Legislativo. Na segunda, serão analisados alguns dados obtidos em institutos oficiais de pesquisa que demonstram a insuficiência da norma legal em análise. Na terceira, serão analisadas algumas experiências estrangeiras sobre a temática em questão, especificamente quanto à situação das cotas legais. Por fim, na quarta parte serão formuladas propostas para a melhoria de nosso sistema com base nas análises realizadas.

1. O dever de proteção decorrente dos direitos fundamentais

Os direitos fundamentais constituem explicitações da dignidade da pessoa humana e, ao menos em princípio, em cada direito fundamental se faz presente um conteúdo ou, pelo menos, alguma projeção da dignidade da pessoa.5

E à dignidade da pessoa é reconhecida uma dupla dimensão, negativa e positiva. A primeira consubstancia-se no direito de defesa dela decorrente em vista de uma violação da dignidade pessoal. A segunda, no dever do Estado de promovê-la e garantir condições dignas de vida para todos. Nesse sentido, Sarlet pontifica:6

[...] se na sua condição de direito de defesa não se deverá jamais aceitar a violação da dignidade pessoal (ou, pelo menos, de seus elementos nucleares), mesmo em função de outra dignidade, pelo prisma positivo (ou prestacional) verifica-se que não há como admitir- inclusive em se cuidando de direitos subjetivos a prestações - a existência de uma larga margem de liberdade por parte dos órgãos estatais a quem incumbe a missão, para além de respeitar (no sentido de não violar), de proteger a dignidade de todas as pessoas, bem como de promover e efetivar condições de vida dignas para todos.

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Por sua vez, Canotilho,7 fazendo referência à dimensão objetiva dos direitos económicos, sociais e culturais, informa que esses direitos se manifestam por meio de imposições legiferantes apontando a obrigatoriedade de o legislador atuar positivamente, criando as condições materiais e institucionais para o exercício desses direitos e pelo fornecimento de prestações aos cidadãos, densificadoras da dimensão subjetiva essencial destes direitos e executoras do cumprimento das imposições institucionais. É o que Ferrajoli8 chama de esfera do não decidível: aquilo que nenhuma maioria pode decidir, em violação aos direitos de liberdade, e aquilo que nenhuma maioria pode deixar de decidir, em violação aos direitos sociais, estes e aqueles estabelecidos pela constituição.

Esses três autores sintetizam a linha de pensamento adotada no presente trabalho: há nos direitos fundamentais, especialmente aqueles vinculados aos direitos sociais, a existência de um dever genérico de proteçao do Estado em garantir que eles sejam concretizados viabilizando a existência digna dos cidadãos.

Esses deveres genéricos funcionam como mandados normativos direcionados ao Estado e expressam valores objetivos selecionados pelo legislador constituinte. Dentro dessa perspectiva, o Estado se compromete a proteger os direitos fundamentais tanto com relação ao próprio poder público quanto em face das investidas de terceiros. Nas palavras de DieterGrimm:9

[...] enquanto os direitos fundamentais como direitos negativos protegem a liberdade individual contra o Estado, o dever de proteçao derivado desses direitos destina-se a proteger indivíduos contra ameaças e riscos provenientes não do Estado, mas sim de atores privados, forças sociais ou mesmo desenvolvimentos sociais controláveis pela ação estatal. Hoje...

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