O insucesso da intervenção médicae a(possível) indenização

AutorSilvana Dutra Torres
CargoAdvogada; Pós-graduada em Direito &#x201c;Novos Direitos na Sociedade Globalizada&#x201d; pela URI, campus de Santo Ângelo (RS); Mestranda do Curso de Pós-graduação<i> Stricto Sensu</i> em Direito da URI, Campus de Santo Ângelo (RS).
Páginas295-310

Page 295

Introdução

O direito moderno consagrou o conceito da obrigação de indenizar quando houver erro de procedimento. A intervenção médica e seus eventuais insucessos,Page 296que até bem pouco tempo tinham seu resultado atribuído apenas à vontade divina, deixaram de constituir-se desígnio divino e passaram a constituir-se ato humano, com todas as suas possibilidades de falha por erro ou culpa.

Juntamente com a evolução da Medicina, passou-se a questionar a eficácia dos procedimentos médicos adotados. Pois bem, considerando que a obrigação de indenizar baseia-se no agir com erro ou culpa e, considerando que a evolução da Medicina não atinge a todos os locais, nem a todas as situações, torna-se necessário estabelecer parâmetros ético-jurídicos para diferenciar o erro humano das situações em que o insucesso decorre das limitações científicas.

Procuraremos demonstrar que o insucesso ou resultado inesperado pode ter como origem, além do erro médico, as limitações científicas do diagnóstico e, em determinados casos, questões inerentes ao próprio organismo do paciente, cuja sistemática e operacionalização fogem ao controle do conhecimento científico e, ao invés da melhora, podem levar ao agravamento do quadro clínico, ou até mesmo ao óbito.

Assim, a temática é no sentido da busca de como diferenciar o insucesso decorrente de limitação científica e o insucesso decorrente do erro médico, na medida em que precisamos estabelecer parâmetros ético-jurídicos para avaliar se o insucesso de uma intervenção médica constitui-se ato ilícito.

1 Histórico e fundamentos da responsabilidade civil

A doutrinadora MARIA HELENA DINIZ ensina que “o vocábulo “responsabilidade” é oriundo do verbo latino respondere, designando o fato de ter alguém se constituindo garantidor de algo. Tal termo contém, portanto, a raiz latina spondeo, fórmula pela qual se vinculava, no direito romano, o devedor dos contratos verbais” (1996, p. 29).

O direito moderno ainda usa, em parte, a terminologia romana em matéria de responsabilidade civil. O artigo 1592 do Código Civil de 1916, atualmentePage 297substituído pelo artigo 1863 do Código Civil em vigor (Lei 10.406/2002), surgiu como corolário de uma longa e lenta evolução histórica.

Na busca de fundamentos para a obrigação de reparar o dano causado a outrem, várias foram as teorias que se apresentaram ao longo da história, valendo registrar, em face de seu maior destaque, as teorias que na atualidade são impostas, quais sejam, a subjetiva (ou da culpa) e a objetiva (ou do risco).

A classificação da responsabilidade civil em objetiva e subjetiva provém da evolução da sociedade através dos tempos. No princípio, todo ato humano causador de um dano a terceiro gerava a este o direito de reparação. Posteriormente, com a mudança do sistema político-social, a responsabilidade do grupo deslocou-se para o indivíduo causador do dano, o qual passou a alegar em defesa a sua não intenção de produzir o dano.

MIGUEL MARIA DE SERPA LOPES, citado por MARIA LEONOR DE SOUZA KÜHN, afirma que “a introdução da idéia de culpa na responsabilidade civil pode ser atribuída à jurisprudência romana clássica, que passou a considerar o autor livre de responsabilidade quando tivesse agido sine culpa” (2002, p. 20).

A responsabilidade subjetiva é o divisor de águas da responsabilidade civil. Esse diploma, a princípio de uso restrito, atingiu dimensão ampla na época de Justiniano, como remédio jurídico de caráter geral que, por considerar o ato ilícito uma figura autônoma, culminou com o surgimento da moderna concepção da responsabilidade extracontratual. A essência desse tipo de responsabilidade vai assentar, fundamentalmente, na pesquisa ou indagação de como o comportamento contribui para o prejuízo sofrido pela vítima.

Na teoria da responsabilidade subjetiva, conforme leciona CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, o que “sobressai no foco das considerações e dos conceitos é a figura do ato ilícito, como ente dotado de características próprias, e identificado na sua estrutura, nos seus requisitos, nos seus efeitos e nos seus elementos” (2002, p. 29).

Já a responsabilidade objetiva está vinculada à idéia do risco. Quem provoca uma lesão ao valor alheio é responsável pelo ressarcimento do lesado. Pode-Page 298se dizer que é uma obrigação legal de não causar dano a outrem, que importa na recomposição do prejuízo e independerá da comprovação de culpa na conduta do agente lesante, já que é presumida pela legislação, ou simplesmente dispensada a sua comprovação. Contudo, não prescinde da presença dos demais elementos da responsabilidade civil, pois deverá haver nexo causal entre a atividade de quem causou o dano e a lesão resultante.

Especificamente com relação à responsabilidade civil médica, a teoria evoluiu junto com as técnicas e tecnologias empregadas na Medicina, bem como de acordo com as legislações vigentes em cada época e sociedade. Nos seus primórdios, a prática médica estava invariavelmente relacionada à religião. Assim, o médico era, na maioria das vezes, visto como um mensageiro dos deuses e, por isso, qualquer ato falho era imediatamente execrado por toda a sociedade, e o profissional rigorosamente punido.

Depois, dada à importância desempenhada pela Medicina, em todos os demais tempos históricos, no conjunto das atividades sociais, foram elaboradas nas legislações dos povos antigos normas referendando questões ligadas ao comportamento profissional dos médicos. A situação desses profissionais começou a mudar no ano de 27 a.C. (Império de Augusto), ano em que a profissão alcançou relativo prestígio, passando a relação médico/paciente ser vista como um contrato consensual de arrendamento de serviços.

A introdução da idéia de culpa ocorreu no período clássico, no século XVIII, a partir do que se passou a diferenciar as falhas decorrentes de imperícia, imprudência e negligência, dos erros originados da falta de recursos tecnológicos, acabando por gerar muitas pesquisas e avanços na área da Medicina. Desde então, a culpa passou a ser o elemento básico da responsabilidade civil médica.

Os doutrinadores JÚLIO CÉZAR MEIRELLES GOMES, JOSÉ GERALDO DE FREITAS DRUMOND e GENIVAL VELOSO DE FRANÇA, com propriedade, destacam que com o passar dos anos, os imperativos de ordem pública foram-se impondo pouco a pouco, até que surgiram as normas disciplinadoras do exercício profissional, como conquista da organização da sociedade. Foi-se vendo que a simples razão de o médico ter um diploma não o exime de seu estado de falibilidade. Por outro lado, o fato de considerar o médico, algumas vezes,Page 299como infrator diante de um erro de conduta na profissão não quer dizer que sua reputação está sem garantia. Somente que seus atos podem e devem ser submetidos a uma equânime apreciação, como são as ações de todos os outros cidadãos, qualquer que seja seu estado ou sua condição (2002, p. 114).

O Brasil, apenas no ano de 1932, através do Decreto nº 20.931/32, é que normatizou a conduta médica, passando a fiscalizá-la. Desde então, nossos médicos são obrigados a observar, além das normas técnicas e morais, as normas jurídicas inerentes a sua profissão. O novo Código Civil dispõe a respeito dessa modalidade de responsabilidade no artigo 9514 .

Como em toda responsabilidade profissional, a inerente ao médico, deverá ser aferida mediante o cauteloso exame dos meios por ele empregados em cada caso. Nesse sentido, oportuno transcrevermos os ensinamentos de DELTON CROCE e DELTON CROCE JÚNIOR, ao lecionarem que é correta “a noção de que o fundamento jurídico da responsabilidade médica repousa na culpa, ou seja, na negligência, imprudência ou imperícia, inescusável...

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