O processo de internacionalização como instrumento de efetivação dos direitos humanos: o sistema europeu e o sistema americano

AutorHenry Atique; Eliana Franco Neme
Páginas96-103

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1 Introdução

O processo de internacionalização e universalização dos direitos humanos constitui-se referência fundamental para a garantia e efetivação desses direitos.12

Nesse sentido, compreender o surgimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos representa conhecer a origem dos tratados internacionais e dos vários órgãos internacionais criados especificamente para de proteção e efetivação de tais direitos.

Entretanto, não bastou a evolução da sociedade humana, no sentido de codificar as declarações de direitos universalmente aceitas, para impedir que as lesões aos direitos humanos continuassem a ocorrer. A concepção de igualdade entre os homens nasce atrelada à necessidade de uma lei escrita, regra geral e uniforme, igualmente aplicada a todos que vivem em sociedade.

O estabelecimento desta nova perspectiva, aliado aos gravíssimos problemas sociais do século XVIII, desencadearam novo passo no processo de evolução cronológica dos direitos humanos, e a sua efetiva constitucionalização, pois se o grande violador dos direitos humanos é o próprio Estado, apenas a partir da contenção de seu poder é que os direitos humanos passaram efetivamente a ser tutelados, com a criação de um sistema de proteção dos direitos humanos que se colocasse acima do Estado.

Nessa nova visão de direitos humanos, da Declaração Universal, decorrem diversas outras disposições protetivas, que buscam efetivar os direitos por ela assegurados. Foram assim criados sistemas gerais e regionais de proteção aos direitos humanos.

A idéia de efetividade de proteção aos direitos fundamentais ganha forças e, pela primeira vez, a par das declarações de direitos, surgem organismos cuja função precípua é a fiscalização e controle das obrigações contraídas pelos Estados.

Neste estudo, serão analisados dois dos mais importantes sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos, o modelo europeu e o modelo americano.

2 Precedentes históricos do processo de internacionalização e universalização dos direitos humanos

Inicialmente, cumpre desvendar os precedentes históricos que levaram à deflagração do processo de internacionalização e universalização dos direitos humanos que, por sua vez, constituem referência fundamental para que se compreenda a criação da sistemática normativa internacional de proteção desses direitos e os primeiros delineamentos do Direito Internacional dos Direitos Humanos.

O fundamento e a natureza dos direitos humanos sempre foram objeto de intensa polêmica, e a discórdia se mantém no pensamento contemporâneo. A discussão circula entre se são direitos naturais e inatos, direitos positivos ou direitos que derivam de um sistema moral. Page 97

Celso Mello, citando Dufour, classifica as concepções existentes em três categorias quanto à origem: a) a tese da origem política, afirmando que esses direitos teriam surgido de uma vontade de protesto coletivo, vez que havia uma ameaça do arbítrio ou "riscos de despotismo", na qual se encontram os autores do século XVIII, como James Otis e Samuel Adams, que foram "os primeiros protagonistas desde 1772 das Declarações de Direitos Americanos" e que, como Rousseau, alegam ser o Iluminismo que contribuiu para os direitos do homem; b) a tese da origem religiosa, de Jellinek e Welzel, que se fundamenta no "pensamento protestante reformador anglo-saxão" desenvolvido no Novo Mundo, com destaque para a liberdade de religião, ao defender a separação da Igreja e do Estado; e c) a tese da origem histórica, dos que defendem "uma origem meramente contingente, de natureza histórica", constituindo as primeiras formulações teóricas dos direitos do homem a expressão doutrinária dos "direitos históricos" dos colonos ingleses da América e um "momento privilegiado" da história das suas relações com a metrópole3.

Pode-se afirmar que cada uma dessas concepções tem a sua parcela de razão, não podendo ser atribuído a um único fator, devido à complexidade da origem dos direitos humanos4.

Defende este estudo, na esteira do pensamento de Flávia Piovesan5, a historicidade dos direitos humanos, na medida em que são "uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução". Nesse sentido, Norberto Bobbio leciona que os direitos humanos, em sua origem, são direitos naturais universais, desenvolvendo-se como direitos positivos particulares quando incorporados pela Constituição de cada Estado e, finalmente, encontram sua plena realização como direitos positivos universais6.

Pode-se afirmar que o maior desafio da atualidade no campo dos direitos humanos é o de protegê-los e, então, com essa perspectiva, ergue-se o Direito Internacional dos Direitos Humanos para resguardar o valor da dignidade humana, concebida como fundamento desses direitos.

O primeiro país a formular uma Declaração dos Direitos do Homem foram os EUA, com a Declaração da Virgínia, em 1776. A própria Constituição norte-americana consagrou direitos do homem. Esse pioneirismo deveu-se à necessidade de os americanos de consagrarem a liberdade de religião, pois, como se sabe, grande parte de sua população havia fugido da Europa em razão de perseguições religiosas.

Em 1789, a Assembléia Constituinte da Revolução Francesa aprovou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, fundamentada na norte-americana, mas de maior repercussão e influência no mundo.

O modelo norte-americano sofre influência religiosa e é de visão liberal, enquanto que o francês é de formulação racionalista e constitui o núcleo do constitucionalismo moderno: governo da lei, igualdade formal e separação dos poderes7.

Anterior às duas Declarações citadas, tem-se o modelo inglês de direitos humanos, originário da Magna Carta de 1215, que visava limitar o poder real e o Bill of Rights do século XVII.

No século XX, as manifestações de preocupação com os direitos humanos se acentuam e a grande característica é a internacionalização desses direitos, pois se verificou que apenas assim eles seriam realmente garantidos, já que seus maiores violadores são os próprios Estados, especialmente os subdesenvolvidos.

Como primeiros marcos desse processo de internacionalização dos direitos humanos, situamse o Direito Humanitário, a Liga das Nações e a Organização Internacional do Trabalho, cada qual contribuindo para esse processo e se assemelhando nesse ponto. Vale dizer, registram "o fim de uma época em que o Direito Internacional era confinado a regular relações entre Estados, no âmbito estritamente governamental"8.

O Direito Humanitário é o direito que se aplica na hipótese de guerra, limitando a atuação do Estado e assim assegura a observância de direitos fundamentais, mesmo em situações de extrema gravidade, ao impor uma regulamentação jurídica para o emprego da violência no campo internacional, sendo então a primeira expressão de que há limites à liberdade e à autonomia dos Estados no âmbito internacional.

Criada após a Primeira Guerra Mundial, a Liga das Nações, por sua vez, também reforçou a necessidade de redefinição da noção de soberania absoluta dos Estados para que se pudesse Page 98 promover a cooperação, a paz e a segurança internacional, condenando agressões externas contra o território e a independência política dos seus membros, passando assim a incorporar em seu conceito compromissos e obrigações de alcance internacional, no que diz respeito aos direitos humanos.

Finalmente, na mesma direção, a Organização Internacional do Trabalho, criada também após a Primeira Guerra Mundial, tinha por objetivo internacionalizar a promoção de padrões justos e dignos de condições de trabalho e bem-estar do trabalhador.

Apresentado o breve pefil desses institutos, percebe-se que visavam salvaguardar os direitos do ser humano, em detrimento à proteção dos arranjos e concessões recíprocas entre Estados, rompendose com o conceito tradicional de que apenas estes últimos seriam sujeitos de Direito Internacional e com a noção de soberania nacional absoluta. Aos poucos, vai-se deixando a idéia de que a forma de tratamento dos Estados aos seus nacionais é problema apenas de jurisdição doméstica, emergindo a idéia de que o indivíduo, agora como sujeito de direito internacional, possui capacidade processual internacional, e de que os direitos humanos constituem matéria de legítimo interesse internacional9.

Contudo, a verdadeira consolidação do Direito Internacional dos Direitos Humanos é recente, tendo surgido após a Segunda Guerra Mundial, em meados do século XX, atribuída à crença de que ao menos parte das monstruosas violações de direitos humanos cometidas pelo Estado da era nazista poderia ter sido prevenida se existisse um efetivo sistema de proteção internacional de direitos humanos10.

No momento em que os seres humanos passam a ser considerados supérfluos e descartáveis, em que vige a lógica da destruição do valor da pessoa, torna-se necessária a reconstrução dos direitos humanos como referencial e paradigma ético capaz de restaurar a lógica do razoável e aproximar o direito da moral11. Neste cenário, o maior dos direitos passa a ser, na terminologia de Hannah Arendt, o "direito a ter direitos", quer dizer, o direito a ser sujeito de direitos12.

Neste contexto é que se reconstroem os direitos humanos e estes se desenham como orientadores da ordem internacional contemporânea. A partir de então, nasce a certeza de que a proteção dos direitos humanos não deve ser reservada apenas ao Estado, concebida como uma questão doméstica, mas deve ser encarada como tema de legítimo interesse e relevância internacional. Cria-se uma sistemática normativa de proteção internacional que faz possível a responsabilização do Estado e pressupõe a delimitação da soberania estatal no domínio...

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