O contrato de trabalho como instrumento de garantia da dignidade humana

AutorGilberto Carlos Maistro Junior
CargoMestre em Direitos Difusos e Coletivos (UNIMES/Santos-SP)
Páginas11-16

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1. Introdução

No presente estudo, buscaremos abordar os aspectos principais pertinentes ao princípio da dignidade da pessoa humana, analisando a contribuição do direito do trabalho no que toca à sua efetivação.

O tema exibe grande relevância vez que, a depender da conclusão a que se chegar, restará possível a proposta de uma releitura do direito do trabalho brasileiro como ramo que disciplina relações de interesse absolutamente difuso. Considera-se o afirmado pois a garantia do respeito à dignidade de qualquer pessoa interessa à coletividade, por consistir no princípio máximo do ordenamento jurídico pátrio, fundamento de nossa República Federativa e pilar principal sobre o qual se sustenta toda a construção do sistema jurídico brasileiro.

Com isso, poder-se-á afirmar a necessidade de afastamento da ideia tradicional de classificação do direito do trabalho como ramo de direito privado, a repercutir inclusive na forma de interpretação dos seus princípios específicos, normas e instituições.

Assim, passaremos a investigar essas questões, sem a pretensão de esgotar o tema, mas, em especial, visando iniciar uma abordagem como forma de convite a essa linha de pensamento e ao profícuo debate.

2. A dignidade da pessoa humana

A pessoa humana é, inegavelmente, o elemento justificador da existência do Direito. Nem mesmo a célebre máxima ubi societas, ibi ius1 afasta essa certeza, vez que a existência da pessoa humana enquanto ser único e individualizado precede à do agrupamento humano organizado.

Aliás, a natureza gregária que marca a humanidade vem, certamente, da fragilidade física da pessoa humana e da constatação, pela via da racionalidade, de que a reunião de homens e mulheres em grupos organizados conduziria a melhores resultados ao gerar uma condição de maior poder e força no enfrentamento dos demais elementos integrantes do meio em que vivem2.

Por isso, parece-nos que, mais devido ao atributo da razão do que, efetivamente, a aspectos naturais e intuitivos, o ente humano adjetiva-se como social e gregário, não se concebendo que possa viver isoladamente pois, entre as principais necessidades humanas, encontramos o convívio social e o consequente estabelecimento de relações com outras pessoas, com os mais diversos fins e graus de profundidade3.

Surgem, então, as sociedades e, concomitantemente a tal fenômeno, a necessidade de regramento das condutas humanas, em razão da instalação de conflitos intersubjetivos de interesses. Aqui, importante salientar que, se a solução encontrada no agrupamento humano pode ser atribuída a uma série de conclusões racionais, a necessidade de limitação das condutas dos integrantes desses grupos em formação – ou já formados – deve-se à também inegável influência do instinto na exteriorização do comportamento das pessoas. À luz do prisma da essência humana, a tendência natural é que cada um “lute” pelo que considera melhor para si, o que, por vezes, pode representar o contrário para outrem. Instaura-se, pois, o conflito de interesses, fator desencadeador de notório desequilíbrio no grupo social, a exigir o estabelecimento de formas de sua solução. Afasta-se, de início, a possibilidade de carrear tal exigênciaPage 12à esfera única do interesse das pessoas diretamente envolvidas, pois, nessa hipótese, tudo conduziria à submissão de uma delas por critérios puramente pautados pela força, seja física, econômica ou política, o que, de fato, não se coadunaria com o conceito de justo.

Diante disso, os mesmos critérios racionais que conduziram a humanidade ao agrupamento social exigiram, concomitantemente, o estabelecimento de regras de conduta, pautando direitos e deveres, buscando, assim, fulminar ou, ao menos, mitigar os possíveis conflitos no âmago da sociedade e, com isso, aproximar a Justiça da vida das pessoas, afastando do ambiente alguns dos fatores fomentadores do desenvolvimento da revolta e da insatisfação.

Nasce, assim, o Direito, que, imediatamente, impõe-se como instrumento de viabilização da vida em sociedade, e, mediatamente, como garantidor da efetivação e do respeito a um rol mínimo de condições e possibilidades de vida que naturalmente são devidas a toda e qualquer pessoa, pelo simples fato de serem qualificadas como humanas, dotadas não apenas de instinto e emoção, mas principalmente de racionalidade e, assim, de intrínseca dignidade. Certo, pois, que não se pode permitir que, tão somente por critérios de força, uma pessoa venha a sobrepor-se a outra, desconsiderando qualquer análise racional do contexto, da relevância das posições e dos valores pertinentes a cada uma, envolvidos e em jogo na questão conflituosa. Em suma, não se pode admitir que os conflitos intersubjetivos tenham sua solução aparente por via afastada do que se possa ter por Justiça. Aqui, em que pese com aquela não se confunda, o Direito, principiologicamente, busca dela se aproximar.

Como se vê, o caráter humano e, pois, a dignidade a ele inerente, surge como justificador do advento do Direito, pela via da razão. Consiste a dignidade, portanto, no ponto de partida da própria construção do que se entende por Direito, sendo que o surgimento desse é devido à constatação da dignidade inerente à toda pessoa humana e, principalmente, à necessidade de respeitá-la, efetivá-la e mantê-la, de forma geral, sendo certo que a construção de uma rede de relações intersubjetivas caracterizadas pelo respeito generalizado da dignidade de cada membro da sociedade resultaria, de modo inegável, no fulminar de maiores conflitos sociais, atingindo-se, pois, o estado de paz tão almejado. Notabiliza-se, com isso, o caráter antropocêntrico do Direito, por ser a pessoa humana sua real e final destinatária4.

Por tais razões lógicas, torna-se claro que “o princípio dos princípios” jurídicos é a dignidade humana, e, como tal, deve guiar a construção jurídica e a interpretação de toda e qualquer fonte do Direito, sob pena de vício essencial, desfazendo eventuais teses que atritem ou colidam com o dito primado máximo. E tal se dá independentemente de previsão expressa em texto legal pois decorre da essência do próprio Direito, ao se mostrar como o principal elemento justificador de sua criação e existência.

No caso brasileiro, temos como aspecto facilitador desse exame o fato do constituinte ter fixado na Constituição Federal, como integrante do rol de princípios fundamentais de nossa República Federativa, a dignidade da pessoa humana, trazendo-a no art. 1º, III, do Texto Maior.

Cabe, aqui, salientar outro aspecto: dentre os princípios fundamentais fixados nos incisos do artigo inaugural da Constituição Federal (I – soberania5; II – cidadania; III – dignidade da pessoa humana; IV – valor social do trabalho e da livre iniciativa; V – pluralismo político), o único eminentemente subjetivo é a dignidade humana. Logo, destinando-se o Direito à salvaguarda da vida em sociedade, e, assim, aos interesses humanos, por evidente que o princípio voltado diretamente à pessoa humana não poderia ocupar outro posto senão o de aglutinador dos demais, que, visando concretizar aquele, deverão ser integrados e interpretados, sob pena de total divórcio dos aspectos teleológico e axiológico que devem guiar a atividade do hermeneuta.

Assim, pelos motivos indicados, e por tantos outros já estudados e bradados alhures, consiste a dignidade da pessoa humana no “princípio dos princípios” jurídicos, aquele ao que se deve a origem de todos os demais e que, portanto, condiciona qualquer construção jurídica, inclusive legal.

3. A garantia do piso vital mínimo e a concretização da dignidade humana

A amplitude e a vagueza características dos princípios também são notadas quando analisamos a dignidade humana. Ora, o que vem a ser necessário para que se tenha respeitada a dignidade das pessoas? A verificação da violação desse princípio resta cabalmente vinculada a cada caso concreto ou será possível a fixação de critérios amplos, gerais – mas objetivos – aos quais se vincule a efetivação do “princípio dos princípios” jurídicos?

A questão, mutatis mutandis, foi enfrentada pelo professor Celso Antonio Pacheco Fiorillo. Afirma o mencionado jurista que uma vida com dignidade reclama a satisfação de valores mínimos e fundamentais, que devem ser assegurados pelo Estado, valores esses que consistem naquilo que se pode ter por indispensável “ao desfrute de uma vida digna” e que pode ser considerado como um “piso vital mínimo”6.

Nesse diapasão, Fiorillo vai além, afirmando que temos positivado no âmbito constitucional a fixação desse conjunto de valores, enunciados no art. 6º do Texto Maior, onde encontramos o rol dos chamados “direitos sociais”, a saber...

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