Os institutos romano-medievais atinentes à busca da verdade

AutorKühn, Vagner Felipe
Páginas21-41

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Vagner Felipe Kühn

Desse modo, imperativa a recuperação dessas lições para que sejam identificadas as bases cognitivas presentes nos institutos romanos, bem como os pressupostos cognitivos que permaneceram inalterados, não obstante a variação dos procedimentos para acessar a verdade jurídica.

1.1.1 O direito romano e os primeiros

condicionantes ao conhecimento e o

exercício da Justiça

Atribui-se à força individual a gênese do direito; o princípio da vontade subjetiva é a verdadeira fonte do direito privado romano. O direito existia, mas não como um poder objetivo. Do contrário, realizava-se como um sentimento interno e subjetivo. Sintetiza Jhering (1943, p. 86-87) que “o primeiro gérmen do sentimento jurídico é o sentimento da própria razão, fundado sobre a manutenção das próprias forças e que tendia a conservar seus resultados".

Percebe-se que o conceito de verdade no âmbito do jurídico, nos primórdios do Direito Romano, relacionava-se à força daquele que se achava detentor de tal direito. O direito era ditado pela força. Não é por outra razão que a espada e a balança são os mais antigos símbolos do direito. (GARCIA, p. 91-94).

A contrariedade ao direito era rechaçada de modo violento, prevalecendo as razões do mais forte. Dessa forma, pode se ter em mente que não foi apenas com o Estado que a busca da verdade sobre o direito surgiu. O direito, em sua origem, não necessitou de um legislador, pois se constituiu sobre o costume. (MARKY, 1987,
p. 21).

Em tempos remotos, a visão subjetiva do direito galgada nas considerações individuais de justiça encontrava, no clamor e no sentimento de moral popular ofendida, as primeiras formas de

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aplicação coletiva do direito. Frise-se, embora não existisse legislador ou juiz, constituía-se, paulatinamente, um direito com traços objetivos. Essa idéia inicial impõe uma das características do direito romano: “só há processo onde é debatida a pretensão; quando é evidente, a execução tem lugar em seguida e só o interessado é quem a acompanha, não tendo as autoridades motivos para intervir”, ou “Neque enim qui potest in furem statuere, necesse habet adversus furem litigare”. (JHERING, 1943, p. 97).

Trata-se de um dos primeiros condicionadores ao acesso às instituições jurídicas formais, baseado em um elemento lógico, pautado em um senso de cognição abstrata. Quem tivesse um direito claro, não tinha interesse que fosse conhecido ou aplicado pela autoridade constituída.

1.1.2 O instituto do nexum e a existência de

debates de índole cognitiva na “execução

privada” romana

No período de formação do direito romano, uma pretensão poderia ser tida como incontestável pela intervenção de testemunhas. O instituto da mancipatio era empregado para a consolidação da propriedade e outros direitos com caráter absoluto, com a fórmula aparente de uma venda; já o instituto do nexum relacionava-se às obrigações escritas, com aspectos de um aparente empréstimo. A grande importância das testemunhas revela-se no fato de que, em qualquer caso de oposição, deveriam comprometerse a auxiliar o titular do direito, sob pena de serem consideradas improbus e intestabilis. A Lei das XII Tábuas assevera: “Qui se sierit testarier fuerit, ni testimonium fariatur, improbus intestabilisque esto”. (GIRARD, 1923, p. 3-23).

Registra-se que a força coercitiva das testemunhas era, normalmente, suficiente para ser observada a pretensão objeto do testemunho. (JHERING, 1943, p. 109-110). Fica clara a utilização

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da testemunha como elemento de consolidação de uma pretensão presumidamente verossímil. Cognitivamente, pode-se considerar que a testemunha era utilizada como elemento a estabelecer uma presunção de verdade.

O questionamento da legitimidade de uma “execução privada” poderia ocorrer através da oposição do devedor. A manus injectio consiste em uma execução pessoal, tornando o devedor disponível à execução, enquanto a pignoris capio relacionava-se à apreensão de seus bens, tratando-se de uma execução real. (JUSTINIANO, 2000, p. 242-279).

No caso da manus injectio, deveria ser levado o devedor perante os juízes, em que poderia opor-se à execução, por razões de direito: asseverando não estarem presentes os requisitos da manus injectio. Poderia contestar a legitimidade da ação de seu credor. (JUSTINIANO, 2000, p. 242-279).

Ocorre, entretanto, que pela Lei das XII Tábuas não poderia o devedor formular e debater tais objeções, era exigido que alguém o fizesse, ocupando a posição de devedor, sendo, a partir daí, parte demandada: este era o vindex. Caso não se apresentasse nenhum vindex, as formulações ficavam sem efeito, sendo levado o devedor pelo credor. O dever moral e de honra de auxiliar parentes oprimidos auxiliava em se encontrar um vindex, também existindo hipóteses de pessoas contratadas para exercer tal papel, com a promessa de que lhe seria abonado eventual prejuízo. Posteriormente, cumpre frisar, passou-se a admitir que o próprio devedor desempenhasse o papel de vindex. (GIRARD, 1923, p. 3-23).

O que se pretende destacar com a descrição das formalidades do exercício das atividades do vindex é que a discussão da existência de um direito, ou de uma pretensão material subjetiva, estava presente mesmo na “execução privada” romana, existindo, ainda que de forma mitigada, a discussão de obrigações segundo parâmetros lógicos, isto é, a discussão da obrigação em

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tese. Mesmo em um direito em que não se buscava recorrer ao conhecimento ou à aplicação do direito por parte dos juízes (na concepção moderna do termo), estava presente a possibilidade de interpor questões a um direito presumido como verdadeiro.


1.1.3 A formulação de um conceito de abstrato de

liberdade: a gênese das relações jurídicas e a

formação das linhas ancestrais da cognição

processual

Dentre as diversas influências advindas do direito romano, há que se destacar a capacidade de diferenciar dois planos de análise: o direito abstrato e as relações da vida. Como explica Jhering (1943, p. 198), “analisar essas relações, no sentido jurídico, é isolar o conteúdo da força jurídica abstrata.”

Da experiência romana, emergia a idéia de que o direito é constituição de poder e de vontade dentro de uma forma determinada, sendo que o espírito desse instituto pautava-se na grande importância que a liberdade assumia para os romanos, a qual permite considerar o direito privado como tendo importância similar às Constituições de hoje:

A ideia absolutamente justa, que o Direito romano corporificou, foi a de que todas as relações do Direito privado são relações de poder. O poder da vontade é o prisma da concepção do direito privado e toda a teoria do direito privado teve por único fim descobrir e determinar o elemento de liberdade e de poder, nas relações da vida. (JHERING, 1943, p. 199).

Não apenas foi possível com as instituições romanas abstrair o direito em um plano objetivo, mas também foi possível, dada a marcante estrutura social da época, sempre centralizada na

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figura do pai de família, que se observasse a aplicação da norma, abstrata, segundo parâmetros factuais também abstratos, isto é, considerando a relação em tese. (CRUZ, COSTA, 1958, 19-20).

Ao se perquirir sobre a resolução de conflitos, não raras vezes se buscou identificar, previamente, as relações sociais que existem em um determinado grupo, reconhecendo o status de cada integrante. Até porque o direito só existe dentro de agremiações sociais (CRUZ, COSTA, 1958, 19-20).

Era marcada a organização clássica da sociedade romana, em que se pode fazer analogia à figura de uma pirâmide: na base, estão as famílias; pela união das famílias, estão as gentes; acima delas, por seu agrupamento, estão as cúrias; depois, as tribus, as quais estão subordinadas ao rei. (JHERING, 1943, p. 133).

Embora seja discutido que as gentes se originem, necessariamente, de uma mesma família, é incontroverso que a idéia que propiciava sua coesão era a união das famílias. Essa organização social tinha repercussão na forma de atuar na defesa dos direitos. Por exemplo, no direito antigo, na hipótese de um gentil estar preso por dívida, caso não se apresentasse um vindez libertatis, cabia à gens determinar que lhe constituíssem um. (JHERING, 1943, p. 140).

Em outra situação, na exigência de fornecer tutela, um dos membros da gens poderia ser nomeado, remanescendo o dever de fiscalização do mesmo, o qual, se incapaz ou suspeito, poderia ser se demitir de suas funções ou cedê-las a outro. (JHERING, 1943).

Sem dúvida alguma, se está diante de um exemplo da análise das relações sociais, dos status do indivíduo, antes e para se estabelecer considerações sobre a legitimidade ad causam. O direito romano já cunhava fórmula acerca da legitimidade para a causa: “Nemo alieno nomine lege agere potest”. (JHERING, 1943, p. 139). E é possível asseverar que, para considerar quem era o sujeito que poderia mover ação, considerava o magistrado romano, antes de qualquer coisa, seu status social.

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