Dois institutos da "cooperação judiciária em matéria penal" na união europeia: reconhecimento mútuo de decisões penais e harmonização de legislações penais

AutorAbel Laureano
Páginas284-308

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Introdução
  1. O desaparecimento das fronteiras internas da União Europeia e a inerente liberdade generalizada de circulação de pessoas, com toda a sua importância 123 e com tudo o que tiveram e têm de positivo, geraram todavia - como uma espécie de subproduto - problemas novos: a liberdade de circulação abrange tanto os "bons" como os "maus", quer dizer, o crime (os criminosos) também circula(m) mais facilmente4. Page 285

    Ora, em termos de reacção jurídica, o combate ao mundo do crime passa pela vertente policial (investigação dos crimes, perseguição e detenção dos suspeitos) e pela vertente judiciária (nesta avultando o julgamento desses suspeitos).

  2. A abertura interna do espaço comunitário, como decorre do que atrás dissemos, fez surgir uma necessidade acrescida de controlo que, pelo facto de não haver, desde logo, uma polícia e um tribunal federais (com capacidade de agir através das fronteiras estaduais), tem de ser satisfeita mediante um mecanismo de cooperação entre os Estados-Membros5; isto, por que estes, isoladamente, não conseguem lidar de modo aceitável com os novos desafios do crime internacional6.

    Facilmente se compreende, pois, que a cooperação policial e judiciária em matéria penal seja uma das peças fulcrais7 do chamado espaço de liberdade, segurança Page 286 e justiça, o qual, por seu turno, continua a apresentar-se como objectivo da União8 na versão do Tratado da União Europeia decorrente do Tratado de Lisboa (art. 3º, nº 2, do TUE-Lisb)9. Page 287

  3. Ocupar-nos-emos neste estudo, em breve análise, da cooperação judiciária, vale dizer, daquela que ocorre entre as autoridades judiciárias dos Estados-Membros (essencialmente - embora não só - os tribunais).

    Mais precisamente, dentro do universo da cooperação judiciária penal, serão objecto da nossa atenção dois institutos fulcrais, aliás indissoluvelmente ligados10: o reconhecimento mútuo de decisões judiciais penais e a harmonização de legislações penais (o chamado "Direito Penal Europeu"). Page 288

2 Do reconhecimento mútuo de decisões judiciais em matéria penal
2. 1 Enquadramento
  1. Do reconhecimento mútuo de decisões judiciais se tem dito constituir a "quinta liberdade comunitária", atenta a circunstância de permitir uma livre circulação das decisões judiciais no espaço da União Europeia11, embora o símile possa, ao menos à primeira vista, despertar alguma estranheza12.

  2. O reconhecimento, visto como figura geral, constitui uma modalidade de integração jurídica (tomando esta expressão num sentido amplíssimo e menos usual13). Numa das suas vertentes (o reconhecimento de legislações) implica a relevância, num Estado, dos efeitos da legislação de um outro Estado. Fala-se de "reconhecimento" porque, através desta técnica, um Estado aceita ("reconhece"), como vinculantes para si próprio, o valor de disposições legislativas de outro Estado. No reconhecimento de legislações, não se cria Direito Nacional novo (contrariamente ao que sucede na harmonização); o que acontece é que o Estado passa a atribuir força de lei interna a leis de outros Estados14. Para o reconhecimento de actos não legislativos vale, mutatis mutandis, o que acabámos de dizer.

    Ao falar-se de reconhecimento mútuo, pretende significar-se que um determinado processo de reconhecimento é recíproco, ou seja, o Estado "A" reconhece actos jurídicos do Estado "B", o qual, por seu turno, reconhece os correspondentes actos jurídicos do Estado "A".

  3. Por força do reconhecimento mútuo de decisões judiciais, uma decisão judicial tomada num Estado-Membro terá, por si só, força jurídica típica plena nos outros Estados-Membros. Ou, numa formulação algo mais descritiva: "El principio del Page 289 reconocimiento mutuo, o automático, de resoluciones judiciales significa que adoptada una medida por un juez, ésta será automáticamente aceptada por los jueces de los demás Estados miembros, y surtirá en los demás territorios los mismos o similares efectos."15

2. 2 Fundamentos teóricos
  1. A técnica do reconhecimento baseia-se numa ideia de confiança16, na medida em que o Estado que opera o reconhecimento confia em que os actos jurídicos reconhecidos são adequados à regulação da situação material em causa. O reconhecimento mútuo (que se baseia17, naturalmente, numa ideia de confiança Page 290 mútua18), implicando ademais uma reciprocidade, funda-se outrossim numa ideia de colaboração ou, talvez melhor dito, de proximidade colaborativa19.

    E sobre que ingredientes repousa aquela confiança? Basicamente, numa identidade de valores jurídico-políticos profundos20: "Si en todos los Estados de la Unión Europea existe un homogéneo respeto a los derechos humanos, si todos han adoptado regímenes democráticos21 y los sistema judiciales se basan en el principio de legalidad, el principio de mutua confianza debe de presidir la cooperación judicial internacional, de modo que las decisiones de las autoridades judiciales de un país deban de ser ejecutadas en otro, sin controles específicos."22

  2. Ora, a citada identidade ou homogeneidade de valores deve conduzir, na respectiva concretização jurídica, a soluções reguladoras próximas, e, nessa medida, equivalentes.

    E aqui temos o segundo alicerce onde se ancora a técnica do reconhecimento - o da equivalência; ou seja, "aunque un Estado trate cierta materia de modo no igual o similar a otro Estado, los resultados son tales que se aceptan como equivalentes a las decisiones del propio Estado"23/24.

2. 3 Importância e (tradicionais) dificuldades
  1. É tal o significado do princípio do reconhecimento mútuo de decisões judiciais, que o mesmo foi considerado, no Conselho Europeu de Tampere de 199925, como peçachave Page 291 do espaço europeu de cooperação judiciária26. "Um maior reconhecimento mútuo das sentenças e decisões judiciais e a necessária aproximação da legislação facilitariam a cooperação entre as autoridades e a protecção judicial dos direitos individuais. Por conseguinte, o Conselho Europeu subscreve o princípio do reconhecimento mútuo que, na sua opinião, se deve tornar a pedra angular da cooperação judiciária na União, tanto em matéria civil como penal. Este princípio deverá aplicar-se às sentenças e outras decisões das autoridades judiciais."27

  2. O reconhecimento de decisões estrangeiras, no que em especial concerne ao domínio penal, sempre se defrontou com particulares escolhos.

Basta lembrar que o Direito Penal é um ramo jurídico particularmente próximo do núcleo da soberania estatal - "una (essenziale) componente della sovranità statale"28 -,29e que o Direito Processual Penal (o seu veículo de execução) reflecte também escolhas fundamentais da vivência social30, ambos contendendo com aspectos essenciais da vida Page 292 dos cidadãos e do próprio organismo social31, assim comungando, logo aprioristicamente32, da dita esfera da soberania.

Estas condicionantes, que são provavelmente universais, manifestaram-se e manifestam-se de modo indubitável no espaço europeu33.

2. 4 As soluções jurídicas básicas
  1. Recuando ao tempo do Tratado de Amesterdão, vê-se que o Tratado da União Europeia previa, na alínea a) do art. 31º, uma acção comum da União para "facilitar e acelerar a cooperação entre os ministérios e as autoridades judiciárias ou outras equivalentes dos Estados-Membros, no que respeita à tramitação dos processos e à execução das decisões".34 Page 293

    O Tratado de Nice não se afastou do traçado do seu antecessor; a nova redacção da alínea a) do art. 31º do Tratado da União Europeia passou a falar duma acção comum da União para "facilitar e acelerar a cooperação entre os ministérios e as autoridades judiciárias ou outras equivalentes dos Estados-Membros, inclusive, quando tal se revele adequado, por intermédio da Eurojust, no que respeita à tramitação dos processos e à execução das decisões".35 Page 294

  2. Entrando no domínio do Direito vigente, verifica-se, ao compulsar o Tratado de Lisboa, que o princípio do reconhecimento mútuo36 ocupa, explicitamente, um lugar central no domínio da cooperação judiciária em matéria penal.

    Na verdade, e como reza o primeiro parágrafo do nº 1 do art. 82º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), a cooperação judiciária em matéria penal "assenta no princípio do reconhecimento mútuo das sentenças e decisões judiciais" (mesma redacção do primeiro parágrafo do nº 1 do art. III-270º do TC37). Page 295

    Não se queda porém o Tratado de Lisboa, neste domínio, ao nível de proclamações genéricas, desenvolvendo-as também mediante instrumentos jurídicos concretos.

    É assim que o art. 82º do TFUE vem, no primeiro parágrafo do seu nº 2, prever a possibilidade da emissão de regras mínimas, na medida em que "seja necessário para facilitar o reconhecimento mútuo das sentenças e decisões judiciais e a cooperação policial e judiciária nas matérias penais com dimensão transfronteiriça" (mesma redacção do primeiro parágrafo do nº 2 do art. III-270º do TC).

    E o segundo parágrafo do nº 2 do mesmo art. 82º do TFUE especifica que tais regras mínimas incidem sobre: "a) A admissibilidade mútua dos meios de prova entre os Estados-Membros; b) Os direitos individuais em processo penal; c) Os direitos das vítimas da criminalidade; d) Outros elementos específicos do processo penal, identificados previamente pelo Conselho através de uma decisão" (mesma redacção, no essencial, do segundo parágrafo do nº 2 do art. III-270º do TC).38

3 Da harmonização de legislações penais...

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