Instituições trabalhistas na América Latina: atores do trabalho e experiências nacionais de construção de direitos

AutorSayonara Grillo Coutinho Leona da Silva
Ocupação do AutorOrganizadora
Páginas124-132

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1. Introdução

Vários são os trabalhos que analisam o processo de precarização do trabalho que seguiu à crise do pacto fordista a partir da década de 19701. Com o fortalecimento das políticas neoliberais, a reestruturação produtiva, e o arrefecimento das principais economias mundiais, os trabalhadores viveram um quadro de desemprego, de perda do valor real dos salários, de aumento das formas atípicas do trabalho e de perda do poder dos sindicatos. Castel (1998) expressou a questão social decorrente da regressão na tendência de expansão da relação salarial que caracterizou o período anterior. Os países periféricos, que nunca chegaram a ter um mercado de trabalho estruturado, também sofreram com o processo de precarização.

Segundo trabalho de márcia Leite (2012), frente ao esgotamento das orientações do Consenso de Washington, alguns países da América Latina como Argentina, Brasil e Uruguai adotaram políticas diferenciadas que vêm possibilitando um processo de desenvolvimento econômico e social significativo, com melhorias no mercado de trabalho, diminuição do desemprego, distribuição de renda e aumento de parcela da força de trabalho com acesso a direitos trabalhistas e previdenciários e recuperação da atividade sindical. No entanto, a autora aponta que os processos de subcontratação continuam a ocorrer, promovendo a precarização do trabalho. Também no caso brasileiro, a prática da terceirização espalha-se por todos os setores (LEITE, 2011), causando uma visível degradação das condições de trabalho e da perda de direitos.

A mesma autora observa que, embora especialistas apontem para um aumento dos direitos do trabalho em termos legislativos ou de jurisprudência, medidas flexibilizadoras do Direito do Trabalho coexistem com os avanços.

Preocupando-se com os processos de mobilização legal de sindicatos, os quais visam à ampliação do seu papel político por meio da efetivação de normas da Organização Inter-nacional do Trabalho (OIT), este artigo tem como objetivo apresentar os ambientes institucionais da Argentina, Brasil, Uruguai e Chile como fontes de estímulos ou constrangimentos para a aplicação de tais Convenções internacionais por juízes do trabalho2.

A partir da abordagem sobre mobilização legal, mcCann (2010) defende que, embora os tribunais sejam apenas uma das instituições dentro das disputas políticas, por meio das dimensões estratégica e constitutiva do direito, eles podem possibilitar acesso à justiça, aumento da equidade e limitação da hierarquia.

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Para a sociologia econômica e do direito, o processo de institucionalização do direito é relacionado com o processo político de produção do direito. Nessa dinâmica, dentro da institucionalização do direito, decisões judiciais não apenas podem ser influenciadas pela racionalidade econômica, como podem construí-la e reiterá-la. Como exemplo disso, têm-se as decisões que reforçam as práticas do mercado sem considerar as desigualdades que a lei promove. Tais desigualdades podem ser não apenas econômicas e sociais, mas também políticas, pois as decisões judiciais definem as oportunidades e os limites para os atores econômicos ganharam papéis políticos legais, definindo as regras do jogo. Já o processo político de produção do direito, embora existindo dentro desse quadro de constrangimentos, envolve a mobilização do direito não apenas pelas elites, mas por classes subordinadas e diferentes grupos e movimentos, incluindo experts para aumentar o bem estar social, renda, status social, dignidade e autoridade (EDELmAN; STRyKER, 2005).

2. Argentina

Palomino (2010) trata da instalação progressiva de um novo regime de emprego na Argentina, posterior à crise de 2001, refletido nas tendências atuais de crescimento do emprego formal e diminuição do emprego não registrado. Tal regime teria deslocado o prévio regime de precarização do trabalho. Entre seus principais componentes políticos está o papel ativo do Estado na efetivação de um conjunto de políticas públicas, especialmente relacionadas à revitalização do salário mínimo e da negociação coletiva3.

Entre as instituições que promoveram mudanças em direção a esse novo regime, o autor destaca o papel do Judiciário. Em fevereiro de 2006, a Câmara Nacional de Apelações do Trabalho produziu um acordo destinado a unificar os critérios aplicados pelos juízes em relação aos casos de subcontratação. O argumento que a Câmara utilizou relaciona-se ao princípio da solidariedade entre empregadores – a obrigação da empresa principal de responder pelos trabalhadores contratados, pelas empresas provedoras ou clientes daquela. Tal mudança normativa deu-se no sentido de limitar a subcontratação precarizante, de modo que as empresas controlem as condições de trabalho e emprego das subcontratadas. Este acordo da Câmara de Apelações veio restituir a vigência do princípio da solidariedade dos empregadores na subcontratação, que havia sido afetado, em 1993, pela Corte Suprema que limitou a vigência do princípio da solidariedade entre empregadores frente aos trabalhadores subcontratados, eliminando a responsabilidade da empresa principal.

Tal mudança na postura judicial em favor do novo regime de emprego é apenas parte das mudanças institucionais relacionadas à aplicação do Direito do Trabalho na Argentina. Nossa pesquisa identificou um processo mais amplo de mudanças, as quais relacionam-se, primeiramente, à busca pela reparação das violações de direitos cometidas pela ditadura, que se consubstanciou em decisões das Cortes e na valorização de direitos humanos por meio da introdução do tema na reforma constitucional de 1994. Em segundo lugar, tem-se a pressão social pela modificação da composição da Corte Suprema Argentina, a fim de garantir sua independência em relação ao Executivo. Em terceiro, a pressão de atores sindicais por mudanças no modelo sindical argentino a partir de Convenções da OIT. Por fim, a alimentação de decisões contra o regime de precarização tanto pela Corte Suprema de Nação como por outras Cortes.

A reconstrução dos direitos do trabalho na Argentina está relacionada, primeiramente, a um processo de busca pela reparação das graves violações de direitos humanos produzidas com a ditadura militar, a partir de 1976. Tais violações impactaram fortemente o movimento dos trabalhadores, fundamentalmente os delegados de fábrica. Os casos mais emblemáticos de tais violações foram os sequestros, bem como a tortura, os desaparecimentos e os assassinatos de delegados de base que aconteceram nas fábricas Ford e mercedes Benz, com anuência dos executivos dessas empresas.

Na Câmara Nacional de Apelações de Trabalho, integrada por um de nossos entrevistados, produziu-se o caso Conti contra Ford. Segundo o referido juiz, nesse caso, a empresa Ford sequestra Conti, que era delegado de base do sindicato de mecânicos e, no dia seguinte, manda-lhe uma comunicação para que venha trabalhar. Obviamente sequestrado, é despedido por abandono de trabalho. Conti fica sequestrado por um ano. Em 1983, inicia uma ação trabalhista e a empresa opôs a exceção de prescrição pelo tempo transcorrido de 2 anos, alegando que não lhe correspondia nenhum direito.
A sexta sala da Câmara de Apelações de Trabalho decide desculpar o prazo de dois anos e outorgar o reconhecimento do direito a esse trabalhador.

No plano legislativo, esse processo de reparação ganhou instrumentos constitucionais por meio da reforma constitucional de 1994. A reforma de 1994 é proposta pelo governo menem com a intenção de reformular o artigo relacionado à eleição presidencial. Nesse momento, surge um pacto para habilitar outros temas e não somente a reeleição. Segundo um dos entrevistados, que estava na Comissão Constituinte dessa reforma, após um período de ditaduras, os partidos sentiam-se inclinados para o tema dos direitos humanos, que era muito sensível para a sociedade. Assim, apareceu a ideia de conformar um bloco de constitucionalidade.

A Argentina tradicionalmente estabeleceu o dualismo, ou seja, para o direito internacional ingressar no direito local requer-se uma incorporação expressa – não somente a ratificação do tratado, mas a sua execução por normas que assim determinem. Esse dualismo é o que demarcava que, historicamente, a Corte Suprema tivesse sustentado a não aplicação

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de uma norma internacional do trabalho quando ela não tinha uma expressão concreta no direito nacional argentino.

A reforma de 1994 incorpora o art. 75, xxII, da Constituição, que estabelece uma hierarquia normativa pela qual a Constituição e uma série de instrumentos internacionais de direitos humanos – a Convenção Americana de Direitos humanos, a Convenção Universal de Direitos humanos, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, entre outros, têm o mesmo valor e a mesma hierarquia constitucional – ou seja, o bloco de constitucionalidade. Ainda, a norma referida diz: “conforme as condições de sua vigência”, o que significa conforme os ditames dos órgãos responsáveis por aplicar cada um desses instrumentos internacionais. Por fim, a terceira condição de aplicação das normas internacionais diz respeito a outros instrumentos de direito internacional distintos desses, enumerado pelo art. 75, xxII, os quais o mesmo artigo determina que possuem hierarquia supralegal, superior à lei. Assim, quando o Congresso ratifica uma Convenção internacional, automaticamente a mesma está acima da lei. Portanto, a tradição do dualismo é superada pelo monismo, o que indica que o direito internacional e o direito nacional compõem uma única ordem jurídica.

A mudança institucional mais importante apontada por assessores jurídicos e juízes entrevistados consiste em como a Suprema Corte Argentina vem interpretando a norma constitucional em questão. Tal mudança...

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