Contrato e intervenção institucional: uma análise crítica do contrato de concessão

AutorVinícius Marques De Carvalho
Páginas66-92

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1. Introdução

Com o processo de privatização de empresas estatais no Brasil, surgiu um novo ciclo de concessões de serviços públicos. Se antes o recurso à iniciativa privada revelou-se muito mais um expediente financeiro e administrativo vinculado a uma análise de custo-benefício adstrita a cada setor e localidade específicos, a partir da década de 1990, a concessão de serviço público passou a revestir-se de um caráter de política pública nacional.

Impõe-se, principalmente após a Constituição de 1988, que as concessões, de fato, se configurem como um instrumento de realização das missões de bem-estar social incorporadas aos serviços públicos. Ou seja, aparece de forma mais explícita a necessidade de conciliar interesses privados e públicos por meio do contrato de concessão.

O pensamento jurídico tem enfrentado essa questão, por meio da proposição de uma "nova" forma de se interpretar o contrato de concessão.

O período que se iniciou no Brasil com o advento das privatizações e com o incentivo às concessões de serviços públicos é visto como a manifestação de um novo modelo do Estado Democrático de Direito em que se estimula a harmonia entre atividade estatal e a ação privada.1

Essa evolução do direito público seria um reflexo da emergência de um Estado negociador,2 em que as novas técnicas de coordenação e integração se impõem às antigas técnicas de comando, na busca de

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maior eficiência na ação e melhor adesão dos destinatários. A ação pública se tornaria o produto da interação entre vários ato-res públicos e privados procurando conciliar suas estratégias e harmonizar seus interesses.3 O Estado negociador seria um produto da crise do Estado de bem-estar social, tendo relação com processos de descentralização e diluição do poder estatal.4

Nesse contexto, em que a natureza das intervenções públicas ganha nova roupagem, diagnostica-se o desenvolvimento de uma sociedade multipolar em que os centros de poder são difusos e segmentados e o contrato tem um lugar essencial. Estaríamos, assim, diante de uma sociedade contratual. Ela designa uma ordem social que assegura a promoção de um espaço público de contratualização, tanto em direito público como privado.5 Tem-se, com isso, a valorização do acordo de vontades em domínios antes proibidos ao contrato. Instaura-se uma complementaridade entre a racionalidade substancial da ordem pública e a procedimental do acordo de vontades, a partir da emergência de um processo contratual de hierarquização de interesses.

A concessão de serviço público é, nesse contexto, uma das principais manifestações de um novo e moderno direito de parceria. A parceria é o modo pelo qual a sociedade civil revê o seu contrato social com o Estado, a fórmula de garantia do equilíbrio entre a economia e os interesses individuais e sociais, entre eficácia e a ética, entre a rigidez do comando e a eqüidade.6

Marçal Justen Filho vê, nesse processo, o surgimento de uma nova concessão de serviço público, totalmente em sintonia com os efeitos da constitucionalização e da democratização do Estado e do direito brasileiros. "A concessão passaria, assim, a ser compreendida no âmbito de uma ordem política e jurídica com características diversas daquelas vigentes há cem anos. Em termos mais precisos, a alteração radical das concepções políticas, sociais, econômicas e jurídicas refletiu-se sobre o instituto da concessão."7

Estaríamos diante de uma nova forma de encarar a concessão de serviço público, distinta das anteriores. Aadministra-ção concedente e o concessionário privado aparecem, desse modo, como colaboradores em sentido estrito, comprometidos com a consecução de um mesmo fim, mais do que como antagonistas em uma pura relação de intercâmbio. Seguindo novamente as observações de Marçal Justen Filho: "Não se contraponha que o concessionário, como empresário privado, é vocacionado preponderantemente para o lucro. O intuito lucrativo é o objetivo 'mediato' do concessionário, tal como a satisfação dos interesses coletivos é a finalidade indireta do Estado e da comunidade. O objetivo

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'direto' e 'imediato' de todas as partes é a prestação de serviços públicos satisfatórios. Sob esse prisma, nenhuma diferença se põe entre Estado, Sociedade Civil e concessionário: todos se predispõem a colaborar e a concentrar esforços e recursos para o desempenho satisfatório das atividades que configuram o serviço público".8

A retórica cooperativa nos contratos de concessão se apresenta como produto de um processo pelo qual esse contrato passa a ser um instrumento da própria ação administrativa. De mero objeto da intervenção pública, o contrato transforma-se no seu meio insubstituível.9 Trata-se de uma decorrência lógica da consideração do contrato como pilar de organização das obrigações mútuas numa relação horizontal, menos hierarquizada e mais negociada. O próprio contrato e seu processo de elaboração seria a tradução do interesse público.

Mesmo sem nos aprofundarmos no questionamento dos pressupostos desse diagnóstico de superação do Estado supos-tamente movido por um direito administrativo autoritário,10 é preciso tentar explorar o que ocasionou a transformação das motivações dos atores. Isso porque, até recentemente, era pacífico enxergar no contrato de concessão uma contraposição clara de interesses.11

Por essa via, resta saber se há caminhos, dentro da teoria jurídica dos contratos, para possibilitar a conciliação entre a autonomia da vontade e o interesse público, começando com a sedimentação do nosso pressuposto teórico, segundo o qual é necessário o fortalecimento da dimensão institucional desses contratos para arrefecer os efeitos dos conflitos de interesse (2). Em seguida, a partir da evolução da teoria contratual estudaremos como essa dimensão institucional interfere na dinâmica das relações afirmando deveres de cooperação que deságuam no princípio do equilíbrio contratual (3). E, por fim, tentaremos contrapor essa evolução ao principal "tipo" contratual relacionado à prestação dos serviços públicos - a concessão de serviço público.

2. Contrato e intervenção institucional

O contrato de concessão é o instituto jurídico consagrado para a coordenação das relações público-privadas na gestão dos serviços públicos. Nosso objetivo com esse estudo é avaliar em que medida esse contrato constitui um instrumento de intervenção institucional do Estado.12

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O termo institucional, neste trabalho, pode ser compreendido em duas acepções. Na primeira, ele se apresenta em oposição à idéia de intervenção meramente regula-mentadora, no sentido consagrado no Brasil por Alberto Venâncio Filho. Baseando-se nas lições de Bernard Chenot, o jurista brasileiro afirma que o ramo da intervenção regulamentar está associado ao papel exclusivamente normativo que o Estado desempenha. Já, quando se trata da intervenção institucional, o Estado atua direta-mente como agente econômico. Nesse caso, ele se transforma em ator da vida econômica e, sob a sua nova fisionomia, a administração utiliza procedimentos de direito público, e, ao mesmo tempo, procedimentos de direito privado para gerir as empresas industriais e comerciais. Segundo essa perspectiva, a concepção clássica do direito institucional seria a do direito dos serviços públicos.13

Na segunda acepção, o termo institucional se apresenta como sinônimo de hierarquia e em oposição às idéias de contrato e mercado. Adotando a classificação de Oliver Williamson, trata-se de uma solução baseada na integração das decisões num mecanismo de contratualização evolutiva,14 e não na acomodação dos interesses numa estrutura de contrato de permuta. Essa solução é típica das situações em que o planejamento é essencial. Para que ele seja implementado, é imprescindível a eliminação das assimetrias de informação e dos riscos de oportunismo.

A dimensão evolutiva pode se concretizar por meio de uma governança bilateral, em que a autonomia das partes é mantida ou unificada e em que as transações são integradas no seio de uma única firma.15 A concessão seria expressão da governança bilateral, de modo que podemos expressar a questão deste estudo nos seguintes termos: em que medida o contrato de concessão de serviço público pode representar a solução de governança bilateral baseada na hierarquia?

Na estrutura contratual evolutiva, os problemas de coordenação contratual são suplantados a partir da cooperação entre as partes que, por sua vez, seria estabelecida num processo de planejamento e negociação perene e presente durante toda a vida do contrato. O ponto de referência da contratualização evolutiva consiste em considerar a relação em seu desenvolvimento ao longo do tempo, em oposição à idéia de que, para se efetuar modificações, é necessário voltar sempre ao momento inicial do contrato.

Trata-se, desse modo, de um modo alternativo de contratualização por meio do qual a cooperação contratual é a responsável por eliminar as assimetrias de informação e, portanto, os riscos de comportamentos oportunistas. A estrutura contratual deve ser capaz de conduzir as ações dos contratantes para a realização do interesse comum de longo prazo e não o interesse pessoal. Ou seja, o contrato teria a missão de gerar a cooperação. Nessa perspectiva,

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o contrato traduziria uma "comunidade de interesses entre as partes" ou, uma ordem contratual, em que as partes se engajam no processo de cooperação, por meio de...

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