O inquérito civil sob o enfoque constitucional-processual

AutorUlisses Dias de Carvalho
Ocupação do AutorMestre em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Católica de Pernambuco. Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Católica de Brasília
Páginas169-178

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1. Introdução

Faz parte do senso comum teórico dos juristas atribuir ao inquérito civil, instrumento criado pela Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985 (LACP), e alçado ao nível constitucional pelo art. 129, inciso III, da Constituição da República de 1988 (CF/88), a natureza de mero procedimento administrativo, destituído de maiores formalidades, em que não se faz necessária a aplicação do direito fundamental do contraditório, na medida em que não se impõe a quem é investigado nenhum gravame relevante ou sanção jurídica. Nesta perspectiva, ele seria apenas um instrumento extrajudicial para coleta de provas que viabilizaria a propositura de uma demanda judicial coletiva por parte do Ministério Público.

A questão que se discute neste texto é que toda a teoria criada sobre o referido instituto foi produzida antes da edição da CF/88 e não foi reformulada a fim de se adequar aos novos paradigmas constitucionais. Em sua maioria, os autores consultados limitam-se a repetir um discurso criado antes de 1985 e que foi fortemente influenciado pela teoria do inquérito policial, que era marcada pelas limitações de uma legislação editada durante a vigência de período político caracterizado pela centralização de poder, nacionalismo e autoritarismo.

Assim, a partir de uma perspectiva garantista do direito, que se preocupa com uma interpretação jurídica demo-crática e com a concretização dos direitos fundamentais, bem como que objetiva garantir o respeito à integridade e à coerência do direito e a possibilidade de que os cidadãos tenham seus conflitos solucionados a partir da Constituição, propõe-se o estudo do inquérito civil por meio da construção de um discurso jurídico-político que amplie o tradicional conceito dado ao referido instrumento processual, fazendo uma análise crítica da doutrina e jurisprudência predominantes e tentando demonstrar que o inquérito civil, para além de mero procedimento investigatório informal e não contraditório, por meio do qual o Ministério Público angaria elementos de convicção para a celebração de Compromisso de Ajuste de Conduta ou para o ajuizamento de Ação Civil Pública ou Coletiva, constitui-se em instrumento de resolução extrajudicial de conflitos de natureza coletiva, dando ensejo à proteção e efetivação de eventuais direitos fundamentais que sejam objeto de controvérsia, assim como ferramenta legitimadora da atuação do Parquet, na medida em que abre a possibilidade de discussão para tomada da melhor decisão possível em conflitos coletivos e demonstrando a inexistência de conflito entre o seu modus operandi e o seu mister constitucional, qual seja, a defesa da ordem jurídica e do regime democrático, evitando-se atuação sistemicamente paradoxal.

2. Doutrina e jurisprudência sobre o inquérito civil

Warat1 afirma que o discurso jurídico, sob o paradigma liberal-individualista, é sustentado por um conjunto de saberes acumulados, apresentados por meio de práticas jurídicas institucionais, que expressam representações funcionais provenientes de determinados conhecimentos que os juristas aceitam em suas atividades por meio da dogmática jurídica. Em outras palavras, existiria um conjunto de crenças, valores e justificativas que legitimaria o discurso adotado em uma determinada comunidade jurídica. É o que ele chama de sentido comum teórico dos juristas.

Para Streck2, a existência desse sentido comum teórico afasta do aplicador do direito uma faculdade cognoscitiva, institucionalmente conformada com todos os seus elementos fáticos, lógicos, científicos, epistemológicos, éticos e de qualquer outra espécie. O direito partiria de uma significação dada ou construída pelo sentido comum teórico, que possui um conhecimento axiológico que reproduz valores, mas não os explica, conduzindo a uma espécie de conformismo dos operadores do direito.

Essa poderosa força da manutenção do status quo parece ser a razão pela qual a doutrina nacional persiste em qualificar o inquérito civil como mero procedimento administrativo inquisitorial, unilateral e público3, marcado

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pelo caráter não contraditório4, pela informalidade e pela facultatividade, servindo apenas para levantar elementos para o futuro ajuizamento da ação civil pública5.

Dissertando sobre o princípio do contraditório, Nelson Nery Junior6 defende que o dito princípio não se aplica aos inquéritos policial e civil, pois não são casos de processo administrativo, mas de simples procedimento inquisitório que têm finalidade de aparelhar o Ministério Público para que possa, eventualmente, promover a ação penal ou civil, não se destinando à aplicação de sanção contra o investigado.

Os nossos Tribunais Superiores adotam esse mesmo posicionamento no que se refere ao conceito e aos limites do inquérito civil.

Para o Supremo Tribunal Federal, as garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório não são aplicáveis na fase do inquérito civil, que possui natureza administrativa, de caráter pré-processual, que somente se destina à colheita de informações para propositura da ação civil pública (ED no RE n. 481.955-PR, DJ 26.5.2011, entre outros).

A estreita vinculação entre o inquérito civil e o inquérito policial, bem como o seu caráter pré-processual, foram objeto de apontamento pelo STF no julgamento da Medida Cautelar na ADI n. 1.285-SP (DJ n. 58, de 23.3.2001).

O Superior Tribunal de Justiça segue a mesma orientação: para esta Corte, apesar de ser aconselhável a instauração do inquérito civil como forma de controle do Ministério Público, evitando, com a investigação prévia, que se dê à demanda civil um cunho individual do representante ministerial que nela atua, ele possui natureza jurídica de procedimento inquisitorial facultativo, cuja repercussão no processo judicial é meramente relativa, pois as provas nele produzidas podem ser contrastadas com contraprova colhida sob as garantias do contraditório, passando a ocupar posição de hierarquia superior (REsp n. 476.660-MG, DJ 4.8.2003; REsp n. 644.994-MG, DJ 21.3.2005). O inquérito civil público é procedimento informativo, destinado a formar a opinio actio do Ministério Público, tendo natureza inquisitiva (RMS n. 21.038-MG, DJ n. 1º.6.2009).

A despeito de ter identificado a sua natureza informativa, a Primeira Turma do STJ declarou ser direito do advogado do inquirido ter acesso aos autos do inquérito civil, porquanto tal medida poderia subtrair do investigado o acesso a informações que lhe interessam diretamente. Assim, é reconhecido ao investigado o direito de ciência dos elementos já documentados nos autos e que lhe digam respeito, para fim de estrita defesa do acusado (HC 123.343/SP, DJE de 9.12.2008 e RMS n. 28.949-PR, DJ n. 26.11.2009).

O Tribunal Superior do Trabalho, na mesma linha das outras cortes superiores, entende que as provas produzidas em inquérito civil, ante sua natureza e suas características inquisitiva, pública e auto-executável, possuem valor relativo, em função da não obrigatoriedade do contraditório. Essas provas poderiam ser afastadas por contraprova de valor superior, a saber, aquela produzida em juízo, sob o amparo da referida garantia constitucional (RO n. 2266-62.2011.5.04.0000, DEJT, 8.11.2012).

De todo o exposto, observa-se que o inquérito civil, como instrumento de atuação extrajudicial do Ministério Público, é entendido pela doutrina majoritária e jurisprudência de nossos tribunais como uma mera oportunidade, absolutamente facultativa, dispensável até, para a coleta unilateral de provas para futura demanda judicial. O contraditório nele é dispensado, apesar de, como documento público que é, presumirem-se legítimos e verdadeiros os fatos apurados na via administrativa. O inquirido possui direito de vista dos autos do inquérito civil, mas não lhe é formalmente concedida oportunidade para se manifestar e influenciar a decisão do membro ministerial.

3. O inquérito civil sob o enfoque constitucional-processual

Como visto, segundo o discurso dominante, ao inquérito civil, inicialmente previsto pelo art. 8º da LACP e, posteriormente, alçado ao nível constitucional (CF/88, art. 129, inciso III), no qual se exerce importante parcela da soberania estatal, a saber, a proteção administrativa de interesses e direitos coletivos (lato sensu), não se aplicam determinados direitos e garantias fundamentais. Apesar do indiscutível exercício de poder público, as imprescindíveis funções institucionais reservadas ao Parquet, quando instrumentalizadas neste instrumento, não devem tomar os direitos fundamentais como baliza e referencial, na medida em que o dito instituto constitui-se em mero procedimento administrativo, do tipo inquisitorial, que não está vinculado ao princípio do contraditório, por não se constituir em processo administrativo.

Ocorre que, a despeito dos Estados-nações não mais se constituírem como fundadores de referências sociais,

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por conta da ruptura da noção de dois de seus grandes referentes, a saber, a terra, ante o esfacelamento das fronteiras nacionais, e o povo, em razão da multiculturalidade das populações7, de sua fragmentação política decorrente da chamada Nova Ordem Mundial, em que os Estados são reduzidos a papéis cada vez menos relevantes, em razão da desregulamentação, liberalização, flexibilidade, fluidez e facilitação das transações comerciais, limitando-se a garantir um nível mínimo de ordem necessária para a realização de negócios8, e apesar da transnacionalidade dos conflitos que envolvem direitos fundamentais9...

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