Inovação sistemática e acuidade histórica: a hesitação dogmática de um espírito intransigente ? notas sobre a distinção entre os conceitos de procuração, mandato e representação (a partir de uma confrontação entre os artigos 2853 e 2857 do esboço de código civil)

AutorEstevan Lo Ré Pousada
Páginas150-173
150 • TEIXEIRA DE FREITAS E O DIREITO CIVIL
INOVAÇÃO SISTEMÁTICA E
ACUIDADE HISTÓRICA
A HESITAÇÃO DOGMÁTICA DE UM ESPÍRITO
INTRANSIGENTE – NOTAS SOBRE A DISTINÇÃO
ENTRE OS CONCEITOS DE PROCURAÇÃO,
MANDATO E REPRESENTAÇÃO (A PARTIR DE
UMA CONFRONTAÇÃO ENTRE OS ARTIGOS
2853 E 2857 DO ESBOÇO DE CÓDIGO CIVIL)
Estevan Lo Ré Pousada
1. APRESENTAÇÃO
Dissertar sobre Augusto Teixeira de Freitas - ou sobre qual-
quer uma das facetas de sua vasta obra - é tarefa a um só tempo das
mais fáceis e das mais difíceis de se cumprir: é tarefa fácil porque a
paixão que o autor revela pela contemplação cientíca do Direito
acaba contagiando todo aquele que se debruça sobre sua respectiva
obra; contudo, acaba sendo tarefa das mais difíceis, pois a genérica
circunscrição de um tema em especial não é suciente para manter
o objeto analisado sob o desejado controle. Como teremos a opor-
tunidade de observar logo adiante, a personalidade de Augusto Tei-
xeira de Freitas confere à sua obra uma singularidade que permite a
sua tranquila identicação por um leitor mais cuidadoso: em suas
linhas conseguem-se depreender, simultaneamente, diversas facetas
aparentemente inconciliáveis do espírito cientíco - intransigência,
harmonização, abnegação e escrúpulo -, em uma mistura que por
vezes acabou por redundar em autêntica hesitação por parte do ju-
rista ora estudado.
Com efeito, é sobre tal personagem que gostaríamos de dis-
correr durante as próximas páginas: um estudioso que - adotando
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uma postura pretensamente cientíca ao longo dos diversos mo-
mentos de sua existência - acabou por nos legar um dos mais pre-
ciosos monumentos legislativos dos últimos séculos: um projeto de
Código Civil ao qual ele próprio conferiu a singela designação de
Esboço - e em cujo bojo se dedicam ao tipo contratual do mandato
quase duas centenas de disposições (compreendidas entre os artigos
2853 e 3042).
Decerto que não teremos a oportunidade de analisar toda a
disciplina projetada para o contrato de mandato segundo o Esboço
de Código Civil; contudo, a abordagem de uma série de elementos
pontuais – o panorama imediatamente anterior, as inovações efeti-
vamente implementadas (graças a algumas intervenções creditadas
especicamente à referida fonte), os avanços que se poderia ter feito
(caso as iniciativas constantes do “Esboço” tivessem sido adotadas)
e a própria hesitação de Augusto Teixeira de Freitas (quanto à dis-
tinção entre os conceitos de procuração, mandato e representação)
- parece-nos digna de uma reexão própria, pois acaba por eviden-
ciar o espírito inquieto de seu autor: uma inquietação que se deixa
entrever, inclusive, no aparente conito entre os artigos 2853 e 2857
do Esboço de Código Civil.1
Passemos à breve análise, pois, de três passagens emblemáti-
cas, evidenciadoras: da “intransigência” cientíca do romanista Au-
gusto Teixeira de Freitas; da “harmonização” cientíca promovida
pelo autor da Consolidação das Leis Civis; e da “abnegação” cientíca
do teórico responsável pela Carta de 20 de setembro de 1867 (em
decorrência da qual o Esboço não veio a se tornar o nosso primei-
ro Código Civil). Tais episódios servirão, pois, para valorizar ainda
mais a aparente “hesitação” derivada de uma comparação entre os
1
Como teremos a oportunidade de destacar logo adiante, nossa preocu-
pação, neste estudo, se circunscreve à abordagem do conito aparente de
normas estabelecido entre os artigos 2853 e 2857 do Esboço de C ódigo
Civil. Pelos demais aspectos apontados no corpo do texto, cf. o capítulo X
(intitulado “historiograa exclusivamente brasileira: os contornos ecaciais
do contrato de mandato anterior ao Código Civil de 2002”) de nosso estu-
do anterior LO RÉ POUSADA, Estevan. Aspectos de uma tradição jurídica
romano-peninsular: delineamentos sobre a história e a estrutura do mandato
no direito brasileiro. São Paulo: Faculdade de Direito da Universidade de
São Paulo (Tese de Doutoramento), 2010, p. 296-402.

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