Da inocuidade de um novo Código Comercial

AutorBruno Marques Bensal
Páginas179-188

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1. Linhas gerais

Está em voga o debate acerca do "novo" Código Comercial, com embrião no Projeto de Lei 1.572/2011, de autoria do Exmo. Senhor Deputado Vicente Cândido. E vem já no ímpeto de desvencilhar em apartado nossa regulação compilada de direito de empresa, atualmente no Código Civil (arts. 966 a 1.195), tanto é que seu art. 2° praticamente repete o art. 966 do nosso Código Civil.

Mal concebido foi o nascituro, o debate tomou fôlego notável. Defende um de seus principais apoiadores, o Professor Fábio Ulhôa Coelho - Professor Titular de Direito Comercial da Pontifícia Universidade Católica - que a regulamentação nascente possuiria como principais méritos a desvinculação à ideologia italiana de Natalino Irti,1 sobretudo se considerarmos que este redigiu doutrina aplicável ao direito de seu país, e sua atenção aos princípios de Direito Comercial.

Todavia, demonstrar-se-á nos itens subsequentes, não se pensa ser essa a me-lhor concepção sobre os microssistemas ou sobre os princípios dessa ciência jurídica; nem sequer se sustenta o posicionamento quanto ao Direito Comparado. Não nos parece necessário um novo Código, mas sim exercícios hermenêuticos mais intensos sobre os microssistemas com que devemos trabalhar. Destaca-se, nesse sentido, que a CF/1988 aborda o foco na consideração econômica, principalmente nos arts. 170 e 192, de sorte que se entende que o mercado é um patrimônio político-jurídico e deve ser protegido.

Mais eficiente nos parece uma interpretação dos problemas de Direito Mercantil à luz do caráter macroanalítico cujos subsídios são alumiados pelo Direito Econômico. Ambos os ramos - o Direito Econômico e o Direito Comercial - são frutos da história da própria funcionalização do Direito.

De outra sorte, se o problema dos princípios é o que visa resolver o projeto de novo Código Comercial, não parece crível que o problema seja advindo da crítica que foi feita pelos seus apoiadores à unificação do direito privado com o Código de Civil de 2002, sobretudo por certas esco-

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lhas adotadas pelo PL 1.572/2011, que se apontará - não à exaustão - adiante. Não parece, ademais, que o problema se resolve com a enumeração, ainda que exempli-ficativa, de tais máximas.

Demonstrar-se-á que a eficácia do Direito Comercial é questão concernente à melhor hermenêutica, exercício eterno do jurista. Diferentemente do negócio jurídico ineficaz, a promulgação de um novo Código não comporta a hipótese de conversão substancial,2 embora similar efeito tenha ocorrido com a retaliação histórica que sofreram os diplomas que tentaram disciplinar de forma engessada o Direito Comercial.

Analisado o projeto de uma perspectiva psicológica da teoria do mercado, demonstrar-se-á que não é um diploma normativo que confere a satisfação às expectativas volitivas dos players. A crítica abordará, inevitavelmente, em todos os seus itens, a ratio do referido projeto, isto é, sua função econômico-social3 e jurídica.

2. Da análise crítica do suposto escopo do Projeto

Intenta o referido projeto de lei uma base principiológica a servir de guia para o Direito de Empresa no ordenamento jurídico brasileiro. Teme-se que o dito novo Código, visando consolidar as matizes econômicas que tantas mudanças ensejaram no direito positivo empresarial pregresso,4 acabe por se afogar em suas próprias expectativas, dado que quando se trata das regras que regem a empresa, e, portanto, de um direito fundado nos usos e costumes, sua intenção seja suplantada pela grande velocidade que atingiu a evolução dos processos econômicos. Nesse sentido, entende a Professora Rachel Sztajn:5 "Mesmo que ao jurista não agrade o largo emprego da matemática de que se servem os economistas para modelarem os fenômenos por eles examinados; que à sua forma de pensamento oponham forte resistência; que há valores comportamentais e princípios éticos, fundamentais para os juristas, colocados por vezes, em plano secundário na visão dos economistas - os quais, alega-se, estão preocupados apenas com a eficiência na circulação da riqueza; tudo isto não justifica a separação extremada entre estas duas áreas do conhecimento".

Dois pontos são de fundamental importância no excerto de Sztajn: (i) o cará-ter principiológico com que o jurista tem interpretado um braço do direito movido pelos usos e costumes e (ii) a conexão umbilical entre economia e direito, sobretudo em área que vise o bom exercício da atividade empresarial e, portanto, o lucro. Ambos os pontos merecem explicação conjunta, até porque, parece-nos difícil desvencilhar-lhes.

O referido projeto de lei avoca em seus arts. 4o a 8o normas de caráter principiológico direto - além de em todo o Livro II, Título I, Capítulo I - sobretudo em seu art. 113,6 intentando reforçar os pilares que movem a atividade empresarial jurídica e economicamente concebida. Outro não poderia ser o entendimento de Oscar Barreto

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Filho,7 já à época de sua cátedra: "A nova colocação do direito comercial, que tem o fulcro na organização da atividade econômica, encontra sua ideia-força no conceito de empresa".

Mais ainda: o próprio art. 2° do referido Projeto de Lei8 começa com a conceitua-ção de empresa. Não se trata, obviamente, de um conceito acabado, mas sim do norte que o Código Civil já nos se afigura. De toda forma, tem-se translúcida a ideia que o conceito de empresa exerce poder irradiador sobre a forma com que se organiza e disciplina o Direito Comercial. Trata-se, portanto, de uma ciência de realidade, vez que seu núcleo advém de um conceito que o empirismo continuamente lapida.9 Esse afã pela realidade tem sido perscrutado pela doutrina da Common Law também. Nesse sentido, Kraakman10 et alli: "The corporate form has the same fundamental legal features around the world: legal personality, limited shareholder liability, transferable shares, centralized (and dele-gated) management and investor owner-ship. These features shape the agency pro-blems that corporate law must address, and they create the domain in which a functional framework for comparative corporate law makes sense. We do not believe that all of corporate law is functional or 'effi-cient'".

A posição de Kraakman nos leva à indagação acerca da funcionalidade ou eficiência do citado novo Código Comercial. Não estaria ele sujeito às mesmas dilapidações que os sistemas pretéritos, haja vista, a velocidade com que as relações econômicas têm exercido crescente influência sobre as diversas necessidades se poderia vislumbrar como patente algoz? Ronald Coase já elucidava em seu The Nature of the Firm,11 de 1939, "um economista pensa o sistema econômico como sendo coordenado pelos mecanismos de preço e a sociedade se torna não uma organização, mas um organismo. O sistema econômico 'trabalha sozinho'. Isso não significa que não haja planejamento pelos indivíduos. Estes exercitam a previsão [das flutuações de mercado] e escolhem entre alternativas. Isso é necessário, vez que se há de ordenar o sistema".

Ou seja, um economista, e, portanto, também um intérprete do direito de empresa trabalha com a redução dos custos de transação. Tenta-se modular a estrutura, v.g., dos contratos empresariais, visando atender às novas formas de organização da empresa moderna.12 Assim, o trabalho de ourives que tem sido feito pelo legislador ordinário, tem tido considerável sucesso, de sorte que conta nossa Lei das Socieda-

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des Anônimas, hoje, com 35 anos, assim como nossa Lei de Mercado de Capitais -Lei 6.385/1976.

Teme-se, portanto, que a codificação venha a ensejar um natimorto sistema a ser lapidado como nos conta a história; acresça-se, ainda mais rapidamente, com fulcro em teorias como a de Engrácia Antunes (1993), para quem "a reação das estruturas jurídicas [face à evolução das estruturas econômicas] ainda não viu a luz do dia". Vislumbra-se um novo inverno russo, grande vencedor de guerras. Um Código tende a engessar conceitos, o que, de fato, não se deseja.

Explica-se. O Projeto de Lei dedica um capítulo (Título II, Capítulo I) para definir empresário e outro capítulo (Título II, Capítulo II) para definir o empresário individual. Não obstante a já aludida malfadada solidificação de conceitos líquidos ao sabor da economia - dos usos e dos costumes, por óbvio e consequente -, veja-se que uma definição cimentada de empresário individual gera dúvida. Se tiver o escopo da segurança jurídica, para tanto, a Lei 12.441/2011 já criou semelhante figura, sem engessá-la, alterando o Código Civil, fazendo-se inserir o art. 980-A.13

Veja-se que Sylvio Marcondes Machado já lecionava que tal tipo societário é/era advindo da circunstância de que a lei havia sido ultrapassada pelos fatos, surgindo-se os ditos testas de ferro. Diz o saudoso Professor, após mencionar que o tipo se deu pelo ventre das condições em que se aperfeiçoa a vida econômica, em apontamentos à obra de Antônio de Arruda Ferrer Correia, com a propriedade que lhe é notória:14 "A atitude do legislador [suíço- que desenvolveu a ideia de sociedade de responsabilidade limitada - Gesselschaft mit beschränter Haftung - abreviando-se, G.m.b.H.], ao permitir a limitação da responsabilidade, quando haja relações de sociedade, deve-se notadamente ao fato de que a responsabilidade limitada é, tecnicamente falando, mais fácil de se realizar nas sociedades do que no comércio individual, pois aquelas oferecem sempre um substrato, apropriado à existência de uma pessoa jurídica, expressiva da situação econômica de responsabilidade limitada, o que não ocorre, ao menos na aparência, com a empresa singular. Essa correlação entre sociedade e responsabilidade limitada não constitui, porém, uma necessidade absoluta e se, de fato, o legislador restringe a...

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