Inimigo Rumor, Cabral, Carlito: Impressões Anacrônicas

AutorGeorge Luiz França
Páginas105-136
INIMIGO RUMOR, CABRAL, CARLITO: IMPRESSÕES ANACRÔNICAS
George Luiz França
Si ya ha sucedido todo, nada vale la pena.
(Paolo Virno)
Por afrontamento do desejo
insisto na maldade de escrever.
Mas não sei se a deusa sobe à superfície
ou apenas me castiga com seus uivos.
Da amurada deste barco
quero tanto os seios da sereia.
(Ana Cristina César)
Poesia... são as Moscas na boquinha grenat da Bela Bilheteira Dorotéia Adormecida no
Guichet...é a Voz Sepulchral do Busto do Comendador Molina... é o Gorgolejar na Gruta da
Garganta... são as Gralhas.
(Zuca Sardan)
Tornou-se moeda corrente, na mais contígua contemporaneidade, falar
em crise. No caso particular da literatura, fala-se da exaustão da idéia de
vanguarda, da falta de uma produção que seja “linha de frente”, da inexistência
de uma poesia que não se restrinja a repetir o passado ou a “fazer volteios”
cada vez mais distantes do grande público, esse fetiche. Não é desusado
lembrar que poetas hoje tidos como grandes até no senso comum, como
Manuel Bandeira, chegaram à Academia Brasileira de Letras sem que
houvesse uma grande tiragem de seus livros; o reconhecimento, em geral, vem
a posteriori. Há exceções, entretanto: Silviano Santiago, em Carlos Drummond
de Andrade, frisa mais de uma vez a palavra “sucesso” ao tratar do poeta
modernista, em 1976. Entretanto, esse mesmo discurso da crise também não
parece ser algo tão recente quanto se possa pensar, ou seja, não é somente
fruto do fim da chamada “poesia marginal” e da exaustão da febre
neovanguardista concreta, esta última tão combatida e taxada de esteticista por
uma crítica como Iumna Simon, em textos como Esteticismo e participação
(1990, p.120-140) ou Poesia ruim, sociedade pior, este último em parceria com
Vinicius Dantas (1985, p. 48-60). Nesses textos, Iumna procura (e raramente
encontra) pontos em que a poesia contemporânea consiga fugir dos
imperativos do (de algum) mercado (a que, de alguma forma, quiçá a geração
marginal estivesse atendendo para cobrir O preço da passagem) ou do
ascetismo acrítico em que se embeberia nossa “vanguarda construtiva”. Não
Boletim de Pesquisa – NELIC V. 8, Nº 12 / 13 (2008)
discutirei, aqui, com delongas, a questão do engajamento do artista e do
intelectual em termos adornianos ou lukácsianos, uma vez que nem pretendo
ver a pesquisa formal como elemento fundamental a ser desenvolvido para que
a arte tome lugar combativo na sociedade e duvide do desenvolvimentismo,
nem pretendo tratar da necessidade da abordagem de temas engajados em
formas tradicionais e acessíveis para levar as massas à revolução.
Gostaria de remeter a outro momento do discurso de crise, para chegar
à cena contemporânea e à proliferação de revistas de (alguma) poesia e seus
impasses. O tempo de que falo é o da dita “revisão” do primeiro modernismo,
ou seja, os vínculos políticos e teóricos que fizeram com que a vanguarda
acabasse por se tornar instituição. Essa crise debate-se com o surgimento de
uma obra como a de João Cabral de Melo Neto, autoproclamada anti-lírica.
Quando, por exemplo, Sérgio Milliet coleta seus Dados para uma [a] história da
poesia moderna[ista] e os publica, primeiramente, em cinco partes na revista
Anhembi, para depois transformá-los em um Panorama da moderna poesia
brasileira (editado sob auspício do Ministério da Educação e Cultura), entre
1950 e 1951, encontra-se ele, também (crítico modernista paradigmático que é,
como o seria Simon depois, salvaguardadas as diferenças entre ambos, dada a
visão marcadamente adorniana desta), diante de um diagnóstico e de um
impasse:
Vejo como característica do novo estado de espírito o temor ao
pieguismo, o receio da vulgaridade, a procura de uma forma densa e
limpa, com poucas imagens, mas requintadas, e que se realiza
através de um jogo sintáxico rebuscado. Se alguns ainda conservam
o humour é pelo que ele tem de negativo e arisco. A piada foi
entretanto inteiramente abolida. E se não se voltou por completo à
métrica, já se tenta uma constante rítmica que se aproxima um
pouco das medidas clássicas. Quanto à rima só raramente aparece,
desconfiando os jovens de seus efeitos fáceis. (MILLIET, 1951,
p.323)
O espólio da revolução promovida pela vanguarda nas formas da poesia
então era casado com a tradição. A própria postura de um participante da
vanguarda de comentar com desapreço o que a sua geração de poetas fez e
elogiar o retorno de algumas formas como espécie de inovação soa curiosa, ou
nem tanto, dado que o próprio Mário de Andrade, por exemplo, estava
escrevendo sonetos antes disso, além, é claro, de fazer a célebre conferência
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de revisão intitulada O movimento modernista, em 1942. E o poeta-crítico
prossegue, historiando meio século, deixando, entretanto, uma impressão, de
certa forma, de déjà vu, como se pudéssemos pensar, talvez, que ele fala à
nossa cena: de uma poesia sem mensagem (o que não é necessariamente
negativo) escrita num tempo insolúvel. Um tempo que, não de hoje, é um
impasse a ser resolvido até mesmo em termos teóricos. Vejamos Milliet:
O êxito dos excessos de 22 justifica-se pelo cansaço em que
andávamos todos da medida parnasiana, prudente e vazia. A reação
atual explica-se pelo cansaço inverso. Estamos fartos de trocadilhos,
de paradoxos, de imagens milionárias, de surprêsas de tôda sorte. E,
sobretudo, estamos fartos dos embustes que essa anarquia erigida
em lei tem permitido. Daí a volta à forma, à disciplina, ao cuidado
estilístico. Nada mais natural e nada mais benéfico. Uma nuvem
apenas no horizonte; a possibilidade da forma vir a tornar-se a
própria finalidade da poesia. Onde eu vejo um possível naufrágio dos
revoltados de hoje é nesse recife da forma pela forma. Que o meio
não se transforme em fim, que o poeta não esqueça, na sua
preocupação de como dizer melhor, o que tem a dizer. E temo tanto
mais que isso aconteça quanto dia a dia mais o que vale dizer se vai
fazendo subversivo. [...] Por isso o diz de modo tão esotérico, de
maneira a ser entendido apenas pelos espíritos anti-diluvianos, os
últimos artistas que se vão enterrando sob os gelos da nova
civilização e que um arqueólogo descobrirá num futuro remoto,
depois da bomba atômica.
Esse amor apaixonado à forma assemelha-se profundamente a uma
solução pela evasão. É o que hão de censurar aos jovens poetas de
nosso tempo os que vieram de ontem com a ilusão de uma influência
participante na sua bagagem literária, na sua ‘mensagem’. Se a nova
poesia não se apega à mensagem, ela revela entretanto uma
situação. Ela assinala, como já o disse a propósito de Cabral de
Mello Neto, a amargura dos tempos e a insolubilidade do poeta no
clima de nossa época. E isso é positivamente grave: para o poeta,
para a poesia e para a época. (MILLIET, 1951, p.323-324)
É interessante pensar que essas notas são prévias à própria aparição do
Concretismo na poesia brasileira, que se daria ao longo da década de 50 e
teria forte espaço de divulgação nas revistas Noigandres (que foi fundada em
1952 e publicou, em 1958, o Plano-piloto para a poesia concreta) e Invenção
(1961-1967), ganhando muito pouca ou nenhuma ênfase em Anhembi. Se
aparece a arte “concretista”, isso se dá em termos de artes plásticas; o poema,
por um lado, se mantém império da letra; por outro, continua lido na
reivindicação do lirismo. Entretanto, um dos impasses que chegaria aos dias
atuais (refuto o termo contemporaneidade por pensar que cada um faz seus
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