O informante: a função administrativa no ensaio do Visconde do Uruguai

AutorEliardo França Teles Filho; Carlos Bastide Horbach
Páginas484-503

Eliardo França Teles Filho. Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília e doutorando em Direito na Escola de Altos Estudos de Ciências Sociais de Paris.

Carlos Bastide Horbach. Doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo, Mestre em Direito do Estado e Teoria do Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Professor dos cursos de Graduação e Mestrado em Direito do Centro Universitário de Brasília e Advogado.

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Introdução

O presente estudo1 pretende analisar a concepção de função administrativa tal como a delineada pelo Visconde do Uruguai em seu Ensaio sobre o direito administrativo, obra que evidencia o primeiro grande esforço sistematizador do Direito Administrativo brasileiro.2

No entanto, a ênfase do trabalho será sobre as relações dessa concepção com o contexto histórico e social em que autor e obra se inseriam. Ao mesmo tempo, serão mostradas as influências que o pensamento político e administrativo estrangeiro tiveram na concepção de administrativa para Uruguai. Por outro lado, investigar-se-á até que ponto sua concepção estava condicionada por um projeto político, uma visão específica do que deveria ser o Estado brasileiro, qual seu papel na sociedade deste país.

O contexto histórico e social

De 1831 a 1837, desde os primeiros anos da regência, o Brasil esteve às voltas com uma experiência político-administrativa descentralizadora, que legava larga autonomia às províncias do Império. As principais medidas que implementaram essa experiência foram o Projeto de Reforma da Constituição Imperial, de 1831, que, após uma série de compromissos, deu origem à Lei de 12 de outubro de 1832, fixando quais os artigos da Constituição poderiam ser modificados; a criação da Guarda Nacional, em 1831; o Código de Processo Criminal, dePage 485 29 de novembro de 1832; e o Ato Adicional de 1834, como resultado da reforma constitucional prevista na Lei de 12 de outubro de 18323.

Esse processo, iniciado na Câmara dos Deputados em 1831, buscava a instituição de uma “monarquia federativa” Brasil, o que foi, porém, rejeitado pelo Senado do Império e depois reafirmando pela Câmara, num movimento político cuja composição resultou na citada Lei de 12 de outubro de 1832, que, por sua vez, possibilitou a edição, quase dois anos depois, do Ato Adicional, assim analisado por Aurelino Leal:

Politicamente, a reforma representa uma conquista descentralizadora. [...] estabeleceu o Poder Legislativo local, com um poder próprio sobre a divisão civil, judiciária e eclesiástica da província; instrução pública, exceção feita do ensino superior; a desapropriação provincial ou municipal; polícia e economia municipal, precedendo proposta das Câmaras; fixação das despesas provinciais e municipais e impostos; repartição da contribuição direta; criação de empregos municipais e provinciais e ordenados respectivos; obras públicas, casas de prisão e de assistência pública; modo de proposta, discussão e sanção das leis locais; fixação da força policial; autorização para empréstimos; modo de administração dos bens da província; suspensão e demissão dos magistrados contra os quais houvesse queixa de responsabilidade; exercício cumulativo da suspensão de garantias. O presidente da província, que continuava sendo de nomeação do governo central, exercia o poder executivo, com direito a veto suspensivo. A regência passou a ser una, quadrienal e eleita pelos eleitores da respectiva legislatura. O Conselho de Estado foi suprimido. Era vedado às Assembléias legislarem sobre imposto de importação. O art. 25 estabelecia que ‘no caso de dúvidas sobre a inteligência de algum artigo desta reforma, ao Poder Legislativo competia interpretá-lo’.4

Resumidamente, essas normas geraram uma reestruturação normativa e institucional do Estado. O Código de Processo legou amplos poderes às autoridades eletivas locais: o Juiz de Paz e o Conselho de Jurados. Além disso, outras autoridades, de nomeação do Presidente da Província, adquiriam importância. Nomeado pelo Imperador só o Juiz de Direito, que tinha atribuições bem reduzidas.5

Já o Ato Adicional, como visto, criou Assembléias Provinciais com amplas prerrogativas, entre as quais a de fixar receitas e despesas e criar ou extinguir empregos públicos na província e nos municípios.6

Por fim, é importante mencionar ainda a lei que criou a Guarda Nacional em 1831, que seguiu o princípio localista e eletivo de suas contemporâneas, estabelecendo o sufrágio entre seus membros para os cargos de oficial inferior.7

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Durante esse período, Uruguai ainda era Paulino José Soares de Sousa, recém diplomado bacharel pela Faculdade de Direito de São Paulo. Após sua diplomação, em 1831, Paulino começou uma carreira meteórica: até 1837 já tinha sido Juiz na Corte, Deputado Provincial, Deputado Geral e Presidente da Província do Rio de Janeiro. Em 1832, casou-se com a filha de um importante fazendeiro, cunhada de Joaquim José Rodrigues Torres (o futuro Visconde de Itaboraí e um dos principais líderes do Partido Conservador). Em 1835, com apenas 27 anos, já recusara um convite para ser Ministro da Justiça.8 Ligara-se a Rodrigues Torres, Bernardo Pereira de Vasconcelos, Honório Hermeto Carneiro Leão (o futuro Marquês do Paraná) e a Eusébio de Queiroz, entre outros políticos cujas biografias se misturam com a História institucional e administrativa do Brasil.

Em 1837, quando uma importante facção do grupo dos liberais moderados liderados por Bernardo Pereira de Vasconcelos, decidiu abandonar o barco da “experiência republicana” e descentralizadora e dar início ao movimento conhecido como Regresso, Paulino se juntou a eles.9 Nesse movimento, cujo objetivo maior era a manutenção da unidade territorial, da monarquia e da ordem, a re-centralização se tornou um imperativo10. Paulino, um dos mais estudiosos e brilhantes do grupo, tornou-se o artífice por excelência das medidas normativas por meio das quais se operaria a reforma administrativa e política da centralização, que tinha por fim garantir aqueles três objetivos.

Essas medidas normativas por meio das quais se reorganizou o aparato administrativo central foram o Parecer da Comissão da Câmara dos Deputados sobre a Interpretação do Ato Adicional de 1834, o qual foi transformado, em 1840, na Lei dePage 487 Interpretação do Ato Adicional; a elaboração da Reforma do Código de Processo Criminal, a lei que recriou o Conselho de Estado, em 1841; e a Reforma da Guarda Nacional, em 1850.11

A historiografia, seguindo a interpretação dos contemporâneos do Regresso, tem atribuído a essas leis grande parte do sucesso na estabilização da organização política do Império.12 Contudo, não se deve esquecer da importância que teve a consolidação de certas práticas sociais fundamentais para essa estabilização. Os mecanismos por meio dos quais se iniciaram ou firmaram aquelas práticas foram: a antecipação da maioridade de D. Pedro, o falseamento da representatividade das eleições e a política da Conciliação levada adiante a partir de 1853.13

Essas práticas foram pelo menos tão importantes quanto as reformas do Regresso para a estabilização do sistema político imperial. A favor desse ponto de vista, é possível citar o fato de que duas importantes rebeliões contra o governo começaram depois das medidas do Regresso e antes da estabilização do equilíbrio daquelas práticas: as Rebeliões Liberais de 1842, em Minas Gerais e São Paulo, e a Revolta da Praia, em Pernambuco em 1848. A primeira, inclusive, eclodiu diretamente por causa do Regresso. Além disso, a mais assustadora revolução para os defensores da integridade territorial do Império e da monarquia, a Revolução Farroupilha, só terminou em 1845, quatro anos depois de terminadas as principais reformas do Regresso.14 Aliás, a política de Caxias no Sul, que culminou com a pacificação da província, pode ser interpretada como um primeiro esboço da prática da Conciliação.15 Esses pontos serão examinados mais detidamente adiante.

A importância de Paulino no Regresso é apenas o começo de sua carreira. É após o movimento que esta atinge o ápice. Em 1840, ele aceita o convite para ser Ministro da Justiça, onde passa poucos dias. Em 1841, retorna ao mesmo Ministério. Em 1843, assume a pasta dos Estrangeiros, para onde retorna em 1849, mesmo ano em que é nomeado Senador,Page 488 onde fica até 1853.16 Naquela pasta lida com duas das mais espinhosas questões internacionais do Império: a questão do tráfico de africanos e a questão platina. No mesmo ano em que deixa o Ministério dos Negócios Estrangeiros, é nomeado Conselheiro de Estado ordinário, e se torna o Conselheiro Paulino. Um ano depois, torna-se, por decreto imperial, o Visconde do Uruguai. Foi também plenipotenciário do Imperador na França, a fim de negociar questões de limites. O Visconde só não chegou a ocupar a Presidência do Conselho de Ministros17 porque declinou, mais de uma vez, do convite do Imperador. Toda essa vasta experiência política e administrativa, aliada ao estudo, resultou na publicação em 1862 de seu livro Ensaio sobre o Direito Administrativo.18

A importância da obra de Uruguai19 transcende os limites do Direito Administrativo brasileiro. Ela teve e tem repercussões políticas, culturais e intelectuais. No Direito Administrativo, pode-se ver sua importância reconhecida por José Cretella Júnior, por exemplo20. Também é possível reconhecer, seguindo a interpretação de José Murilo de Carvalho, uma tradição intelectual que vai de Uruguai a Oliveira Vianna e tem profundasPage 489 repercussões até hoje na forma como são percebidos a cidadania e os direitos sociais.21 Apenas a título de exemplo de como essa linhagem intelectual chegou até os dias atuais, é possível citar a aversão brasileira ao conflito e à persecução dos interesses econômicos e particulares, identificada por vários autores contemporâneos.22 Ora, essa...

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