O trabalhador informal nos ônibus: uma das faces da questão urbana na Região Metropolitana de Belém/RMB

AutorChristiane Pimentel e Silva; João Paulo Gois Alves
CargoUniversidade Federal do Pará (UFPA)
Páginas75-82

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1 Introdução

Nas últimas cinco décadas o mundo do trabalho sofreu profundas transformações em sua materialidade e subjetividade provocando graves impactos na vida social como o aumento da concentração da renda, precarização e informalização ampliadas do mercado de trabalho alterando, significativamente, o perfil da força de trabalho ativa.

Devido à drástica redução do trabalho formal e alto nível de desemprego, segmentos expressivos de trabalhadores ficaram obrigados a exercer vários tipos de trabalhos eventuais, temporários e passageiros, comumente conhecidos por “bicos”, ou regimes especiais de trabalho, trabalho informal, autônomo, etc. enfrentando condições precárias para garantirem sua sobrevivência.

As cidades, por concentrarem a grande maioria da população dos territórios, são mais afetadas pelo aumento acelerado de formas de trabalho e de trabalhadores informais, profissionais autônomos e empregadores em unidades produtivas, muitas vezes precárias, informais, trabalhadores ambulantes, trabalhadores domésticos e trabalhadores assalariados, todos sem registro e carteira de trabalho assinada.

Em meio à heterogeneidade das ocupações informais, busca-se, nesta reflexão, destacar as características que remetem ao perfil do mundo do trabalho vivenciado por camelôs e ambulantes. A atividade ambulante se desenvolve sob diversas facetas, como a revenda de mercadorias industriais (alguns casos, encontra-se mercadoria contrabandeada) ou venda direta de artigos artesanais. Não é ignorado que nos espaços públicos da cidade, além dos trabalhadores ambulantes, são encontrados pedintes e vendedores que exploram imagens de apelo à caridade humana, como pessoas carregando bebês. Mas, esses não serão considerados por possuírem características diversas do segmento de trabalhadores que privilegiamos no âmbito da presente reflexão.

Os ambulantes e camelôs podem ser encontrados constantemente em praças públicas e avenidas movimentadas, todavia, tais trabalhadores não se restringem ao espaço das ruas e calçadas. Outro segmento dessa modalidade de trabalhador informal, facilmente identificado atualmente, é o que oferta suas mercadorias nos transportes coletivos. É esse o trabalhador que será o alvo das observações e argumentações contidas no presente artigo.

2 Cidade e trabalho

Antes do surgimento da cidade, os seres humanos caçavam, lascavam pedra, pescavam, aravam, etc. de acordo com o momento e o lugar habitado, sem que isso representasse a especialização ou divisão fixa de um trabalho a ser realizado todos os dias. A cidade tornou possível a divisão geral do trabalho por sua natureza e capacidade de mobilização e distribuição de força de trabalho. Assim, de acordo com Mumford (2004, p. 119):

[...] foi possível, pela primeira vez, desempenhar, uma vida inteira, uma ocupação fracionária: o trabalhador era uma peça substituível e uniforme numa complexa máquina social fixada na mesma posição, repetindo as mesmas operações, confinada dentro do mesmo local durante toda a sua vida.

Mumford (2004) pondera, ainda, que a estratificação ocupacional propiciada pela vida urbana promoveu a segregação das funções econômicas e estagnação dos papéis sociais. A divisão espacial do trabalho gerou construções que, assim como as ocupações trabalhistas, hierarquizavam espaços por meio da dominação dos centros. O espaço fragmentou-se sob formas de apropriação do trabalho, apresentando-se também como mercadoria.

As primeiras expressões da urbanização na Amazônia, em especial no estado do Pará, ocorreram vinculadas a atividades de extrativismo mineral e vegetal, pesca e caça. Tal particularidade contribuía para concentrar a maioria da população dessa região nas áreas rurais. O cenário começou a mudar quando, por meio do advento do primeiro ciclo de exploração da borracha, no período compreendido entre os anos de 1850 e 1910, iniciou-se a substituição do chamado ciclo das drogas no sertão. À época, devido à crescente industrialização nos países capitalistas avançados, a exemplo dos Estados Unidos e Inglaterra, a exploração da borracha tornou-se atividade produtiva hegemônica da Amazônia. Assim, o acelerado crescimento econômico e produtivo desses anos provocou um intenso fluxo migratório para a região, determinante decisivo para a transformação de povoados e vilas em cidades ou, ainda, para a transformação de pequenas cidades em centros metropolitanos, como ocorreu com a capital do estado do Pará, Belém.

Fialho Nascimento (2006) argumenta que outro momento de elevada imigração no estado do Pará sobrevém de ações de incentivo fiscal1 instauradas para possibilitar o processo desenvolvimentista via industrialização, iniciado no ano de 1953, visando à dinamização da economia na região amazônica. Segundo Leal apud Fialho Nascimento (2006), os empreendimentos-enclaves mais conhecidos pelo termo grandes projetos retiravam recursos naturais em abundância da Amazônia, a exemplo do projeto da Companhia Ford, localizado próximo ao rio Tapajós, no estado Pará. Nessa perspectiva, a implantação dos grandes projetos para a autora

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[...] contribuíram, dentre outros, para a expropriação do nativo, que foi perdendo aquilo que lhe permite a reprodução das suas condições materiais de existência - a terra e os espaços da natureza. A essa expropriação seguiu-se, para uma expressiva parte deles, como única alternativa de sobrevivência, a migração, o que contribuiu, ao lado de outros processos decorrentes da dinâmica das relações capitalistas na região, para, por exemplo, a reconfiguração da rede urbana da Amazônia. [...] Por um lado, essa migração produziu uma alta concentração urbana nas capitais da Região Norte, como é o caso de Belém. (FIALHO NASCIMENTO, 2006, p. 15)

A redistribuição e concentração urbana na Região Metropolitana de Belém (RMB) ocorreram atendendo particularidades geográficas2. Os espaços de terra firme foram ocupados pelas classes dominantes e as terras de baixadas ocupadas pela população de baixa renda configurando a segregação social, ou, conforme as palavras de Wacquant (2008), um confinamento das posições ocupacionais subordinadas. A busca pelos terrenos de terra alta provocou a aglomeração de estabelecimentos de comércio e serviços na região central da cidade formando, ao mesmo tempo, as chamadas periferias.

A partir dos anos de 1980, devido a novos fluxos migratórios campo-cidade, surgiram as ocupações de vazios urbanos, conhecidas como “invasão”, ao longo das terras da Marinha e da Universidade Federal do Pará. Com a continuidade e ampliação do processo migratório, principalmente das cidades do interior do próprio estado, no ano de 1999 a RMB possuía uma taxa de urbanização de 78,48%, de acordo com o Atlas do Índice de Desenvolvimento Humano do Brasil (IDH), e uma taxa de desemprego de 9,6%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Os trabalhadores não absorvidos pelo mercado de trabalho regular e formal procuram outras formas de inserção: quase sempre ocupações precárias e de baixa qualificação, muitas delas hoje impulsionadas pelo ideário neoliberal, por meio do discurso do empreendedorismo, responsabilizandose o próprio indivíduo pela sua empregabilidade ao transformar-se em empresário “autônomo”. (KRAYCHETE, 2002)

Novas configurações mundiais iniciadas a partir da crise da produção norte-americana de 19733 repercutiram sobre o Brasil agravando ainda mais o mundo do trabalho. Para enfrentar essa crise foram adotadas inovações tecnológicas e novas estratégias de gestão do trabalho e produção provenientes das grandes empresas japonesas. A mudança no modelo de produção atingiu diversas dimensões estruturais e conjunturais, da economia à política, repercutindo diretamente na vida da classe-que-vive-do-seu-trabalho4.

O toyotismo, a nova proposta produtiva, combina o uso intensivo de tecnologia de ponta, terceirização e flexibilidade para se ajustar a diferentes demandas que, segundo Antunes (2007), de um lado favorece o processo de diminuição do trabalho estável e, de outro lado, promove aumento do novo proletariado fabril e de serviços por intermédio das formas de horizontalização, do acréscimo da lean production5 e da introdução da máquina informatizada, como a “telemática,” que permite relações diretas entre empresas muito distantes.

O proletariado6 da indústria verticalizada, típica do sistema taylor-ford, é reduzido drasticamente após o ingresso da produção fundamentada nos princípios toyotistas que propõem o fim dos estoques, a polivalência dos trabalhadores, a criação...

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