Infidelidade partidária (Resolução no 22.610/2007-TSE): legitimidade ativa do Ministério Público e temas relacionadosAlexandre Lima Raslan

AutorDaniel Castro Gomes da Costa
Páginas163-195

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1. Introdução

A democracia deve ser entendida como interesse difuso de coordenação (art. 1º, parágrafo único, da CF) que, submetendo todos os valores e preceitos, reclama a materialização dos seus ideais e finalidades (arts. , , e , da CF) em um plano racionalmente apreensível, qual seja, a realidade, estando o Ministério Público em posição constitucionalmente privilegiada (art. 127 da CF), porém, não exclusiva, para cumprir essa tarefa.

Não se trata aqui de acreditar que a retórica por uma democracia seja válida ou mesmo que a outorga de status de Estado Democrático de Direito pelo Poder Constituinte originário seja suficiente (art. 1º da CF). Mas, ao contrário, é necessário que se conserve o espaço dos conceitos abstratos sem perder de vista a indeclinável obrigação no preenchimento de suas indeterminações por meio de realizações alicerçadas em paradigmas atualizados, que correspondam aos anseios de uma dada sociedade em determinado momento histórico (art. 5º, § 2º, da CF). Negar essa abertura ao sistema jurídico é confirmar a condenação imposta pelo positivismo jurídico às sociedades em geral: envelhecer e padecer inertes agarradas à autoridade da letra da lei, enquanto pululam valores solenemente ignorados.

A fidelidade partidária sempre foi um objeto do desejo que esteve somente no plano da retórica institucional apesar de positivada no ordenamento jurídico brasileiro, sendo que até recentemente nada havia sido feito para evoluir gradativamente em direção à efetividade do respectivo princípio. Mas com a provocação do Tribunal Superior Eleitoral por meio da Consulta nº 1.398-DF para que se pronunciasse sobre a interpretação do art. 108 da Lei nº 4.737/1965 (Código Eleitoral), bem como com a confirmação do Supremo Tribunal Federal em relação à resposta dada, deu-se início a uma tentativa de emprestar efetividade ao princípio da fidelidade partidária, necessário à preservação do sistema representativo proporcional como produto da vontade popular e à própria conquista e evolução do regime democrático.

Nesse cenário dinâmico se ambienta o Ministério Público, constitucionalmente incumbido da defesa do regime democrático e, por conseguinte, portador de auto-

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rização jurídica para a busca da concretização dos respectivos ideais, conforme uma série de expressas disposições normativas (art. 129, I, III, IV, V, VI e VIII, da CF) e de outras que se extraem com o auxílio da interpretação sistemática e teleológica (art. 129, caput, e IX, da CF).

Assim, o reconhecimento da legitimidade ativa do Ministério Público para a defesa do regime democrático contra todos os riscos ou ofensas, tópicos ou sistêmicos, a exemplo da infidelidade partidária e suas conhecidas consequências, não depende de expressa autorização legal. Mas, sim, submete-se à coerência do sistema jurídico em que, se determinados fins são almejados (art. 127 da CF), os meios devem estar disponíveis (arts. e do Código de Processo Civil). É o enforcement do sistema jurídico anglo-saxão, entendido como a necessidade da disponibilidade de meios eficazes de cumprimento das normas (sentido amplo) e das decisões judiciais.

Enfim, o argumento de alguns fundado em que somente o Ministério Público poderia regular as hipóteses de sua atuação (art. 128, § 5º, da CF) perde potência diante da consagrada regra de que não se deve interpretar a Constituição Federal considerando apenas esta ou aquela parcela do texto normativo.

Alijar o Ministério Público do rol dos legitimados para o combate da infidelidade partidária é retrocesso somente comparável à extinção de suas funções eleitorais.

2. Democracia e a Constituição Federal de 1988

O atual entendimento sobre a democracia (poder do povo) transcende o significado de forma de governo (governo do povo e para o povo) passando a traduzir um modo de ser e de pensar, conforme assenta Nicola Abbagnano,1que discorre sobre seu desenvolvimento, justificação e antinomias.

O desenvolvimento da democracia pode ser analisado, primeiro, sob o seu significado político, tanto na concepção tradicional quanto na moderna. Naquela, e na Idade Média, referia-se a uma das três formas positivas de governo que visavam o bem comum, a saber: monarquia, governo de um; aristocracia, governo de poucos; democracia, governo de muitos. Já quando se governa visando o próprio bem se tem a tirania, a oligarquia e a demagogia, como formas negativas. Na moderna, a demo-cracia pode ser vista como a oposição ao absolutismo, representada pela ideologia liberal ou social.

Na contemporaneidade, a democracia se contrapõe ao totalitarismo ideológico ou tecnológico, bem como às políticas desumanas, tratando de buscar a realização plena dos ideais humanos, a exemplo da dignidade, passando pela universalização do conceito de homem e pela participação política. Em resumo: no século XX todos os homens, sem exceção, devem poder se expressar politicamente por meio do sufrágio universal. É a era dos direitos, conforme preceitua Norberto Bobbio.2

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A modernidade, por seu turno, emprestou à democracia um novo conceito que a considera a política fundada nos direitos humanos, que se inicia com os direitos civis ante o Estado absoluto, passa pelos direitos políticos no âmbito do Estado de Direito, chegando aos direitos sociais no Estado social e, enfim, e por enquanto, culmina nos direitos coletivos das estruturas supranacionais.

A justificação da democracia se funda inicialmente na reivindicação da liberdade (Locke, Espinosa, Kant, Tocqueville e J. Stuart Mill) e em seguida com a reclamação por igualdade (Rousseau e Marx). Um segundo estágio finca convicção em face dos Estados totalitários.

Ainda que existam diversas concepções de democracia, o denominador comum é formado por um mínimo de regras, a saber: o sufrágio universal, a maioria governa com a participação da minoria e a garantia da alternância no Poder.

Já o fator de diferenciação entre essas concepções são os valores que, para alguns, a exemplo de Kelsen, limitam a democracia a um aspecto formal ou procedi-mental, sendo que para outros os ideais são o fator de evolução em busca do humanismo, como em Miguel Reale.

Por fim, tem-se que reconhecer que não se pode renunciar à forma e ao procedimento (regras do jogo) para que haja alguma segurança, mas, de outra banda, desprestigiar os valores torna estéril a busca pelo ideal democrático.

A democracia almeja, portanto, que o homem seja atendido em suas necessidades de ser livre, de ser considerado universal e de promover e se beneficiar da solidariedade, tudo isso com o abandono dos exclusivismos e com a adoção do relativismo, da opção de viver e tolerar as diferenças.

Politicamente, a democracia não é governar em direção ao povo nem pelo povo, o que os rebaixa à categoria de objeto, mas, sobretudo, fazer do povo o sujeito da política, elevando-o e conservando-o como protagonista da própria história.

A democracia, portanto, tem três aspectos: fundamenta-se no respeito à pessoa humana, tem como método a aceitação do pluralismo e tem o objetivo de alcançar a paz.

Segundo a Constituição Federal de 1988 o Brasil é uma República Federativa e se constitui em Estado Democrático de Direito (art. 1º), sendo que em seu Preâmbulo, que se invoca somente para reforçar a argumentação, ratifica-se o caráter de Estado Democrático e "destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna". Portanto, um Estado de Direito e Democrático.

Para José Joaquim Gomes Canotilho3, o Estado de Direito e o Estado Democrático articulam-se para formar o "Estado constitucional democrático de direito" que, em síntese, pode ser compreendido como "o governo de homens segundo a lei constitucional, ela própria imperativamente informada pelos princípios radicados na consciência jurídica geral".

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E sobre o princípio democrático assenta José Afonso da Silva,4ao tratá-lo sinteticamente, que o princípio da soberania popular vem insculpido na cláusula que prevê que "todo poder emana do povo", fundando o regime democrático, defendendo que a "Constituição combina representação com participação direta, tendendo, pois, para a democracia participativa" (art. 1º). Mas, esse autor, ao referir à democracia representativa, que mais interessa a este estudo, diz que "a democracia representativa pressupõe um conjunto de instituições que disciplinam a participação popular no processo político, que vêm a formar direitos políticos que qualificam a cidadania, tais como as eleições, o sistema eleitoral, os partidos políticos etc., como consta dos arts. 14 e 17 da CF", e reafirma que:

Na democracia representativa a participação popular é indireta, periódica e formal, por via das instituições eleitorais que visam disciplinar as técnicas de escolha dos representantes do povo. [...] Realmente, nas democracias de partido e sufrágio universal as eleições tendem a ultrapassar a pura função designatória, para se transformarem num instrumento pelo qual o povo adere a uma política governamental e confere seu consentimento - e, por conseqüência, legitimidade - às autoridades governamentais. Ela é, assim, o modo pelo qual o povo, nas democracias representativas, participa na formação da vontade do governo e no processo político.

Enfim, o...

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