A infertilidade feminina na pós-modernidade: entre o narcisismo e a tradição

AutorFernanda Eleonora Miranda - Jacqueline de Oliveira Moreira
Páginas184-197

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A experiência* que uma mulher2 tem de sua infertilidade pode ser influenciada histórica e culturalmente. A existência humana está inequivocamente associada ao fenômeno cultural não de forma determinista, mas contextual. A sociedade, ao mesmo tempo em que é produzida pelo homem, adquire vida própria e produz modos de subjetivação para o homem. A relação entre indivíduo e sociedade dá-se de forma evidente, mas complexa. Aqui interessa enfocar que a subjetividade dos indivíduos não é separada da sociedade e da cultura em que vivem, à medida que compartilham signos e símbolos comuns. Assim, a infertilidade para a mulher é uma representação que não pode ser tomada fora do contexto sócio-histórico. Considerando-se a relação dialética entre indivíduo e sociedade, torna-se necessário refletir sobre os impactos da infertilidade na subjetividade das mulheres que se constituem em um mundo pós-moderno. Não se pretende participar da polêmica a respeito da existência de uma sociedade pós-moderna distinta da moderna ou do fato de a atualidade refletir apenas um novo momento do próprio projeto moderno. Utilizar o termo pós-modernidade neste estudo significa lançar a discussão sobre a infertilidade feminina no aqui e agora, enfatizando características do mundo atual que impactam de forma particular as subjetividades.

Acredita-se, então, que a vivência da infertilidade na pós-modernidade guarda especificidades. Nesse sentido, este texto pretende refletir sobre a relação da mulher infértil com seu corpo num mundo em que a técnica oferece diferentes formas de manipulação e “correção” desse corpo. Pretende ainda articular pós-modernidade e infertilidade, buscando elementos elucidativos que possibilitem a compreensão do sofrimento diante da infertilidade no contexto do mundo atual.

1. O rascunho de um corpo infértil

Para Chatel (1995, p.56), não é a mulher, e sim o “corpo ‘fêmea’ que se considera responsável pela procriação, e a demanda de um filho assume a forma de uma demanda de satisfação de uma necessidade que utiliza o corpo como máquina de fazer bebês”. O resultado dessa elisão, segundo a autora, é a elevação do problema da infertilidade. Essa idéia do corpo máquina parece indicar uma nova dicotomia dos tempos modernos, não se trata mais da dualidade mente-corpo, mas sim da dualidade eu-corpo. O corpo que não atende prontamente ao desejo de ter um filho é estranhado, tomado como um outro. Se o “corpo fêmeo” não atende à procriação, então, a máquina de fazer bebês precisa de reparo.

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Le Breton (2003), antropólogo francês, trabalha, sob a perspectiva da antropologia, a questão do corpo na atualidade. Para ele, no discurso científico contemporâneo, o corpo é tomado como simples suporte da pessoa. Na pós-modernidade, o corpo é um rascunho que pode e deve ser aprimorado. Quando não responde às elevadas expectativas narcísicas, características das sociedades ocidentais contemporâneas, o corpo é visto como rascunho. Assim, para não naufragar nas exigências atuais, as pessoas entregam-se a manipulações de si, e a ciência vem em auxílio a esse corpo que deve ser reparado.

Ao estudar a infertilidade feminina, a questão do corpo emerge, e o corpo feminino que se nega à reprodução fica sob suspeita. Na infertilidade, há um descompasso entre o corpo e o desejo: o corpo recusa-se a atender ao desejo da maternidade. O corpo infértil é o rascunho de um corpo apto a reproduzir-se e, portanto, pede reparo. Essa concepção parece expressar a dualidade eu-corpo e, dessa forma, diante da infertilidade feminina, o corpo infértil faz eclipse do sujeito infértil. Além disso, o corpo feminino é vasculhado em sua intimidade. Exames cada vez mais sofisticados revelam com detalhes a anatomia e a fisiologia internas. O foco de atenção das mulheres inférteis, de acordo com Pines (1990), concentra-se, por exemplo, no ciclo menstrual e em suas vicissitudes. Há uma apropriação pelo sujeito do processo reprodutivo e da biologia, que inaugura uma relação instrumentalizada do sujeito com seu corpo, o que realça a dualidade eu-corpo.

Para Le Breton (2003), a fertilidade do encontro sexual fundamentase não só em uma fisiologia, mas em uma fisiossemântica, isto é, num corpo que faz sentido e numa relação particular com o outro, que determina o travamento provisório ou a abertura do corpo. Para o autor (2003, p. 69), a infertilidade, muitas vezes, é uma condição provisória “da qual o tempo – ou as palavras – livra”. No entanto, no cenário pós-moderno de um mundo que tem pressa, as pessoas acabam procurando mais cedo pela ajuda da medicina. “Um atraso entre a vontade de ter a criança e a gravidez transforma-se em sintoma e justifica o ato médico” (LE BRETON, 2003, p.70). A urgência impõe-se e a medicalização da procriação unese a uma temporalidade própria do momento atual que não suporta a espera. Acredita-se que, com isso, Le Breton não pretenda psicologizar a infertilidade, tampouco negar o importante papel da medicina e dos avanços tecnológicos nos modernos tratamentos da infertilidade. Acredita-se que, dessa maneira, o autor quer ressaltar a questão da ênfase dada ao corpo infértil na atualidade em detrimento do sujeito infértil. Assim, ele ressalta também a ênfase dada à fisiologia da fertilidade em detrimento de uma fisiossemântica que traria para a cena da infertilidade um corpo que faz sentido e a importância da relação com o outro.

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Além disso, não se pode negar que, na pós-modernidade, impõe-se uma noção de tempo marcada pela urgência, o que pode fazer com que o apoio médico seja eleito como primeiro tempo diante da infertilidade, tornando-se, então, verdadeiro sintoma de um imediatismo pós-moderno que atropela a paciência e a palavra.

A infertilidade abala a imagem do corpo controlável e da gravidez programável engendrada pela contracepção e leva à quebra da imagem narcísica superinvestida na pós-modernidade, na qual o corpo é vetor. Graças à contracepção, inaugurou-se uma relação instrumental da mulher com seu corpo, que passou a ser passível de controle, possibilitando a programação da gravidez. As mulheres esperam que, logo que abandonem a contracepção, a gravidez aconteça. Nessas condições, o corpo é tido como instrumento à disposição, sua recusa é vista como uma anomalia a ser reparada. Diante da infertilidade, emerge o corpo rascunho de Le Breton (2003), aquele que sucumbe diante das exigências narcísicas em relação a ele e que, assim concebido, fica esvaziado de sentido e do sujeito que o habita. “O corpo deixa de fazer sentido, ‘funciona’ ou manifesta uma pane, é obstáculo... Em última instância, prefere-se contorná-lo para não permanecer entregue aos acasos da sexualidade e de uma fisiologia que assusta” (LE BRETON, 2003, p. 74-75). A relação subjetiva das mulheres com seus corpos femininos que se negam a dar-lhes um filho parece ser de rejeição, o corpo estéril é um corpo indesejável, por não atender às expectativas narcísicas nele depositadas.

Le Breton (2003) chama a atenção para a verdadeira provação fisiológica, moral e psíquica infligida às mulheres durante o tratamento da infertilidade após meses ou anos de tentativas. O corpo é mecanizado e a mecanização do corpo não leva em consideração o simbólico. O corpo encarado como máquina de produzir um bebê parece prescindir do sujeito que o habita e que, por vezes, não se vê em condições de obter um posicionamento em relação à adversidade encontrada e à ambivalência dela decorrente. A mulher deseja a fertilidade para conceber um filho, mas não a trilha de obstáculos que se interpõe ao longo do tratamento. Segundo o autor, além do estresse inerente a uma provação longa e semeada de ansiedade, o estímulo ovariano é uma conduta penosa que prevê por meses injeções diárias de hormônios carregados de efeitos colaterais: aumento de peso, náuseas, cólicas etc. As mulheres descrevem seu percurso como o de um combatente, e tem-se a impressão de só existirem para isso. O corpo é, então, menos um destino do que um reservatório de elementos destacáveis e manipuláveis a serem trabalhados pela ciência.

Para Le Breton (2003), a assistência médica à procriação...

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