O trabalho infanto-juvenil artístico e a idade mínima: sobre a necessidade de regulamentação e a competência para sua autorização

AutorJosé Roberto Dantas Oliva
Páginas120-152

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1. Introdução

Queiramos ou não, tenhamos ou não consciência, sob olhar complacente ou de indiferença, indignação ou — como é comum — indisfarçável, irrefletida e pura admiração pelo estrelato prematuro, assistimos, diariamente, ao trabalho infantil artístico invadir, sem permissão, os nossos lares. E nem esforço é necessário para que isto ocorra, bastando acionar o controle remoto do televisor.

Assim, quando alguém se propõe a debater seriamente a questão da idade mínima para ingresso no mundo artístico, mesmo pelo prisma estritamente jurídico, não pode ignorar essa insofismável realidade. Afinal, conforme advertência que se tornou célebre e é por todos tributada ao jurista francês Georges Ripert, quando o direito ignora a realidade, a realidade se vinga, ignorando o direito.

Com este ensaio pretendemos estimular a reflexão sobre o tema. Começamos a investigá-lo no âmbito da dissertação de mestrado, defendida em 2005 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo — PUC-SP, que acabou publicada1 — com acréscimos e adaptações — no ano seguinte.

Depois, participando em Maceió-AL, do XIII CONAMAT — Congresso Nacional de Magistrados da Justiça do Trabalho, entre 3 e 6 de maio de 2006, tivemos aprovada tese que mais adiante será melhor esgrimida, mas que, na essência, sustenta a competência da Justiça do Trabalho para autorizar o trabalho infanto-juvenil artístico, afastando-a do Juiz da Infância e da Juventude.

Em 25 de agosto de 2006, no campus da Unisal, em Campinas, abordamos, no 1º Seminário sobre Trabalho Infanto-Juvenil realizado pela Associação dos Magistrados do Trabalho da 15ª Região (Amatra XV), a autorização para o trabalho infanto-juvenil artístico

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e em ruas e praças. Referido seminário, hoje consagrado nacionalmente, foi uma iniciativa da diretoria presidida pelo Juiz Firmino Alves Lima.

Ainda no ano de 2006, publicamos, pela Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região e pela Revista LTr, artigo que enfocou a autorização judicial para o trabalho artístico infanto-juvenil, defendendo, já então com maior ênfase, a competência do Juiz do Trabalho para tanto.2No ano seguinte, em evento da Escola Superior do Ministério Público da União — ESMPU, participamos, a convite da Procuradoria Regional do Trabalho da 1ª Região, em sua sede, no Rio de Janeiro-RJ (nos dias 9 e 10 de agosto de 2007), do Seminário sobre Trabalho Infantil Artístico, que teve por escopo o debate sobre se as crianças podem trabalhar com arte e artesanato ou tal situação configuraria violação aos direitos humanos. Do evento participaram magistrados, procuradores do trabalho, promotores, advogados, educadores e estudantes, sendo que, já naquela ocasião, afirmamos a necessidade de regulamentação da matéria.

Voltamos a tratar da questão em 8 de outubro de 2008, como um dos expositores na audiência pública realizada pela Comissão de Educação, Cultura e Esporte, no Senado Federal, com o propósito de debater e instruir — a requerimento da Senadora Ideli Salvatti — o Projeto de Lei do Senado — PLS n. 83, que tramita naquela Casa Legislativa desde
11.4.2006, de autoria do Senador Valdir Raupp.

O PLS pretende a fixação da idade mínima para o trabalho como ator, modelo e similares. Depois de mais uma audiência pública na mesma comissão, teve aprovado substitutivo, encontrando-se agora sobrestado na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, desde 4.2.2010, aguardando a terceira audiência pública, requerida, desta vez, pelo Senador Paulo Paim.

Tanto o projeto original como o substitutivo contêm imperfeições técnicas, como se verá adiante, mas, o último, gera preocupação maior pelo fato de, em afronta ao princípio constitucional da proteção integral, suprimir até mesmo a exigência de autorização judicial para participação artística, desportiva e afim de crianças e adolescentes, a não ser que estejam desacompanhadas de um dos pais ou responsáveis. A proposta, sem dúvida, atende aos interesses dos contratantes (de modo especial emissoras de TV), mas não leva em conta a proteção e prioridade absolutas que deve conferir-se ao tratamento de crianças e adolescentes.

A intenção, agora, é verificar, à luz do texto constitucional e da legislação infraconstitucional vigente, como já se fez anteriormente, mas com um pouco mais de profundidade, em que situações pode (e se pode!) haver autorização de trabalho infanto-juvenil artístico. Do mesmo modo, haverá uma abordagem singela sobre a classificação genérica do trabalho artístico como prejudicial à moralidade.

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Embora defendamos a regulamentação da matéria, parece-nos inadmissível que prospere o PLS n. 83/06, da forma originalmente posta ou como se encontra, por meio do substitutivo apresentado. A distinção entre simples participação e trabalho, defendida por alguns, não permite que se ignore a temeridade da aprovação de um texto legal que escancara a porta para a exploração de crianças e adolescentes no mundo artístico, sem mecanismos efetivos de proteção.

Em razão disto, além de crítica ao referido projeto, apresentamos, também, alternativas que, pelo ângulo da proteção integral, tornem possível viabilizar a regulamentação que, aos nossos olhos, é mesmo necessária.

Uma das formas de proteção diferida seria a exigência, como ocorre em outras partes do mundo, de depósito de parte — 50% parecem razoáveis — de tudo que o artista infanto-juvenil auferir, em caderneta de poupança, com movimentação possível apenas quando adquirisse capacidade civil plena, aos 18 anos de idade.

Por fim, advogamos a tese da necessidade de autorização judicial individual, que mesmo inserida no campo da jurisdição voluntária, está afeta à competência da Justiça do Trabalho e não mais das Varas da Infância e da Juventude.

2. O trabalho infanto-juvenil artístico e a exceção à idade mínima

A Constituição Federal, no art. 7º, XXXIII, proíbe qualquer trabalho aos que ainda não completaram dezesseis anos, exceto na condição de aprendiz, a partir dos catorze. No plano infraconstitucional, temos a reprodução da vedação no art. 403 da CLT, que também estipula que a proibição alcança qualquer trabalho.

A questão da idade mínima para ingresso no mercado de trabalho recebe tratamento idêntico no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei n. 8.069/90), que, na Parte Geral (Livro I), ao dispor sobre Direitos Fundamentais (Título II), no Capítulo V — Do Direito à Profissionalização e à Proteção no Trabalho, prescreve, no art. 60, ser proibido qualquer trabalho a menores de catorze (a leitura correta é dezesseis)3 anos de idade, exceto na condição de aprendiz.

A expressão “qualquer trabalho”, utilizada pelo legislador constituinte e ordinário, parece não comportar exceções. Também já advertimos:

[...] a leitura sistemática interna do art. 406 da CLT [...] conduz à convicção de que a possibilidade de concessão da autorização judicial ali mencionada, para trabalho

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de “menores” em teatros, cinemas, boates, estabelecimentos similares ou empresas circenses, não é genérica. Contempla, na verdade, apenas adolescentes com idade igual ou superior a 14 anos.

Tal conclusão deriva do fato de que “menor”, para a CLT, é o trabalhador de catorze a dezoito anos (art. 402). E ambos os arts. 402 e 406 citados estão subordinados à seção I do Capítulo IV do Título III da Consolidação, que cuida das disposições gerais de proteção especial ao trabalho do adolescente.

Assim, em primeira e apressada análise, interpretação conjugada e literal dos textos constitucional e consolidado levaria às seguintes conclusões: a) como a CF não abriu exceção, o juiz só poderia autorizar trabalho artístico para quem tivesse idade igual ou superior a 16 anos; e b) excepcionalmente, desde que respeitados os requisitos da aprendizagem (no campo específico), poderia ser autorizado o trabalho artístico para adolescentes com idade igual ou superior a catorze anos.4Sem dúvida alguma, a previsão na legislação ordinária reforça a vedação contida no texto (art. 7º, XXXIII) constitucional. Entretanto, devemos averiguar se, no campo artístico, aquele sobre o qual aqui nos debruçamos, à luz da doutrina constitucional moderna, que enxerga nos princípios força normativa, seria possível compatibilizar tal vedação com outros princípios de igual envergadura constitucional, que sinalizem em sentido contrário, bem como se há previsão de, excepcionalmente, conceder autorização para os que ainda não completaram a idade mínima para o trabalho no Brasil, atuar no mundo das artes. E a resposta é positiva.

Na cognominada era do pós-positivismo5, princípios e regras são espécies do gênero normas. Ou seja: ambos têm carga normativa, os primeiros até mais intensa, especialmente quando positivados na Constituição Federal. Exigem, assim, concreção jurídica. Os princípios ocupam, no direito contemporâneo, um novo e destacado papel: o de regente dos poderes normativos.

Os princípios constitucionais pautam, na esfera de criação, o legislador, que deles não pode afastar-se ao editar leis, sob pena de ter fulminada a iniciativa pelo reconhecimento da inconstitucionalidade. Já no âmbito da aplicação, referidos princípios dirigem-se ao juiz, vinculando-o mas também libertando-o de amarras dogmáticas, ao permitir, a partir de juízo de ponderação de valores, o encontro da solução mais adequada e justa para o caso sob sua análise.

Conquanto não se desconheça que...

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