Infanticídio

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas201-214

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7.1. Natureza privilegiada e a influência do estado puerperal

Se colocadas sob cotejo as figuras típicas que inscrevem os crimes de infanticídio (art. 123, CP) e homicídio qualificado (art. 121, § 2º, CP) ou mesmo simples (art. 121, caput, CP), facilmente se percebe, pela comparação, a extrema brandura que o diploma penal conferiu ao tratamento jurídico do infanticídio, cominando-lhe pena sensivelmente mais amena, na qualidade e quantidade, em relação à sanção infligida ao homicídio. Aparentemente, o Código Penal pátrio, com sua indulgência para com o filicídio, estaria a albergar um desconchavo e a conferir guarida a um contrassenso. No homicídio, via de regra, o sujeito ativo elimina a vida de um rival ou desafeto, ou mesmo de pessoa que até então lhe era estranha e desconhecida, pelos mais variados motivos (retaliação, cobiça, embriaguez, desavença etc.), possuindo a vítima - em princípio - condições físicas para a capacidade defensiva. Já no infanticídio é a própria mãe, contrariando os impulsos da natureza, desdenhando qualquer sentimento de ternura, desvelo, afeto e proteção que deveria nutrir e desenvolver pelo ser que gerou em seu ventre, quem o elimina, além de dirigir o exício contra ser indefeso, frágil e desprotegido, carne da sua carne, sangue do seu sangue.

Em perfunctória análise, certamente o infanticídio deveria constituir modalidade criminosa provida de maior gravidade que o homicídio, a ensejar punição bem mais severa por denotar natureza repulsiva, ou seja, uma incontida monstruosidade, acentuada barbárie, indescritível aberração. Nem era por outro motivo que, em épocas primevas, severíssimas, cruéis e bárbaras eram as penas infligidas à infanticida, genitora considerada desnaturada, a quem então se punia com a cegueira ou a ignominiosa morte pelo suplício da fogueira ou da empalação, do sepultamento com vida, afogamento etc. Para ilustrar a severidade com a qual o infanticídio era punido, lembra Magalhães Noronha, cabe também referir a uma pena que era adotada em Roma, ao tempo de Justiniano: a condenada era costurada em um saco, juntamente com um cão, um galo, uma víbora e uma macaca e lançada ao mar ou rio528.

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As legislações mais modernas, todavia, outorgaram ao infanticídio outra fisionomia jurídica para tratá-lo de forma privilegiada no tocante ao homicídio. Daí o crime ser considerado delictum exceptum. Dessa forma, a lei penal erigiu uma modalidade distinta e autônoma de crime, prevista em dispositivo próprio e com nomen juris peculiar. Nesse passo, criou uma figura derivada do homicídio com previsão sancionadora revestida de maior leniência.

Como figura típica oriunda do homicídio, o tipo legal do infanticídio contém todas as suas características, mas com a adição de outros caracteres, chamados elementos especializantes, que lhe conferem a natureza privilegiada e o molde de delictum exceptum. É um tipo especial em relação ao homicídio (tipo geral), pois sua realização fática preenche integralmente o tipo de que se origina, com o acréscimo dos elementos especializantes que lhe transmudam a feição jurídica529.

Legislações que precederam à hodierna e algumas estrangeiras estribavam-se no sistema psicológico para a concessão do privilégio. Para tanto, inseriram no tipo legal delitivo dolo específico como condição para o aperfeiçoamento jurídico do crime exceptum, pois exigiam, para o mister da tipicidade, que a infanticida procedesse mo-vida pelo intuito de preservar sua honra sob o prisma sexual. Era necessário para a subsunção típica do filicídio - nesses casos - que a mãe agisse honoris causa, imbuída do desiderato de ocultar gravidez ilegítima e fora do matrimônio. Nesta situação estariam a solteira, a separada ou divorciada, a viúva ou a casada com marido estéril que, engravidando, poderiam viver clima de angústia, tormento e aflição moral. Disserta Nélson Hungria, a respeito, que o obsedante receio da descoberta do seu erro, que a sociedade não perdoava, criava na mulher engravidada fora do matrimônio, ou por indissimulável adultério, e que ainda não perdera o pudor, um verdadeiro estado de angústia em que, gradativamente, ia-se apagando o próprio instinto de piedade para com o fruto de seu amor ilegítimo. Existia aí, então, um conflito, em que se debatia a mulher que concebera em situação ilegítima, entre matar o filho nascente ou neonato ou submeter-se às duras consequências da perda do seu estado de mulher honrada530.

A situação psíquica - discorre Olavo Oliveira - de desespero, mercê da ruminação silenciosa e anavalhante de angústia e de vergonha, durante os longos e intermináveis nove meses de prenhez da mulher ilegitimamente fecundada, sem casamento ou com traição aos deveres conjugais, em marcha progressiva, dia a dia, para o repúdio da família e o vilipêndio da sociedade, teve descrições arrebatadoras531. Lastreando-se a ratio essendi do privilégio no motivo de honra, é fato curial que, para as legislações que adotam ou adotaram o critério psicológico, o conceito de honra concerne à prenhez ilegítima, de modo que a incolumidade moral que se intenta livrar das agruras deve ser exclusivamente sexual. De tal arte, o privilégio não alcançaria as prostitutas ou mulheres devassas e de comportamentos sexuais notoriamente dissolutos, mas poderia beneficiar ladras e estelionatárias que se mantivessem sexualmente recatadas, conforme os parâmetros socialmente aceitos.

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Na atualidade, a legislação pátria, abandonando o monopólio do motivo de honra, alicerçou a modulação típica do delito em apreço no sistema fisiopsicológico ou biopsicológico. Tal critério, no entanto, não exsurgiu infenso ou imune à crítica científica e jurídica. Bem por isso é que prestigiosa corrente de pensamento propugna pelo retorno do sistema anterior.

Pelo sistema atual, o motivo aflora como fator de menor importância, pois sobreleva, na espécie, o desequilíbrio fisiopsíquico que pode acometer a parturiente no decorrer ou logo após o processo de parto. Motivação à parte, o critério agasalhado pelo Código conferiu maior amplitude para a verificação do infanticídio, eis que passou a compreender não somente a prenhez ilegítima como, ainda, a gravidez legítima, a havida durante o casamento. Daí o tipo legal delitivo atrelar a ocorrência do crime à influência do estado puerperal.

Não basta, por conseguinte, que a ocisão se realize no puerpério, no decorrer do estado puerperal, já que este nada mais representa senão o conjunto das manifestações e sintomas fisiológicos que acometem o organismo de toda e qualquer parturiente durante o fenômeno do parto: dilatação do colo do útero, rompimento da bolsa amniótica, perda de sangue, contrações, dores e esforço muscular etc. Bastasse o simples estado puerperal, é inegável que toda e qualquer mulher que matasse o seu rebento durante ou logo após o processo de parto deveria ser considerada infanticida.

Não é, porém, o que sucede.

Torna-se imperioso que a parturiente atue sob influência do estado puerperal, id est, que este lhe traga uma desordem ou turvação do espírito, um colapso do senso moral, uma perturbação momentânea no equilíbrio do psiquismo e consciência a refletir nociva e perniciosamente em sua psique, combalindo suas forças emocionais e seus freios inibitórios, de forma a diminuir sua capacidade de discernimento e resistência para a perpetração do ato lesivo numa situação de verdadeira semi-imputabilidade. É claro - salienta Heleno Claúdio Fragoso - que essa perturbação pode ocorrer mais facilmente se tratar-se de mulher nervosa ou angustiada, ou de filho ilegítimo532, já que, realça Olavo Oliveira, o motivo de honra pode contribuir, de par com a morbidez fisiológica própria do parto, para o estado de excitação e angústia que diminui a responsabilidade da parturiente533. Em suma: influência do estado puerperal significa uma alteração do caráter, transtorno psicológico criado pelo esforço extenuante do parto e, eventualmente, pelo temor e vergonha534.

Sendo o infanticídio tipo especial em relação ao homicídio, figura esta que lhe é subsidiária535, é irrefutável que, se a parturiente não estiver sob influência do estado puerperal ao matar o próprio filho, homicídio será o crime realizado.

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A influência do estado puerperal deve simplesmente diminuir ou reduzir a capaci-dade de compreensão, discernimento e resistência da parturiente. Se atingir o ápice de suprimir ou anular essa capacidade, destruindo-a tal a sua grandeza e magnitude (como a discutível e até profligada "loucura puerperal de Marcê", exemplificativamente), ou se associada a uma doença mental preexistente produzir o mesmo efeito, o que se tem é uma situação de inimputabilidade, ou seja, a inexistência do crime pela falta de agente culpável.

Se ocorrer relativa incapacidade de autodeterminação consequente à influência do estado puerperal, a morte do rebento realizada em tais condições configura o crime em comento. Mas ressai inaplicável para o caso a causa de diminuição de pena insculpida no § único do art. 26 do caderno penal. Como adverte Frederico Marques, não pode ser invocado o dispositivo para o fito de ser obtida a redução da pena sob o fundamento de diminuição da imputabilidade advinda da influência do estado puerperal: é que essa causa de semi-imputabilidade (rectius: semirresponsabilidade ou responsabilidade diminuída) já está compreendida no tipo (é - acrescentamos - sua essentialia, condição indeclinável para a caracterização do delito e consectário da brandura da pena, de modo que novamente relevá-la para efeitos penais implicaria superestimá-la e incidir no bis in idem). Contudo, prossegue o autor fazendo escorreita ressalva, se a parturiente, além de agir sob a influência do estado puerperal, acusar alguma...

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