Inexigibiledade de multas tributarias do contribuinte na sua falência

AutorVinícius José Marques Gontijo
Páginas202-212

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1. Introdução

Com o advento da Lei n. 11.101, em 9 de fevereiro de 2005, que editou a chamada nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas (LF), diversos questionamentos vêm sendo propostos pela doutrina que, certamente, refletirão em discussões juris-prudenciais.

Neste sentido, parece-nos que um dos questionamentos que deve ser formulado diz respeito à inclusão no inciso VII do art. 83 da Lei a exigibilidade das "penas pecuniárias por infração das leis penais e administrativas, inclusive as multas tributárias" na classe sub-quirografária.

Com este nosso trabalho, temos a pretensão de responder às seguintes perguntas: seria mesmo válida a exigência das multas tributárias devidas pelo falido, após a declaração da falência? Pode a massa falida ser chamada a honrar esta obrigação tributária assessória? São exigíveis as multas tributárias devidas pela massa falida? Como harmonizar o inciso VII do art. 83 da Lei n. 11.101/2005 com o sistema falimentar, fazendo uma interpretação conforme os preceitos constitucionais?

As respostas aos questionamentos propostos é o objeto deste nosso articulado, buscando-se, para tanto, fazer uso do método juspositivista kelseniano, segundo o qual: "Na afirmação evidente de que o objeto da ciência jurídica é o Direito, está contida a afirmação - menos evidente - de que são as normas jurídicas o objeto da ciência jurídica, e a conduta humana só o é na medida em que é determinada nas normas jurídicas como pressuposto ou consequência, ou - por outras palavras - na medida em que constitui conteúdo de normas jurídicas".1

2. Escorço histórico do tema proposto

Em que pese o processo falimentar representar modalidade de execução cole-tiva, existem, por diversas razões que extrapolam o objeto deste trabalho, obrigações e créditos que não podem ser reclamados na falência, estando postos fora do juízo universal.2 Dentre estes créditos, na antiga Lei de Falências (Decreto-lei n. 7.661, de 21 de junho de 1945), estavam as penas pecuniárias por infração das leis pe-

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nais e administrativas (art. 23, parágrafo único, III, do Decreto Falimentar - DF), isto sim relevante para o tema aqui proposto.

Com efeito, com a declaração da falência, surge a massa falida objetiva e a subjetiva,3 que são diversas do falido. Ora, sendo entidades que não se confundem, "como terceiro, a massa defende os seus próprios direitos, seja contra o devedor, seja, contra qualquer interessado",4 e, assim, a sanção atribuída ao falido não poderá passar do agente infrator da norma, se estendendo à massa falida que, reitere-se, é terceira em relação ao falido.5

Desde a Constituição Imperial, o preceito da não-transferência da sanção é previsto e reconhecido. Nesse sentido, colha-se: "A Constituição Imperial de 1824 (art. 179, n. 20) preceitua: 'Nenhuma pena passará da pessoa do delinquente. Portanto, não haverá, em caso algum, confiscação de bens; nem a infâmia do réu se transmitirá aos parentes em qualquer grau que seja'. As Constituições de 1891 e 1946 seguiram a mesma linha, e nada preceituou a respeito a Carta de 1937".6

Naturalmente, em que pese não haver expressa prescrição na Constituição de 1937 (vigente à época da edição do Decreto Falimentar de 1945), este era um preceito tacitamente reconhecido, tanto que nosso legislador expressamente excluiu do processo falimentar as sanções por ilícitos penais e administrativos praticados pelo falido.

Ocorre que, antes do advento do Código Tributário Nacional (Lei n. 5.172, de 25 de outubro de 1966) havia uma discussão que envolvia a natureza jurídica da multa tributária. À época, imaginava-se que a multa tributária poderia ter dupla natureza jurídica: sanção (= inibitória da reiteração do ato por receio da pena) ou remunera-tória (= remuneração pela indisponibilidade do numerário pelo fisco).

Esta discussão acerca da natureza jurídica da multa tributária fez com que o Supremo Tribunal Federal editasse duas súmulas, na primeira (Súmula n. 191), a Corte Excelsa fixou o entendimento de que a "multa fiscal simplesmente moratória" (= remuneratória) seria exigível da massa falida, enquanto que, na segunda (Súmula n. 192), consolidou o entendimento de que não se incluiria na falência a multa fiscal com

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natureza de pena administrativa, ou seja, com natureza jurídica de sanção.

De fato, tendo a multa natureza de sanção por infração decorrente de ação ou omissão de responsabilidade do falido, ela não poderia ser exigida da massa falida, sob pena de se sancionar agente diverso do in-frator da norma tributária, qual seja, a comunidade de credores do falido (= massa falida subjetiva), que deixaria de perceber seus direitos creditórios que se transfeririam ao fisco em pagamento da sançãcr imposta ao terceiro: falido.7

Com a entrada em vigor do Código Tributário Nacional, a discussão que envolvia a natureza jurídica de multa tributária foi superada, doutrinária e jurisprudencial-mente.8 A multa tributária passa a ter uma única natureza jurídica: sanção! Portanto, pena administrativa.

Sobre a natureza da multa tributária, vale transcrever a lição de Sacha Calmon Navarro Coelho, literis:

"Caracterizada a infração deve ser a sanção. Vimos de ver que a hipótese de incidência das normas sancionantes é precisamente o ilícito. Com a realização da infração in concretu incide o mandamento da norma sancionante. Vale dizer: realizado o 'suposto' advém a 'consequência', no caso da sanção, conforme prevista e nos exatos termos dessa mesma previsão.

"As sanções tributárias mais difundidas são as multas (sanções pecuniárias). Sancionam tanto a infração tributária substancial quanto a formal. As multas que punem a quem descumpriu obrigação principal são chamadas de 'moratórias' ou 'de revalidação'; e as que sancionam aos que desobedecem obrigação acessória respondem pelo apelido de 'formais' ou 'isoladas'.

"Ambas, para citar Carnelutti, possuem a característica de ser 'um evento danoso imposto a quem não cumpre o preceito' e, à semelhança da sanção penal, comportam duplo efeito: 'o intimidativo, (psicológico) que visa a evitar a violação do direito, e o repressivo, que se verifica após perpetrado o desrespeito à norma fiscal', no magistério de festejado autor brasileiro.

"A hipótese de incidência da norma sancionante que pune o descumprimento de obrigação principal é não ter o contribuinte - destinatário da multa - pago o tributo, tê-lo feito a destempo ou insuficientemente. As situações descritas se equivalem. A hipótese de incidência da norma sancionante, que aplica multa por descumprimento de obrigação acessória, é ter o contribuinte feito o que era proibido fazer ou não ter feito o que era obrigatório.

"No primeiro caso, há que constatar a mora ou a insuficiência do pagamento. No segundo caso é mister certificar a inexistência do ato obrigatório ou a inexistência do ato vedado, em contraste com a lei, por isso que nullum tributo nulla poena sine lege. A função básica da sanção tributária é a de tutelar o direito do Estado de receber tributos e de impor deveres secunda-

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rios, visando a evitar o periculum in mora, sem necessidade de recorrerá lei penal."9

Diante da compreensão da natureza jurídica da multa tributária unificada (sanção), o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula n. 565, cujo texto não deixa margens para dúvidas: "A multa fiscal moratória constitui pena administrativa, não se incluindo no crédito habilitado em falência".10 Com isso, restou superada a Súmula n. 191 do STF.11

Destarte, a jurisprudência nacional se consolidou no sentido de que, a declaração da falência geraria a inexigibilidade de quaisquer multas tributárias por atos ou omissões do falido (Súmulas ns. 192 e 565 do STF). Não poderia mesmo ser diferente, pois, em que pese o fisco não se sujeitar às normas processuais da falência, ele se sujeita às normas materiais do concurso f alimentar, uma vez que "a cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso" (caput do art. 186 do CTN),12 portanto, ao processo; materialmente, o fisco deve se sujeitar a todos os efeitos da quebra do contribuinte.

Processual civil. Execução fiscal. Embargos do devedor. Massa falida. Penhora posterior à decretação da falência. Multa e juros. Súmulas 192, 565 e precedentes do STF.

  1. Decretada a falência em 15.12.93, antes da realização da penhora no executivo fiscal, é indevida a multa administrativa após aquela data e os juros ficam condicionados à suficiência do ativo apurado para atender ao principal no Juízo da Falência.

  2. Recurso especial conhecido, porém, improvido.13

    Não cabendo, é claro, ao juiz excluir, por ato de ofício, as multas tributárias:

    Execução fiscal. Falência. Multa moratória. Exclusão de ofício. Inadmis-sibilidade.

    Multa fiscal moratória. Falência. Exclusão de ofício. Impossibilidade.

  3. Embora o entendimento majoritário da turma, na esteira deste tribunal, com base nas Súmulas 192 e 565 do STF, seja de que a multa fiscal moratória ou punitiva não se inclui no crédito habilitado na falência e, da mesma forma, é indevida na cobrança judicial do crédito tributário, que não está sujeito à habilitação em falência, certo é que o juiz não pode excluí-la de ofício. Precedentes da turma.

  4. Agravo provido.14

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    Observe-se que, inconformada com a inexigibilidade das multas fiscais da massa falida, a Fazenda Pública do Estado do Rio Grande do Sul arguiu a não-recepção pela Constituição Federal de 5 de outubro de 1988 tanto do art. 23, parágrafo único, III, do Decreto-lei n. 7.661/1945 quanto das Súmulas ns. 192 e 565 do STF. Contudo, a Suprema Corte entendeu pela recepção. Nesse sentido, tem-se:

    Execução fiscal. Massa falida. Débito fiscal. Juros e multa.

    Massa falida. Débito fiscal. Juros e...

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