A inevitável instabilidade da governança corporativa norte-americana

AutorMark J. Roe
Páginas7-22

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A governança corporativa apresenta duas instabilidades centrais nos Estados Unidos. A primeira é a separação entre "controle "eu titularidade" - acio-nistas distantes e difusos são titulares, enquanto o controle fica com a administração concentrada - uma separação que cria não apenas grandes eficiências, mas também grandes e recorrentes fraturas. Desde a II Guerra Mundial, a cada década enfrentamos um fundamental problema com a grande empresa nos Estados Unidos. E cada um deles emana dessa instabilidade básica. Não resolvemos, de forma definitiva, tal instabilidade porque alguma forma de separação é necessária nas grandes empresas, dado que gera eficiências relevantes e porque, se resolvemos um dos problemas derivados, outro emergirá em algum momento. Escândalos do tipo Enron são apenas a última manifestação dessa fissura central nas grandes companhias abertas norte-ame-

A segunda instabilidade surge da descentralização e porosidade do sistema regulatório, aqui. Descentralização tem vantagens importantes - tais como flexibilidade, especialização, múltiplos canais informacionais -, de que decorrem custos na porosidade. Nosso sistema regulatório descentralizado deixa cada regulador enfraquecido. Mais importante, eles não são completamente independentes dos regulados. As entidades reguladas, frequentemente, impedem que o regulador independente atue. O regulado pode induzir autoridades políticas a negar ao regulador poder suficiente para agir, pode se dirigir ao Congresso para reduzir os fundos destinados ao regulador e pode discutir a regulação que, potencialmente, o afetará. Escândalos do tipo Enron ilustram bem a instabilidade regulatória da governança corporativa norte-americana. Por isso que a resposta estrutural à primeira fissura - separação e administradores sem patrões imediatos - deveria facilitar a fiscalização por intermédio de fortes estruturas para acompanhar as ações, por intermédio de acio-nistas fortes e com motivação para conduzir os administradores em busca de lucratividade, por intermédio de contado-

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res poderosos e independentes, voltados a verificar as informações prestadas, entre outras medidas. Algumas dessas funçõesfiscalizadoras resultam de contratos, melhores práticas e exigências naturais do mercado. Outras são facilitadas pela regulação, mas aqui o regulado - em geral os administradores, nos Estados Unidos - pode afetar o resultado da regulação, frequentemente enfraquecendo-a. Parte da regulação resulta de exigência do público que se manifesta deforma clara para que a regulação seja mais rígida e menos flexível do que seria o ideal

Essas instabilidades não podem ser resolvidas de uma vez e para sempre. Ao revés, resolvemos o problema tópico e imediato, seguimos adiante e, em algum momento, enfrentamos um novo problema, que emana de uma ou ambas essas instabilidades centrais. Nos movemos através delas; não as resolvemos porque não podemos fazê-lo.

1. Introdução

As recentes crises de negócios parecem novas e diferentes do que ocorreu antes. Mas, no cerne, não são. A fissura central na governança corporativa norte-ame-ricana é a separação entre propriedade e controle - acionistas difusos e distantes e administração concentrada -, uma separação que cria tanto grandes eficiências quanto quebras recorrentes. Verdade, alguns dos escândalos e problemas específicos do tipo Enron são novos, ou formas exageradas do que ocorrera anteriormente - veículo de propósito especial com esquemas complexos de captação de recursos, elevada remuneração de executivos, em que as opções são elementos dominantes, falhas de uma tradicional empresa de contabilidade e conselho de administração desatento -, mas o específico ainda decorre da estrutura central da governança corporativa norte-ame-ricana. Resolveremos a questão - ou, mais plausivelmente, a reduziremos a proporções administráveis - e adiante, em outro local, outra peça do aparato corporativo falhará.

Teremos outra crise de governança corporativa, que emanará da mesma fonte básica: a separação entre propriedade e controle das grandes companhias abertas. Vamos repará-la e continuar. Isso é o que acontecerá desta vez, e é o que ocorrerá na próxima.

A separação é a instabilidade funda-cional da governança corporativa norte-americana. Mas não é a única chave de instabilidade, e a crise atual exemplifica que outra há. Temos um sistema regulatório descentralizado e poroso. Sim, descentralização tem grandes vantagens: especialização reguladora, múltiplos canais de informação fluindo para os reguladores e o potencial para que muitos atores possam, facilmente, fiscalizar uns aos outros, sem que se construa uma estrutura reguladora potencialmente rígida e monolítica. Um regulador pode não ver o problema, mas -esperamos - outro o perceberá.

Vantagens de descentralização são acompanhadas de dois custos na porosidade. E são elevados. Primeiro, uma crise pode emergir sem que haja regulador especializado e devidamente preparado para equacionar o problema; e cada um pode pensar que a tarefa recai sobre outro regulador, considerado mais bem preparado para tratar do problema corrente.

Mais ainda - e provavelmente mais importante -, nosso sistema regulatório descentralizado deixa cada regulador enfraquecido; a autoridade de cada um é incompleta. E o regulado pode explorar tais fraquezas, e frequentemente o faz, por vezes impedindo o regulador de agir bem, seja por influenciar as autoridades políticas a negarem autoridade ao regulador, ou por questionar a proposta de regulação nos tribunais e Congresso. Essa porosidade impede muito de super-regulação - uma significativa vantagem. Mas também pode impedir a boa regulação. Os escândalos do tipo Enron ilustram bem a instabilidade da governança corporativa norte-americana; os

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fiscais2 como os contadores mantêm seu ambiente regulatório fraco, além de contestarem as tentativas para reduzir conflitos de interesses. Presumivelmente as empresas reguladas influenciaram as medidas contábeis de rentabilidade, entre elas se as opções para aquisição de ações garantidas aos executivos e empregados deveriam ser lançadas como despesas, tal como salários ou remuneração de empregados. Em uma reação às crises de governança corporativa, a Securities and Exchange Commissionl SEC considerou alterar a autoridade dos colegiados de forma mais severa em relação aos administradores - embora não mais do que alguns graus -, mas os administradores [objetaram] com uma oposição que até o momento impediu que a SEC recali-brasse a relação de poder acionista/administrador.

Combinem-se essas duas instabilida-des, e é possível ver uma estrutura mais profunda no caso de escândalos do tipo Enron. Para mitigar os problemas da separação, mercados e reguladores têm construído instituições cuja função primária é verificar e validar as ações administrativas, uma vez que a separação de propriedade e controle aumenta o risco de irregularida-des nas ações administrativas. Algumas dessas formas de controle - gatekeeping, em linguagem de governança - são reguladas. Mas, dado nosso sistema de regulação poroso, o grupo regulado - os administradores - pode induzir os reguladores a enfraquecer a fiscalização direta a que seriam submetidos, pode influenciar o Congresso a negar aos reguladores recursos para que exerçam, eficazmente, sua função, pode impedir a aprovação de uma boa regulação, e, dessa forma, tornar ineficaz a função fiscalizadora dos gatekeepers em relação aos administradores. Há mais que um pouco de cada elemento - um-dois-soco no estômago da governança corporativa nor-te-americana - no grupo de escândalos Enron.

2. A fissura fundamental
2. 1 O conceito

Ao final do século XIX, avanços na Engenharia e uma economia continental tornaram eficiente a produção em larga escala nos Estados Unidos. Com as ferrovias cortando o país, a produção poderia ser grande e local, e a distribuição nacional.3 O capital necessário para esse tipo de produção ultrapassava a capacidade mesmo das pessoas mais ricas. Para reunir recursos -especialmente nos casos de incorporações e de fundadores que alienassem suas participações -, operou-se a mudança da titu-laridade dos acionistas controladores para um mercado de valores mobiliários disperso e a separação entre propriedade e controle. A análise académica por excelência veio com o famoso livro de Berle e Means.4 A natureza da separação e seu grau foram pressionados por políticos populistas nor-te-americanos, que mantiveram as instituições financeiras - bancos e seguradoras no início do século XX - pequenas, fracas, e geralmente impedidas de investir em ações. Se os bancos e seguradores fossem grandes e autorizados a deter ações, teriam maior participação nas grandes empresas, como ocorreu em outros países e como seus sucessores fazem atualmente - como investidores institucionais - no início do século XXI, e o sistema de corporate governance nos Estados seria diferente.5

2. 2 As vantagens

As vantagens da separação são claras e não requerem repetição. A separação per-

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mite que a escala de operações supere a capacidade individual de prover recursos. Mesmo Bill Gates, o mais rico dos norte-americanos, detém apenas 10% da Microsoft. O restante pertence a terceiros externos e a alguns poucos insiders. Mais ainda, a separação permite que as companhias combinem administradores talentosos mas sem recursos (ao menos no início) com investidores que têm capital mas não dispõem nem de tempo ou aptidões para administrar. Isso dá aos fundadores uma estratégia de saída básica; as barreiras para saída são também barreiras à entrada, e, se os fundadores não tivessem mecanismos de saída, a atividade empresarial...

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